São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 2002

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ARTE E REALIDADE

Dragão e santo trocam de papéis em Glauber Rocha

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Quando o candidato Ciro Gomes chama seu adversário José Serra de "dragão da maldade", como fez na semana passada, logo nos vem à mente o filme "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro", pelo qual o cineasta Glauber Rocha ganhou em 1969 o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes.
Presume-se, no caso, que Ciro esteja atribuindo a si próprio, implicitamente, o papel do "santo guerreiro" (São Jorge) destinado a derrotar o dragão.
Mas no universo de Glauber Rocha, que trabalha de modo muito pessoal os mitos populares arcaicos transmitidos pela tradição oral nordestina, esses papéis frequentemente se embaralham.
"O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" é uma espécie de continuação de "Deus o Diabo na Terra do Sol", realizado pelo cineasta cinco anos antes.
Em comum entre os dois filmes há o personagem Antonio das Mortes (Mauricio do Valle), matador de cangaceiros.
Em "Deus e o Diabo", a soldo dos coronéis do sertão, Antonio das Mortes extermina, primeiro, um líder religioso, e, em seguida o cangaceiro Corisco. Liquida, assim, a via mística e a violenta de reação popular à miséria.
Representa, portanto, o "dragão da maldade" (o latifúndio, o coronelismo), certo? Mais ou menos. Ele próprio se julga um benfeitor, ao livrar o povo da cegueira representada por Deus (o misticismo alienante) ou pelo Diabo (a violência estéril do cangaço).
Corisco, por seu turno, arroga para si o papel de aliado de São Jorge contra os inimigos do povo.
Em "O Dragão da Maldade" a situação se embaralha ainda mais. Desta vez, num Nordeste já modernizado, mas ainda bárbaro, Antonio das Mortes topa com um novo cangaceiro, Coirana, que se diz herdeiro de Lampião.
Mas passa para o lado dos insurrectos: o cangaceiro, um padre, um professor, um cego santo. Nas palavras do próprio Glauber: "O dragão é inicialmente Antonio das Mortes, assim como São Jorge é o cangaceiro. Depois, o verdadeiro dragão é o latifundiário, enquanto o santo guerreiro passa a ser o professor quando pega as armas do cangaceiro e de Antonio das Mortes".
O cineasta "queria dizer que tais papéis sociais não são eternos e imóveis, e que tais componentes de agrupamentos sociais solidamente conservadores, ou reacionários, podem mudar e contribuir para mudar. Basta que entendam onde está o verdadeiro dragão". Será que Ciro e Serra entenderam?



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