São Paulo, domingo, 26 de abril de 1998

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ELIO GASPARI
A estrela da felicidade de ACM

Uma tragédia -a morte de Luís Eduardo Magalhães- pode produzir uma das alianças mais surpreendentes e eficazes da política nacional: FFHH e ACM.
Até a semana passada, duas barreiras os separavam. Uma era a tenacidade com que ACM conduzia o projeto que deveria desembocar incondicionalmente no dia em que veria o filho que amava, e que o enternecia naquilo que tinham de diferentes, subindo a rampa do Palácio do Planalto. FFHH poderia até vir a ser parte desse desfecho, mas nessa caminhada ACM não tinha espaço para condicionais. A outra era o temperamento. Nenhum dos dois faz o gênero do outro, mas, por caminhos diversos, ambos têm uma relação especial com os inimigos. FFHH frita os seus em fornos de microondas, ACM em piras monumentais. Ambos fazem de conta que eles não existem. Não mencionam seus nomes e, se eles caem acidentalmente numa conversa, mudam de assunto. Diferem, e muito, na relação com os amigos. Talvez FFHH possa pensar que é amigo de mais gente que ACM, mas sem dúvida alguma, ACM tem mais amigos que FFHH.
As diferenças de fundo que por décadas os separaram simplesmente deixaram de existir. Hoje não há questão essencial que os afaste. Mesmo quando divergem, adotam posições intercambiáveis. ACM poderia ter feito um pacote que tungasse o Imposto de Renda da classe média e FFHH, como presidente do Senado, poderia rebarbá-lo. Aconteceu o contrário. (ACM demitiria em 48 horas o sábio que fez a trapalhada do pacote 51. FFHH colocou-o naquela caixa da cozinha onde os alimentos ficam girando e saem quentes. Dá quase no mesmo.)
Luís Eduardo morreu deixando com o pai o pleno conhecimento da amizade que tinha pelo presidente. A esta altura, na profundidade da dor, e no mecanismo de lealdades sanguíneas que alimenta a existência do senador, FFHH é o amigo que ficou do filho que partiu. Na sua alma, isso vale dez vezes mais que qualquer proximidade ou distanciamento saídos do jogo político.
A aproximação dos dois depende apenas da química das emoções. Não é pouca coisa, mas é só isso. Há duas semanas, um ACM poderoso significava o fortalecimento de um projeto político autônomo (a Presidência de Luís Eduardo), com o qual FFHH não podia se comprometer. Agora, ACM é um político poderoso, elege na Bahia o governador que quiser e tem mais a dar do que a receber. Tudo o que FFHH pode, ele não precisa. E tudo o que ele precisa -a reconstrução de um mundo quase idílico repentinamente perdido- nem FFHH lhe pode dar.
As lágrimas de ACM, expressão do tamanho do sofrimento que levará pela vida, durarão muito tempo, mas ele aprendeu a conviver com a dor. Coube-lhe uma quantidade despropositada, injusta, mas sempre voltou a se levantar e voltará a fazê-lo. Desta vez, numa situação surpreendente, tão implausível quanto a tragédia: o pai de Luís Eduardo irá em frente, olhando para as estrelas, como herdeiro do filho. Nessas horas recuperará os momentos de uma felicidade que julga perdida.

Registro de rumo
Há pouco mais de uma semana, FFHH estava desenhando o futuro diante de um curioso. Disse que pode vir a mudar qualquer ministro ou hierarca do seu primeiro escalão, salvo o senador José Serra.
O curioso achou que lia seu pensamento e burilou o conceito:
-Mas a equipe econômica continua.
Surpreendeu-se com a resposta:
- Não necessariamente. O que não muda é o rumo. O que não se pode fazer é emitir sinais que conturbem a percepção de que temos um rumo. Fora isso, as pessoas podem mudar.

Cena rápida
O senador Antonio Carlos Magalhães estava prostrado num sofá do gabinete da presidência da Assembléia da Bahia, enquanto seu filho, que a presidiu, estava sendo velado no saguão do prédio. As pessoas passavam por ele, davam-lhe a mão (alguns a beijavam) e seguiam adiante. A certa altura passou um cidadão e apertou-a, sem dizer nada. Quando ACM o reconheceu, ele tinha começado a se afastar. Alcançou-lhe a manga da camisa e trouxe-o para perto. Num sussurro, no meio do choro, disse-lhe:
-Não quero que você tenha problema na vida.
Era o motorista de Luís Eduardo, Carlos Roberto Fraga, o Carlinhos.

Abre alas
Há um bom livro na praça. É "O Brasil do Samba-Enredo", de Monique Augra, psicóloga francesa e professora de psicologia da PUC do Rio de Janeiro.
Rápido e sintético, estuda a exaltação nacionalista das escolas de samba e aquilo que parece a encrenca de sua produção: a visão empolada e grandiosa de uma produção essencialmente popular.
Tem um fecho de ouro. Sugere que se dê ao poema "Prosopopéia", de Bento Teixeira, editado em 1601, a condição de digno antepassado dos sambas-enredos de glorificação dos doutores ilustres.
Um exemplo de sua veia:
-Com braço indômito e valente
A fama dos antigos eclipsando.

Toque espanhol
O PFL vai se beneficiar dos serviços de consultoria do Partido Popular da Espanha. Está chegando a Brasília uma pequena delegação de parlamentares do PP e, no que for possível, eles ajudarão a cúpula pefelê a arrumar sua estratégia de campanha.
A idéia dessa parceria ocorreu ao presidente do partido, Jorge Bornhausen, durante suas passagens pela Espanha. Percebeu que a origem da força do atual primeiro-ministro José María Arnaz decorreu da compensação de sua falta de carisma pela utilização agressiva e metódica da máquina do partido.


O Grande Chefe Branco devia chamar o pajé

Ninguém foi a Caruaru. Enquanto um bom pedaço de Roraima estava pegando fogo, o ministro do Meio Ambiente banhava-se em Fernando de Noronha. O ministro do Trabalho diz que não há crise de desemprego, mas só em São Paulo já há 1,5 milhão de pessoas sem "empregabilidade". Seria injusto dizer que o governo é o principal culpado dessas desgraças, ou que sopre as chamas por ruindade. Uma coisa é certa: o governo de FFHH se mexe rápido para organizar festas no andar de cima, mas tem horror a se confundir com as agruras da vida do andar de baixo.
Agora, está incrustando mais uma jóia em sua coroa. Em janeiro, já se sabia que havia seca no Nordeste, mas muita gente boa achou que tudo se resumia a um alarmismo tecnocrático (quiçá petista) dos funcionários do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. (Fantástica gente essa tucana, paga aos cientistas para estudar o clima, mas não acredita no que dizem. Depois, quando o pajé caiapó faz chover, sem cobrar nada, dizem que é superstição. Não decidem em quem acreditam.)
Passaram os meses e agora há uma seca de bom tamanho. Já levou a fome para regiões onde vivem perto de 200 mil pessoas. Se continuar, será uma das maiores dos últimos dez anos. Em alguns Estados os indicadores de mortalidade infantil já subiram. O que fez o governo? Até a semana passada, salvo a inauguração de uma torneira em Surubim (PE), honrada com a presença de FFHH, nada. Já houve alguma reunião para tratar do assunto? Houve. Resultou em quê? Nada. Na outra ponta, resultou em saques, e o Planalto soube dos primeiros casos há três semanas. Não há uma só providência em andamento relacionada com a seca. Levando-se em conta que o Proer custou R$ 23 bilhões, não chega a ser absurdo que se gaste algum dinheiro com a seca. Com R$ 500 milhões abrem-se frentes de alfabetização para 200 mil adultos. Com mais R$ 600 milhões consegue-se fazer a transposição do rio São Francisco, levando-o para o Norte. Infelizmente, há um preconceito segundo o qual obra contra a seca é um disfarce de ladroagem. Isso é uma tolice, porque pode-se roubar até na fabricação de hóstias. Se os larápios da seca estão na coligação governista, o problema não é de quem está passando fome, mas de quem está comendo o que não deve.
Se os sábios do tucanato não chegarem a um acordo, a única alternativa será recorrer ao pajé Kucrit, que chamou a chuva de Roraima. Ele vive na reserva Colíder, em Mato Grosso. Pode ser achado em poucas horas. Basta ligar para o número (065) 541 2011.


O ministro que revolucionou a matemática

O Congresso pode votar a reforma da Previdência que bem entender. Pode até votar uma lei obrigando os aposentados a cumprir penas de trabalhos forçados. O que não pode é dizer que acredita nos argumentos do governo, muito menos nas suas estatísticas. Isso porque elas são como as alfaces, só descem com tempero.
O atual ministro Waldeck Ornélas produziu um artigo no qual repetiu o velho rondó do envelhecimento da população brasileira e informou o seguinte:
-Em 1997, exclusive pensionistas, nada menos de 4.787 benefícios foram pagos a pessoas com mais de 70 anos de idade, com uma participação de 36,8%, que se eleva continuamente.
Como isso é verdade, não há como pagar aos velhos sem reformar o sistema dos jovens. E se não for, o ministro muda de opinião?
Aos fatos: segundo o INSS, há 3,6 milhões de cidadãos recebendo diversos tipo de ajuda do Estado por terem ultrapassado os 65 anos. Esses abonos nada têm a ver com a aposentadoria e quem os recebe não pode praticar qualquer tipo de acumulação. Admitindo-se que só um terço desses cidadãos tenha mais de 70 anos, resulta que eles são 1,2 milhão. Somando-se essa turma aos 4,78 milhões achados pelo ministro, resulta que haveria no Brasil perto de 6 milhões de pessoas com mais de 70 anos recebendo aposentadorias e auxílios. Segundo o IBGE, o número de brasileiros com mais de 70 anos está em pouco menos de 5,2 milhões de pessoas. Para que a estatística do ministro faça nexo, ele precisa informar ao IBGE que sumiram 800 mil brasileiros.
Se isso fosse pouco, os números do próprio INSS informam que os brasileiros aposentados por limite de idade (as mulheres aos 60 anos e o homens aos 65) representaram 14,31% dos benefícios pagos em fevereiro passado. Nesse caso, revolucionou-se a matemática. Se os aposentados por limite de idade são 14,31% do universo de benefícios pagos, e os que têm mais de 70 anos, correspondem a 36,8% do mesmo universo, descobriu-se em Brasília uma forma de fazer com que a parte fique maior que o todo.


Entrevista
Francisco de Oliveira
(64 anos, professor de sociologia da Universidade de São Paulo.)

O senhor teve relações de amizade com o professor Fernando Henrique Cardoso e agora, num artigo publicado na revista "Estudos", do Centro Brasileiros de Análise e Planejamento, chamou-o de tirano, acusando-o de usar métodos ditatoriais de governo. Que motivo o levou a fazer um ataque tão duro?
Sua política como presidente. Ele está fazendo coisas típicas das tiranias. Fala-se muito que há hoje no Brasil um processo de exclusão social. A meu ver, o que há é pior que isso. Os dominados estão sendo excluídos do campo de significado dos dominantes. Estamos regredindo para uma situação em que os excluídos ficam sem trabalho e sem a expectativa de acesso a ele. Os brasileiros estão sendo excluídos do campo do direito. O ministro Bresser Pereira disse que os funcionários públicos, sem aumento há cinco anos, têm "necessidades". Não é assim. Os funcionários têm direitos e eles estão sendo destruídos. Quem tem necessidade é a girafa.
No seu artigo, o senhor diz que FFHH deu à sua política um conteúdo estético, comum no fascismo. Não é uma crítica forte demais?
Não. Faltando-lhe carisma, estetizou a política. Acumula títulos de doutor pelo mundo afora, menospreza os adversários chamando-os de neobobos, cita autores famosos. Essa supremacia serve para legitimar a exclusão. Seu imaginário transforma o trabalhador despedido num Fausto que teria apostado a alma num processo produtivo ultrapassado e, se hoje não tem trabalho, a culpa esteve na aposta. O trabalho formal está sendo redefinido pelo informal. Deu-se uma inversão. As relações de selvageria no trabalho estão determinando a redefinição do direito trabalhista. A miséria do desemprego tornou-se alavanca da modernização do país. Isso é uma fantasia falsificada.
Se é assim, por que a oposição não consegue batê-lo? Não consegue nem sequer gerar uma candidatura viável?
Dificilmente a oposição sairá da sinuca em que foi colocada. A estabilidade da moeda se transformou em âncora do regime. O presidente vai se reeleger e a coligação conservadora na qual se apóia continuará mandando por mais uns dez anos, no mínimo. Salvo acidentes financeiros internacionais ou situações imprevisíveis, estamos diante de um fenômeno duradouro. De certa maneira, construiu-se uma nova República Velha. É essa visão, que parece pessimista, mas eu creio apenas realista, que me leva a fazer as críticas que faço. Acho melhor radicalizá-las do que me iludir.

Registro de conta
Morto o ministro Sérgio Motta, seu colega Clóvis Carvalho, chefe do Gabinete Civil, tornou-se um dos seus melhores amigos. Tem todo o direito de estreitar essa amizade, sobretudo porque nada custa a um vivo tornar-se íntimo de um morto. Isso não elimina o fato de que Motta não se considerasse seu amigo nem tivesse qualquer propensão para alterar uma relação que passava muito pouco da troca de cumprimentos.



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