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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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BRASIL PROFUNDO

Terras destinadas a são Francisco foram postas à venda por meio de procurações; santo tem CGC e endereço

Igreja no Piauí loteia terra doada a santo

FÁBIO GUIBU
DA AGÊNCIA FOLHA, NO PIAUÍ

Terras doadas por fiéis a um santo católico, são Francisco de Assis, foram loteadas pela igreja no Piauí e colocadas à venda a pessoas que há anos ocupam as propriedades, localizadas em um dos municípios mais pobres do Estado, o Morro do Chapéu do Piauí (192 km de Teresina).
Isso só foi possível devido a duas operações surreais, registradas em cartório: 1) a igreja associou o nome do santo à paróquia mais próxima da cidade; e 2) por meio de procurações, religiosos administram o patrimônio de são Francisco, como se o santo fosse uma pessoa física.
O loteamento está legalizado e registrado. Para isso, o santo foi obrigado a "comparecer" a cartórios da região. O bispo da diocese de Parnaíba, Alfredo Schaffler, se tornou o representante de são Francisco nessas atividades burocráticas. Dois padres, um deles candidato a deputado estadual pelo PT nas últimas eleições e cotado para ocupar a superintendência do Incra no Piauí, foram nomeados procuradores do santo, sendo autorizados a assinar por ele em todas as transações imobiliárias envolvendo as terras.
Em janeiro e fevereiro de 2000, o "Diário da Justiça" do Estado publicou editais nos quais consta a requisição do registro do loteamento, que foi batizado de São Francisco das Chagas, como são Francisco de Assis também é conhecido. Esses editais nem citam os religiosos e são redigidos como se o santo em pessoa tivesse assinado os requerimentos.
Com o loteamento, o município de Morro do Chapéu do Piauí foi dividido em 57 quadras. A reportagem apurou que os lotes estão sendo vendidos por R$ 0,40 a R$ 1,50 o metro quadrado, dependendo do local. A comissão encarregada dos negócios trabalha na casa paroquial de Esperantina, município do qual se desmembrou Morro do Chapéu do Piauí.
Os "corretores" têm mapas do loteamento, mas não garantem a posse imediata da terra. Afirmam que é preciso procurar quem se diz dono do imóvel, negociar com ele, pagando para que autorize a venda pela igreja. Até agora, só três pessoas adquiriram as áreas.
Órgãos públicos, porém, receberam vários lotes da instituição religiosa sem desembolsar um centavo: a prefeitura chegou a trocar supostas dívidas de IPTU contraídas pelo santo pela terra onde deve construir sua nova sede.
Os moradores da cidade não aceitam pagar pela terra onde vivem. Alegam que as casas foram erguidas em terreno pertencente a são Francisco e que a divisão feita pela igreja não tem valor. Cópias de documentos que revelam o caminho trilhado pela igreja para legalizar e negociar as terras foram obtidas pela reportagem. A igreja nega irregularidades.

Santo com endereço
A história da cidade construída sobre as terras do santo que negou a riqueza e se tornou latifundiário no Piauí começou na primeira metade do século 20, quando fiéis no interior nordestino tinham o costume de dividir ou deixar seus bens ao santo de sua devoção. Pelo menos três doações a são Francisco das Chagas foram feitas na época no então povoado de Morro do Chapéu do Piauí.
As áreas doadas totalizaram pouco mais de 184 hectares. Com o tempo, lavradores e comerciantes se instalaram nas terras supostamente sem dono, cercaram lotes e construíram suas casas. Em 1997, dois anos após a emancipação do município, a igreja começou a se movimentar para obter o direito de gerir as propriedades.
Inicialmente, procurou o cartório da cidade de Esperantina para registrar as escrituras. Não conseguiu porque tentou usar apenas o nome da paróquia de Nossa Senhora da Boa Esperança como a real proprietária das terras.
A diocese só obteve sucesso quando colocou o nome do santo como dono legítimo das glebas. Mantendo o CGC (registro de pessoa jurídica na Receita) da paróquia e declarando que são Francisco pertencia àquela unidade religiosa, conseguiu um endereço fixo e um cadastro fiscal para o santo, exigências dos cartórios.
A ausência do santo para assinar os papéis nas questões burocráticas foi resolvida com a presença do bispo de Parnaíba como seu representante. Foi assim que, em vários documentos, ficou registrada a presença de são Francisco perante os tabeliães.

O que diz a igreja
Em um dos documentos registrados em cartório, o santo nomeia como seu procurador o padre Ladislau João da Silva, ex-pároco da igreja de Nossa Senhora da Boa Esperança, integrante da coordenação regional da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e primeiro suplente de deputado estadual pelo PT.
Cotado para assumir a superintendência do Incra no Estado, Silva participou do projeto de elaboração do loteamento das terras do santo e de reuniões com os moradores de Morro do Chapéu do Piauí para tentar convencê-los a comprar as terras onde moram.
Em entrevista por telefone, o padre disse que agiu dessa forma por estar subordinado ao bispo. "Eu me sentia constrangido." Silva, que já se envolveu em conflitos no campo em defesa da reforma agrária, afirmou que o dinheiro arrecadado seria revertido à comunidade. Entretanto, disse ser favorável à distribuição gratuita das glebas aos mais pobres. O pároco de Nossa Senhora da Boa Esperança, padre Carlos Alberto Seixas de Aquino, que também recebeu uma procuração do santo, não comentou o assunto. Disse que só seguia as determinações.
O bispo de Parnaíba, Alfredo Schaffler, declarou, por telefone, que já havia jurisprudência sobre o direito de a igreja assumir a administração de terras doadas a santos. Schaffler disse que a venda dos lotes aos moradores tem como objetivo "ajudar os pobres", evitando que sejam vítimas de "especulação imobiliária". Ele não respondeu por que órgãos públicos receberam terrenos de graça enquanto os moradores pobres são convidados a comprar a terra onde vivem há anos.


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