São Paulo, domingo, 26 de abril de 1998

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GOVERNO
Luís Eduardo Magalhães tinha trânsito fácil
Filho ilustre ganhou luz própria no poder

ELIANE CANTANHÊDE
Diretora da Sucursal de Brasília

Quando alguém da elite baiana tenta dar uma de esperto ou criar um atalho, logo surge um amigo para advertir: "Cuidado com o vau do tamanco".
É a referência a um episódio da campanha eleitoral de 1986 centrado em Luís Eduardo Magalhães, que seria o futuro rei da Bahia, mas morreu na semana passada, de infarto, deixando um enorme vazio político, não só na Bahia, mas no Brasil.
Estavam ele, o atual governador César Borges e o amigo Carlos Rotemburgo numa camionete cabine dupla, prontos para atravessar o rio Paraguaçu. A balsa estava do outro lado, e não havia balseiro.
Por sugestão de Rotemburgo, a camionete entrou na água, tentando achar o vau (trecho raso) que ali é chamado de "vau do tamanco". Não deu certo. A camionete quase virou, empacando no meio do rio. Ficaram todos ilhados. Era noite, não havia luz.
Borges e Rotemburgo não tiveram dúvidas: tiraram as calças e os sapatos e foram a pé até a margem. Mas Luís Eduardo bateu pé firme. E se houvesse jibóias no rio? Nem pensar.
Foi Rotemburgo, responsável pela enrascada, quem avistou um peão a certa distância e ofereceu-lhe alguns cruzados (a moeda da época) para carregar Luís Eduardo. O peão remancheou, mas acabou aceitando.
E foi assim que o jovem deputado, o futuro rei, safou-se do rio: montado nos ombros do peão, segurando a mão de Borges, de um lado, e a de Rotemburgo, de outro. Depois, ainda foi a pé, resmungando, até a sede da fazenda mais próxima. E ainda chegou atrasado para o comício.
Luís Eduardo já era deputado estadual e presidente da Assembléia Legislativa da Bahia. Fora eleito pela primeira vez em 1979, aos 23 anos, e estava no segundo mandato.
Fazia campanha para o primeiro de seus três mandatos para a Câmara dos Deputados mas, já naquela época, como ilustra a história do "vau do tamanco", deixava claro que comícios e corpo-a-corpo não eram o seu forte.
A arte de fazer política é que era. Sempre foi. Tinha o sobrenome Magalhães e todo o estímulo do pai, o poderoso senador Antonio Carlos Magalhães, agora presidente do Senado e três vezes governador da Bahia. Mas não era só isso. Tinha também o gosto, o jeito, a habilidade, a argúcia. Ganhou luz própria.
Sempre se comentou em Brasília, onde Luís Eduardo chegou em 1987, que ACM tinha poder porque impunha; o filho, porque conquistava. ACM manda no PFL. Luís Eduardo tinha um maior raio de ação, convencia, desfazia intrigas, fazia amigos nas esquerdas e até no PT.
Seu velório em Salvador foi a melhor confirmação disso: o presidente da República, os governadores e o Congresso inteiro e até grandes desafetos (como os paulistas Mário Covas, Orestes Quércia e Paulo Maluf) estavam lá.
'"Ele é muito melhor do que eu", costumava dizer o pai, peito estufado, sobre o filho mais querido e preparado desde cedo para ser seu sucessor, uma extensão da sua própria vida.
Luís Eduardo, entretanto, tinha uma visão menos ambiciosa da própria carreira. Foi líder do "Centrão", o grupo de direita da Constituinte de 86, foi líder do PFL, presidiu a Câmara, morreu na disputada condição de líder do governo na Casa.
Mas lutava pelo governo da Bahia e pensava na decantada candidatura à Presidência da República em 2002 sem dar a vida por elas. Talvez a tenha dado, sim, pelas grandes votações e articulações do Congresso, nas quais empenhava-se a fundo.
Desde o Congresso constituinte de 86, trabalhava 12, 13 horas, especialmente em defesa dos projetos liberais, de enxugamento do Estado e de abertura do mercado. Um dos destaques do "Centrão", rodava madrugadas discutindo estratégias, fumando sem parar.
Ainda se falava em ACM como presidenciável, não em Luís Eduardo. Ele, entretanto, já vinha se destacando, assumindo uma identidade própria, impondo sua liderança. Era, desde então, um deputado de primeiro time.
Também naquela época, Luís Eduardo já gostava das noites de Brasília. Frequentava os restaurantes da cidade, fazia amigos, contrariava a regra do uísque tomando champanhe.
Em Salvador, ficavam a mulher, Michelle, e os três filhos: Paula, Carolina e Luís Eduardo, com quem se trancava durante horas, aos sábados ou domingos, para ver filmes.
Também mantinha dois grupos de amigos com quem sempre saía para jantar, às vezes viajava com alguns deles para Nova York, Lisboa ou Roma, de preferência.
Em Brasília, foram durante uma época os deputados Miro Teixeira (PDT-RJ) e José Genoino (PT-SP). Mas a disputa entre eles pela presidência da Câmara, em 1995, trincou essa amizade.
Mais recentemente, saía sempre com os deputados Moreira Franco (PMDB-RJ), Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) e Roberto Brant (PSDB-MG). Os três primeiros nunca chegaram a ministros, mas sempre tiveram seu apoio.
Ele se referia ao grupo como "shadow cabinet". No Reino Unido, é o grupo de oposição que fiscaliza o governo.
No grupo de Luís Eduardo, os ministeriáveis que um dia poderiam sair das sombras e virar ministros.
Na Bahia, jantava nos melhores restaurantes e frequentava as casas dos empresários Manoel Maria Tavares, Carlos Luz, Eugênio Carvalho, Manoel Chamadoiro, José Renato Lima, Luiz Carlos Queiroz.
Para os adversários, eram os "Dudu Boys", grupo do qual também faziam parte o prefeito de Salvador, Antonio Imbassahy, e o agora governador César Borges.
'"O Luís era o centro das atenções. O mais inteligente, o mais falante, com uma piada sempre pronta. Era um líder natural onde quer que estivesse", disse Borges no dia seguinte ao enterro.
Uma das suas manias era apelidar os amigos. Desde que declarou que "tinha os pés na cozinha", o presidente Fernando Henrique Cardoso passou a ser o "Mulatinho". Com seus mais de cem quilos, o deputado Heráclito Fortes (PFL-BA) era o "Paqui", de paquiderme.
Na Bahia, eram os Toquinho, os Manolo. O deputado Leur Lomanto (PFL) era o '"Esperancinha". O próprio governador, o "Borginho". "É impossível falar de Luís Eduardo sem falar do seu bom-humor", destaca Heráclito.
Se os jantares eram com os amigos, os almoços eram reservados ao pai. Mesmo na terça-feira, 21, o dia do infarto, os talheres da residência oficial do Senado já estavam à mesa à sua espera.
Desde a semana anterior, ele tivera dias duros. Na sexta-feira, jantou com ACM e os principais líderes do PFL-BA, no Palácio de Ondina (do governo), até as 2h.
No sábado, acordou cedo, caminhou e embarcou ao meio-dia para uma rodada no interior: de jatinho até Ubaitaba, ao sul, depois uma hora e meia de carro pela região cacaueira, mais um vôo até Panamirim, a oeste, mais duas horas de carro até Guanambi e, finalmente, o vôo de volta à capital.
Depois de um dia inteiro de comícios e reuniões políticas, comendo sanduíches, ele chegou a Salvador por volta da meia-noite, tomou mais um banho e só foi jantar de madrugada. No domingo, porém, nova caminhada.
Pretendia descansar bem, mas foi surpreendido com um telefonema do cardiologista Bernardino Tranchesi Jr.: o ministro Sérgio Motta (Comunicações) estava morto. Não conseguiu dormir.
Na segunda-feira, Luís Eduardo estava visivelmente abatido no velório e no enterro de Motta em São Paulo. PSDB e PFL se digladiavam. Motta e Luís Eduardo articulavam e tinham uma relação afetuosa.
Na volta a Brasília, ainda abatido, ele foi jantar com amigos e novamente dormiu muito pouco. Nem por isso deixou de percorrer 11 km no feriado de terça. Chegou no apartamento especialmente suado, tomou banho, fez um lanche. Minutos depois, chamou Carlinhos, o motorista que serve a família há 22 anos.
'"Estou com um aperto no peito", avisou, caindo para trás, na cama, desacordado. Carlinhos o carregou no colo até a sala. Ele acordou. Ligaram para ACM, que estava na piscina da residência oficial e, com o susto, deixou o telefone cair dentro d'água.
"É sério, senão ele não me telefonaria. Tem horror de me preocupar", comentou o senador com um amigo. Tão sério que Luís Eduardo, o futuro rei da Bahia, não resistiu.
Às 2h30 de quarta-feira, no seu gabinete do Senado, a alguns metros do velório no Salão Negro, ACM olhava desconsolado uma foto sua com o filho. "Não é justo, não é justo", repetia.
Estava encerrada prematuramente a carreira de um dos melhores políticos do país. Estava encerrado o principal sonho do senador. Estava também começando um novo governo, que ninguém sabe ainda qual é.



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