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BRASIL PROFUNDO
Terras destinadas a são Francisco foram postas à venda por meio de procurações; santo tem CGC e endereço
Igreja no Piauí loteia terra doada a santo
FÁBIO GUIBU
DA AGÊNCIA FOLHA, NO PIAUÍ
Terras doadas por fiéis a um
santo católico, são Francisco de
Assis, foram loteadas pela igreja
no Piauí e colocadas à venda a
pessoas que há anos ocupam as
propriedades, localizadas em um
dos municípios mais pobres do
Estado, o Morro do Chapéu do
Piauí (192 km de Teresina).
Isso só foi possível devido a
duas operações surreais, registradas em cartório: 1) a igreja associou o nome do santo à paróquia
mais próxima da cidade; e 2) por
meio de procurações, religiosos
administram o patrimônio de são
Francisco, como se o santo fosse
uma pessoa física.
O loteamento está legalizado e
registrado. Para isso, o santo foi
obrigado a "comparecer" a cartórios da região. O bispo da diocese
de Parnaíba, Alfredo Schaffler, se
tornou o representante de são
Francisco nessas atividades burocráticas. Dois padres, um deles
candidato a deputado estadual
pelo PT nas últimas eleições e cotado para ocupar a superintendência do Incra no Piauí, foram
nomeados procuradores do santo, sendo autorizados a assinar
por ele em todas as transações
imobiliárias envolvendo as terras.
Em janeiro e fevereiro de 2000, o
"Diário da Justiça" do Estado publicou editais nos quais consta a
requisição do registro do loteamento, que foi batizado de São
Francisco das Chagas, como são
Francisco de Assis também é conhecido. Esses editais nem citam
os religiosos e são redigidos como
se o santo em pessoa tivesse assinado os requerimentos.
Com o loteamento, o município
de Morro do Chapéu do Piauí foi
dividido em 57 quadras. A reportagem apurou que os lotes estão
sendo vendidos por R$ 0,40 a R$
1,50 o metro quadrado, dependendo do local. A comissão encarregada dos negócios trabalha
na casa paroquial de Esperantina,
município do qual se desmembrou Morro do Chapéu do Piauí.
Os "corretores" têm mapas do
loteamento, mas não garantem a
posse imediata da terra. Afirmam
que é preciso procurar quem se
diz dono do imóvel, negociar com
ele, pagando para que autorize a
venda pela igreja. Até agora, só
três pessoas adquiriram as áreas.
Órgãos públicos, porém, receberam vários lotes da instituição
religiosa sem desembolsar um
centavo: a prefeitura chegou a trocar supostas dívidas de IPTU contraídas pelo santo pela terra onde
deve construir sua nova sede.
Os moradores da cidade não
aceitam pagar pela terra onde vivem. Alegam que as casas foram
erguidas em terreno pertencente
a são Francisco e que a divisão feita pela igreja não tem valor. Cópias de documentos que revelam
o caminho trilhado pela igreja para legalizar e negociar as terras foram obtidas pela reportagem. A
igreja nega irregularidades.
Santo com endereço
A história da cidade construída
sobre as terras do santo que negou a riqueza e se tornou latifundiário no Piauí começou na primeira metade do século 20, quando fiéis no interior nordestino tinham o costume de dividir ou
deixar seus bens ao santo de sua
devoção. Pelo menos três doações
a são Francisco das Chagas foram
feitas na época no então povoado
de Morro do Chapéu do Piauí.
As áreas doadas totalizaram
pouco mais de 184 hectares. Com
o tempo, lavradores e comerciantes se instalaram nas terras supostamente sem dono, cercaram lotes e construíram suas casas. Em
1997, dois anos após a emancipação do município, a igreja começou a se movimentar para obter o
direito de gerir as propriedades.
Inicialmente, procurou o cartório da cidade de Esperantina para
registrar as escrituras. Não conseguiu porque tentou usar apenas o
nome da paróquia de Nossa Senhora da Boa Esperança como a
real proprietária das terras.
A diocese só obteve sucesso
quando colocou o nome do santo
como dono legítimo das glebas.
Mantendo o CGC (registro de
pessoa jurídica na Receita) da paróquia e declarando que são Francisco pertencia àquela unidade religiosa, conseguiu um endereço
fixo e um cadastro fiscal para o
santo, exigências dos cartórios.
A ausência do santo para assinar os papéis nas questões burocráticas foi resolvida com a presença do bispo de Parnaíba como
seu representante. Foi assim que,
em vários documentos, ficou registrada a presença de são Francisco perante os tabeliães.
O que diz a igreja
Em um dos documentos registrados em cartório, o santo nomeia como seu procurador o padre Ladislau João da Silva, ex-pároco da igreja de Nossa Senhora
da Boa Esperança, integrante da
coordenação regional da CPT
(Comissão Pastoral da Terra) e
primeiro suplente de deputado
estadual pelo PT.
Cotado para assumir a superintendência do Incra no Estado, Silva participou do projeto de elaboração do loteamento das terras do
santo e de reuniões com os moradores de Morro do Chapéu do
Piauí para tentar convencê-los a
comprar as terras onde moram.
Em entrevista por telefone, o
padre disse que agiu dessa forma
por estar subordinado ao bispo.
"Eu me sentia constrangido." Silva, que já se envolveu em conflitos
no campo em defesa da reforma
agrária, afirmou que o dinheiro
arrecadado seria revertido à comunidade. Entretanto, disse ser
favorável à distribuição gratuita
das glebas aos mais pobres. O pároco de Nossa Senhora da Boa Esperança, padre Carlos Alberto
Seixas de Aquino, que também
recebeu uma procuração do santo, não comentou o assunto. Disse
que só seguia as determinações.
O bispo de Parnaíba, Alfredo
Schaffler, declarou, por telefone,
que já havia jurisprudência sobre
o direito de a igreja assumir a administração de terras doadas a
santos. Schaffler disse que a venda
dos lotes aos moradores tem como objetivo "ajudar os pobres",
evitando que sejam vítimas de
"especulação imobiliária". Ele
não respondeu por que órgãos
públicos receberam terrenos de
graça enquanto os moradores pobres são convidados a comprar a
terra onde vivem há anos.
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