São Paulo, terça, 26 de maio de 1998

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NORDESTE
Em Tauá (sudoeste do Estado), grupo pára, sem armas, caminhões atrás de alimentos; maioria votou em FHC
Saqueadores do Ceará desconhecem MST

Orlando Britto
Luís Carlos Ferreira Mello (de boné, ao fundo) com um dos sacos de alimentos que conseguiu anteontem


ELIO GASPARI
enviado especial a Tauá (CE)

Às 5h15 de ontem, vestindo uma camiseta do Palmeiras e depois de dez horas de bloqueio da BR-020, que liga Fortaleza a Picos (PI), Aristides Pereira da Costa, 42, terminou a divisão do butim. Tinha ajudado a parar cerca de 50 carretas, ônibus e automóveis. Aliviara a carga de dois caminhões.
Cada uma das 20 famílias, todas do vilarejo de Castelo, ficou com 50 kg de milho, 5 kg de açúcar, mais cinco laranjas e alguns bocados de bolachas e rapaduras comprados com o dinheiro arrecadado aos motoristas. Aristides diz que foram R$ 16. Talvez um pouco mais, no máximo R$ 30. Prometia ficar "até o Natal, ou a hora em que nos arranjarem comida ou emprego".
Às 14h, três policiais militares intermediaram uma proposta dos carreteiros engarrafados: a estrada limpa em troca de dois sacos de feijão, um de milho, dois de laranja e uma caixa de óleo. Negócio fechado. Passaram 25 carretas, acabou o bloqueio e a mercadoria foi transportada e entregue pelos PMs.
No seu momento de maior frequência, às 22h, quando sangraram o Scania graneleiro do motorista Aderaldo Barboza da Silva Filho, tirando-lhe 1 t de milho, os saqueadores foram 43. Os homens eram 27, as mulheres, 5, e 11, as crianças (todas na escola). Na eleição de 1994, votaram 26. Nesse grupo de um casario perdido no sertão dos Inhamuns, Fernando Henrique Cardoso derrotou Luiz Inácio Lula da Silva por 15 a 11.
Os saqueadores da BR-020 nunca ouviram falar em MST nem mesmo em movimento dos sem-terra. Consumiram toda a noite numa conversa fiada sertaneja, com muitas brincadeiras e nenhuma discussão política. Diziam que estavam desarmados.

Laranjas
Pararam os caminhões de mãos limpas e asseguravam que "nem faca há por aqui". Não havia porque às 3h, quando tiraram um saco de laranjas de um caminhão que levava 28 toneladas para Fortaleza, descascaram-nas com as mãos.
Bloquearam a estrada com um tronco e 12 pedregulhos. Paravam todos os veículos. Aos carros, quase sempre pediam dinheiro. O prefeito da cidade, João Antonio da Luz, disse que estava sem tostão, mas seu acompanhante pingou R$ 10, a maior contribuição do dia. Dava quem quisesse. Ninguém era hostilizado.
Os ônibus passavam quase direto e o motorista de um Goiânia-Fortaleza atirou-lhes dois pacotes de doce de buriti. Com os caminhões, o método foi outro. Eram antecedidos por um grito e um desejo: "Lá vem o caminhão!"
"É do feijão."
No bloqueio, ele não apareceu. É possível que estivesse numa camionete que fugiu de volta, mas, como disse Antonio Cesar da Silva, 26, cuja colheita se resumiu a duas melancias: "Você acha que feijão de R$ 120 vai passar por um lugar desses?"

Fome
Pode-se dizer que na BR-020 saqueavam-se caminhões, mas não se pode supor que saque signifique exatamente o que lá se fazia. Não lhes passou pela cabeça tocar nos bois de três carretas.
Contentaram-se com o milho que pegaram, pediram só um saco de laranjas e rebarbaram um pequeno caminhão de tomates. "Isso não mata fome. Nós queremos alimento que encha o bucho", explicou Valdivina Ferreira, 30, solteira, acompanhada por dois cães de sua casa: Bugre e Leão.
"Nós não estamos fazendo desordem. Estamos só pegando comida e saímos daqui na hora que nos derem cestas básicas ou trabalho", diz Aristides. "Há pouco tempo ficamos cinco dias e cinco noites aqui, pedindo só dinheiro. Veio a Comissão da Defesa Civil e disse que no dia seguinte iria nos alistar na frente de emergência. Alistaram seis pessoas, mas nenhum deles está aqui porque tem medo de ser desligado."
Divertiam-se com motociclistas que se aproximavam devagar e partiam em disparada. Mantiveram-se afastados do Fiat Uno de uma mulher que se descontrolou e perdeu quatro tentativas de religar o carro.
Não entenderam o que uma senhora queria dizer, da janela de um ônibus, quando gritava: "Estamos voltando da despedida do bispo". Referia-se à despedida de d. Antônio Fragoso, de Crateús, um veterano e severo líder da esquerda católica.
Enraiveceram-se quando um ônibus lançou-se sobre a barreira, arriscando matar um bom número deles. Estavam desatentos, inspecionando uma carreta, e tiveram três segundos para salvar as peles. Logo depois, riam de um garoto que se jogou no mato e caiu sobre os espinhos de uma jurema.

Cotidiano
Só dois deles tiveram carteira de trabalho assinada. Acima dos 20 anos, são quase todos analfabetos. Todos perderam as colheitas de feijão e milho. Todos esperam que o governo lhes resolva o problema, mas não perdem tempo falando mal dele nem prosa falando bem.
Para eles, o bloqueio da rodovia se tornou o prolongamento do cotidiano. Francisca da Chagas Souza de Almeida, 43, quatro crianças vivas e três mortas, saiu no meio da madrugada para ver como estavam os filhos, porque "ficaram sozinhos". Depois, voltou a dormir enrolada numa colcha, sobre o asfalto.
Antonio Pereira da Costa, 68, aposentado, foi para o bloqueio levando uma sacola discretamente dobrada. Tinha consigo 5 dos 11 filhos. A maioria dos saqueadores de Castelo guarda algum tipo de parentesco. Não tem comida em casa, mas pouco depois da meia-noite uma mulher trouxe café quente, servido em xícaras.
Visto pelo lado de quem perde, o bloqueio não merece simpatia. Eles contam que há motoristas que choram, temendo perder o emprego, assim como há outros que lhes sugerem sangrar mais fundo.
As duas vítimas da noite tiveram reações diversas. Aderaldo, que perdeu o milho, deu queixa à polícia. Valdomiro Oliveira, que perdeu as laranjas, tem oito anos de estrada, nunca viu coisa semelhante, mas se limitou a um comentário enigmático: "É uma coisa desagradável".
Seu colega Antonio Rodrigues Ferro, que vinha num comboio de duas carretas carregadas de ferro, aborreceu-se: "É a primeira vez que me acontece isso. O governo tem de fazer alguma coisa. Isso é assalto".
Tinha acabado de subir no vão que separa a carroceria da boléia, quando viu o ônibus que rompeu o bloqueio passar a poucos centímetros de sua acompanhante, a bela morena Veviane. Assustou-se e saiu daquele lugar tão logo quanto pôde. Seu último comentário foi o de quem aprendeu alguma coisa naquele meio de noite: "Alguém mandou fazer isso". (Impossível. O motorista do ônibus assustou-se.)

Comportamento
Os saqueadores do Castelo assustam quem vai dirigindo à noite e se vê parado por esse pedaço do Brasil que se mantém dentro do mato. Aceitam acordos com os carreteiros e já liberaram lotes de 15 caminhões em troca de alguns sacos de comida.
"Eles não fazem desordem, não bebem e não ameaçam", informa o delegado regional de polícia Edmar Beserra Granja. Para ele, o problema não está em Castelo, mas em Bom Jesus, onde há bebida no bloqueio e atravessadores no pedaço.
Deu-se no sertão cearense uma variante do célebre episódio acontecido nos anos 40 com o então governador mineiro, Milton Campos. O secretário da Segurança lhe disse que já tinha mandado um trem de policiais para reprimir uma greve de funcionários por conta de salários atrasados. "Não seria melhor mandar o trem pagador?", disse-lhe Campos. Em Tauá, o carro da PM foi o trem pagador.



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