São Paulo, Quarta-feira, 25 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI
Sem-rumo não mordem; quem morde é o com-rumo

Seria uma beleza se a marcha de amanhã entrasse na Esplanada dos Ministérios distribuindo flores e ramos silvestres colhidos nas margens das estradas dos sem-rumo. O governo anda preocupado com a manifestação. Foi assim em 1997, quando os sem-terra entraram no Plano Piloto numa bonita manhã de abril.
Não aconteceu nada. O povo brasileiro não morde.
Se FFH olhar bem, não são as pessoas que chegam a Brasília a pé, sem rumo, que ameaçam seu governo e a bolsa da Viúva. São os que chegam de avião, com rumo. O jatinho que pousou na tarde do dia 13 de janeiro passado, trazendo o banqueiro Salvatore Cacciola e um amigo do presidente do Banco Central, causou ao país mais danos que qualquer marcha. Causou ao governo mais desgaste que todas as manifestações da patuléia.
Na marcha de 1997, podia-se aprender que são necessários dez quilos de carne e 20 de arroz para a receita de um razoável cozido para cem colheres. Naquele mesmo dia, o embaixador Roberto Campos completava 80 anos no Copacabana Palace. Lá, podia-se aprender que, num bom jantar (magnífico filé), uma mesa bem posta tem sete talheres e cinco copos para cada convidado. Ainda assim, pode ser mais difícil conseguir água do que champanhe.
FHH governa um país duplamente injusto. Nele falta água no andar de cima e champanhe no de baixo. Pode esquecer a marcha. Deve ver como o seu governo provê a abundância de uma e a falta de outra. Ele deve aos repórteres Elvira Lobato e David Friedlander a revelação de que, na Secretaria da Receita Federal, o doutor Everardo Maciel distribui as mercadorias apreendidas pelo governo de acordo com os costumes dos emirados do Golfo Pérsico.
Com o dinheiro da Viúva, Maciel dirige a máquina de arrecadação do Estado. Apreende mercadorias contrabandeadas e, como se viu, distribui aquilo que bem entende a quem pede. Pelos registros de sua bondade, tem uma queda pelos pedidos de parlamentares governistas. Deu 5.000 pares de tênis ao povo de Uberlândia, por intermédio do nobre deputado Odelmo Leão, líder do PPB na Câmara. Em Monte Carmelo, a escumalha, agradecida, recebeu 8.000 agasalhos com a seguinte faixa: "Os moradores agradecem ao prefeito dr. Saulo (Saulo Faleiro, PSDB) e ao deputado Odelmo pelos agasalhos". Santa choldra. Paga o salário do doutor Maciel, que lhe toma impostos, o do deputado, que é amigo do governo, e o do doutor Saulo, que é amigo do bom Odelmo. Gasta esse dinheiro todo e, quando descola um abrigo, agradece.
Coisas desse tipo são feitas sempre em nome de alguma racionalidade. Seja ela qual for, o secretário da Receita Federal produziu o melhor momento da política social do governo de FFH. Lobato e Friedlander mostraram que houve um dia em que chegou à cidade de Presidente Bernardes, em São Paulo, um carro Mercedes-Benz, 1985, novo. Veio da bondosa Receita, para socorrer um município que não tem meninos de rua ou favela. Tem desempregados. Foi amparar a obra social de um prefeito recém-chegado ao tucanato, saído do PT. Ele não a usa, porque, por mais bobos que haja em Brasília, nenhum prefeito é maluco a ponto de circular pela cidade numa Mercedes. Vai rifá-la e espera arrecadar R$ 45 mil.
O que há de exemplar na Mercedes da Receita é a gestão oriental da coisa pública. Pela norma, os bens do Estado são mandados a quem o secretário da Receita bem entende. A única diferença entre o que faz o doutor Everardo e o que sempre fizeram os emires do Golfo está no registro burocrático dos mimos. Cada lote presenteado pela Receita é documentado e entregue contra recibo. O emir de Omã não se dá a esse trabalho, assim como a Receita não se dá ao trabalho de divulgar, claramente, quais são os seus critérios e quais são os beneficiários de sua munificência. Nem ao zelo de evitar que o povo de Monte Carmelo pense ser necessário agradecer ao doutor Odelmo.
FFH chama de "sem-rumo" às pessoas que chegarão amanhã a Brasília. Nada mais certo. Se tivessem rumo, não estariam na marcha. Imagine-se por um momento que Claudionor Teston, neto de um veterano alemão da Grande Guerra, tivesse chegado a Brasília na marcha de 1997 com um rumo diferente daquele que seguiu, com seus companheiros do assentamento da fazenda Congonhas, em Abelardo Luz (SC). Em vez de dobrar o eixão à esquerda, descendo a Esplanada dos Ministérios, Teston entraria naquele prédio negro, horrível, de vidro preto. Iria ao gabinete do presidente do Banco Central e pediria algo parecido com o que o doutor Cacciola viria a pedir. Poderia ser remetido ao Banco do Brasil, faria uma dívida (grande) e nesta semana não estaria na marcha dos sem-rumo. Estaria na dos ruralistas caloteiros, gente de grosso rumo.
Os Testons desta vida são insuportáveis. Chegam a Brasília, não sabem para onde ir e ficam gritando pela rua. Se soubessem onde fica a sala do doutor Everardo Maciel, poderiam pedir uma Mercedes-Benz.


Texto Anterior: Janio de Freitas: À procura de estilhaços
Próximo Texto: Campo: Pronaf vai destinar R$ 2,5 mi para Alfabetização Solidária
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.