São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

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SOB NOVA DIREÇÃO

Nova ministra da Casa Civil passou por treinamento de guerrilha fora do país, mas não fala em qual local

Dilma treinou com armas fora do Brasil

LUIZ MAKLOUF CARVALHO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A ministra "camarada de armas" Dilma Rousseff, 57, como a chamou o agora deputado federal José Dirceu (PT-SP), seu antecessor na Casa Civil, treinou guerrilha fora do Brasil na época da ditadura militar (1964-1985), quando foi militante das organizações de esquerda Comando de Libertação Nacional (Colina) e Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR). Ambas defendiam o método da luta armada para derrubar a ditadura.
A própria ministra contou sobre o seu treinamento no exterior durante entrevista gravada no final de 2003 para a segunda edição do livro "Mulheres que Foram à Luta Armada" (Editora Globo), em andamento. Ocupava, então, o Ministério de Minas e Energia. Só não quis revelar o nome do país. O trecho é o que se segue:

Pergunta - A senhora sabia atirar?
Dilma Rousseff -
Sabia. Eu fui treinada. Eu tive dois treinamentos: um que reuniu todo mundo, ainda no tempo do Colina, num sítio, em Belo Horizonte, e depois um outro, no Rio, já na clandestinidade. Eram várias equipes. A minha era eu, o Fernando Ruivo, o Beto e o Felipe, de São Paulo. Fomos enviados para fazer um treinamento.

Pergunta - Aonde?
Dilma -
Eu não vou te falar.

Pergunta - Foi no Brasil?
Dilma -
Não.

Pergunta - Cuba? Argélia?
Dilma -
Essa eu não vou te falar.

Pergunta - Mas foi fora do Brasil?
Dilma -
Foi.

Pergunta - Em que período e quanto tempo durou?
Dilma -
Menos de duas semanas, entre ir a voltar. Nós fizemos um treinamento rápido. Eu não vou te dizer, porque é muito desagradável, envolve outro país.

Pergunta - Ou é Cuba ou é Argélia.
Dilma -
(Silêncio)

Pergunta - A sra. era do ramo, tinha boa pontaria?
Dilma -
Até que eu não era ruim. Tinha uma boa empunhadura e tal. Mas eu não enxergo direito.

Pergunta - Como era o treinamento?
Dilma -
Única e exclusivamente um treinamento básico sobre armas, meio precário, não tinha lá grande coisa. Não era a minha área. Nunca fui de muita ação. Eu nunca romantizei isso, não. E a partir de determinado momento todos nós achávamos que estava chegando no limite, que a situação ia ficar muito feia.

A hoje chefe da Casa Civil foi presa, torturada e várias vezes interrogada, como a Folha mostrou em entrevista publicada na terça-feira. Mas nunca deixou que o segredo lhe escapasse. Dos três nomes que citou como parceiros do treinamento lá fora, dois foram assassinados: Fernando Borges de Paula Ferreira, o Fernando Ruivo, emboscado em São Paulo em 30 de julho de 69, e Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, morto sob tortura em fevereiro de 71. É o que consta no livro "Os Filhos Deste Solo", de Carlos Tibúrcio e Nilmário Miranda, este, como sabe, colega de ministério de Dilma.
Não foi possível identificar o nome verdadeiro de Felipe, o terceiro citado. Pela data da morte de Fernando Ruivo é possível situar o período do treinamento no primeiro semestre de 1969. A futura ministra já entrara na clandestinidade e morava no Rio de Janeiro (leia matéria nesta página).
A leitura de seus interrogatórios, seja na polícia política da ditadura, sob tortura, ou na Justiça Militar, na qual denunciou a selvageria, mostra que esse não foi o único segredo que guardou. Um dos outros, sobre o qual nada contou, diz respeito à ação mais ousada e rendosa da VAR-Palmares: o assalto aos US$ 2,4 milhões que estavam no cofre da amante de Adhemar de Barros, no Rio de Janeiro, em 18 de julho de 1969.
Dilma não participou diretamente da ação, mas foi uma das que trabalharam na organização da infra-estrutura, antes e depois. "Eu me envolvi no processo", diz, ainda reticente.
O nome da ministra da Casa Civil não consta da relação de militantes da esquerda brasileira que treinaram em Cuba. A Coréia também treinou integrantes de organizações que defendiam a luta armada, mas esse ponto constitui, até hoje, um dos mistérios daquele período. O ex-ministro José Dirceu também treinou guerrilha em Cuba, depois de sair da cadeia na troca forçada de presos políticos pelo embaixador americano seqüestrado Charles Burke Elbrick, em 4 de setembro de 1969.
Os dois eram de diferentes organizações e, que ambos tenham dito, ou que se saiba, nunca atuaram juntos. Se a saudação "companheira de armas" não foi apenas simbólica, como pareceu, é possível que o ex-ministro tenha compartilhado a informação.
Os treinamentos revelados pela ministra não foram os únicos momentos militantes em que ela esteve envolvida com armas. Conte-se aqui, como curiosidade histórica, que semanas antes de ser presa (no centro de São Paulo, em 16 de janeiro de 1970) sua principal dor de cabeça, como dirigente da VAR-Palmares, era esconder em lugar seguro, as armas furtadas em posse da organização, escondidas em um "aparelho" com grande possibilidade de já ser conhecido da repressão. Dilma morava com uma aguerrida militante da organização em uma pensão de quinta categoria na avenida Celso Garcia, zona leste de São Paulo. Muitas peripécias depois, as armas acabaram lá. Delas nunca se soube depois que foi presa.
"Caiu", aliás, para usar o jargão da época, quando foi encontrar-se com um militante ("cobrir um ponto", idem) para tratar justamente do assunto. Não sabia que ele já estava preso e que a tortura o obrigara a abrir o "ponto". Ao chegar, "Estela", um de seus codinomes, viu o companheiro em um bar. Ele ainda tentou fazer os sinais possíveis, com a face, quando a viu se aproximar, mas ela não percebeu. Deu-lhe um aviso mais direto quando chegou perto, mas, ao primeiro esboço de reação, a repressão, em torno, botou-lhe as garras. A lembrança da cena emociona a ministra:
"Todos nós somos extremamente frágeis à tortura, que é o nível da destruição humana. Um cara que foi obrigado a renunciar ao que ele pensava, ao que ele queria, não merece crítica. Fazê-la, seria aceitar que a tortura tivesse dado certo. E não aceito que a tortura deu certo, eu não aceito a lógica dela. Eu estou falando dos que abriram a boca. É imperdoável a tortura ter obrigado uma porção de gente a trair os seus próprios ideais. É imperdoável terem roubado a alma deles. Não falo dos que agüentaram e piraram um pouco, como a Dodora [Maria Auxiliadora Lara Barcelos, da VAR-Palmares, presa e torturada, que depois suicidou-se na Alemanha]. É dos que sobreviveram e que carregam esse fardo. Eu tenho essa culpa, todo mundo tem essa culpa, porque diante da tortura ninguém é herói. É um troço que é de uma dor inimaginável. Eu vi gente sofrer feito um cão, depois, mais do que na tortura. É conseqüência da tortura, da hora que a pessoa falou, o sentimento de culpa que o torturador inflige. Porque a tortura é a dor física, e acabou. Mas aquele saco ela carrega e vai carregando e vai carregando, e é complicadíssima essa relação de culpa".
No final da entrevista, sempre emocionada, Dilma Rousseff fez um único pedido: o de que fosse transmitido, ao militante que estava no bar, "dois beijos e seiscentos abraços".


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