São Paulo, terça, 26 de maio de 1998

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HISTÓRIA
Preso por Hitler na Europa, fazendeiro foi acusado de simpatizar com nazismo em SP

da Reportagem Local

O fazendeiro Nicolau Manoel Kaufmann Äque imigrou para o Brasil no fim da década de 30Ä perdeu oito parentes, incluindo a mãe e a mulher, por causa da perseguição nazista à comunidade judaica da Europa.
Também viu os representantes do Terceiro Reich tomarem o banco que possuía na Áustria, quando as tropas de Hitler invadiram o país, em 1938.
Mesmo assim, a polícia de Getúlio Vargas o acusou de simpatizar com o nazi-fascismo. Colocou espiões para investigá-lo e o impediu de circular livremente pelo território brasileiro.
Todos os detalhes da injustiça contra Kaufmann se acham documentados no prontuário número 51.379 do Deops.
Um relatório de setembro de 1942, anônimo, dá conta de que, naquele mês, um policial acompanhou o cotidiano do fazendeiro para apurar "uma denúncia". Não explica, porém, do que tratava a delação.
Como resultado da espionagem, o agente descobriu que "o alemão" morava "à alameda Jaú" (região sudoeste de São Paulo), frequentava uma confeitaria na rua Tabatinguera e tinha "uma ótima fazenda" em Rolândia (norte do Paraná).
Sem apresentar qualquer prova, qualificou Kaufmann de "elemento bem exaltado pró-nazismo", que costumava alardear "o poderio da Alemanha".
Em agosto de 1943, o fazendeiro de 52 anos Äconsiderado cidadão do EixoÄ procurou o Deops e pediu um salvo-conduto permanente para viajar a Rolândia.
Quando lhe negaram o passe livre, indagou o motivo. Soube, então, das investigações que ocorreram um ano antes. Indignou-se e preparou extenso dossiê para provar que se tornara vítima de um "engano fatal". Encaminhou-o à Superintendência de Segurança Política e Social, em São Paulo.
A documentação esclarecia, primeiro, que Kaufmann não era alemão. Nascera em um lugarejo "sem colocação geográfica definida no mapa da Europa", que já fizera parte de pelo menos cinco países (Rússia, Romênia, Hungria, Áustria e Polônia).
Os papéis ainda informavam que, havia pouco tempo, o fazendeiro ro se naturalizara brasileiro Äo que, por si só, deveria livrá-lo da pecha de "súdito do Eixo" e dispensá-lo de salvo-condutos.
O dossiê também mostrava que:
* Kaufmann vivia com a família na cidade de Viena quando o Exército alemão ocupou a Áustria. Em consequência, não apenas perdeu o banco como ficou preso entre março e junho de 1938. Ganhou a liberdade depois de se comprometer a deixar o país, levando somente dez marcos.
* Sua sogra e seu cunhado se encontravam em campos de concentração.
* Dois de seus tios tinham se suicidado por não suportarem as pressões do nazismo.
* Na fazenda que desbravara "em pleno sertão do Paraná", batizada de Rolandense, empregava 80 funcionários, todos brasileiros. Criava porcos e bois. Produzia feijão, arroz, milho e mandioca.
* Embora já estivesse com mais de 50 anos, se alistou como voluntário no Exército nacional meses antes de o Brasil declarar guerra ao Eixo.
Por tudo o que expunha, o fazendeiro se dizia "profundamente desolado, decepcionado e até ofendido" diante das "mentiras" que lhe impingiam.
Lamentava, com ironia, não saber a quem dos seus "inimigos gratuitos e denunciantes deveria agradecer tal calúnia e grosseira falsidade".
No dia 23 de setembro de 1943, depois de analisar o dossiê, o superintendente de Segurança Política e Social mandou cancelar as acusações contra Kaufmann.
A Folha tentou, sem sucesso, localizar parentes do fazendeiro. Encontrou, no entanto, um casal que o conheceu em Rolândia. Max e Herta Moser Äele, com 87 anos; ela, com 82Ä moram na cidade desde 1945. Nasceram alemães, mas se naturalizaram brasileiros.
"Não éramos muito íntimos de Kaufmann. Sabíamos apenas que tinha origem judaica e um sócio suíço", recorda Herta.
A fazenda Rolandense ainda existe. O empresário paulista Odésio Franciscon, 73, a adquiriu em 1980 de um engenheiro que não pertence à família Kaufmann.
(Armando Antenore)



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