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São Paulo, sexta-feira, 26 de setembro de 2003

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A VIAGEM DE LULA A CUBA É OPORTUNA?

Quem tem medo de Cuba?

SIM

A viagem de Lula tem na incorporação de Cuba ao esforço brasileiro de integração continental seu principal aspecto

EMIR SADER

Escrever sobre Cuba na imprensa brasileira é uma aventura, porque é argumentar em um terreno minado pelo clima de "guerra fria". José Saramago nunca havia sido tão publicado até ter criticado Cuba e nem mesmo seu discurso pelo Prêmio Nobel foi tão publicado, republicado e citado como esse artigo.
Eduardo Galeano criticou o governo dos Estados Unidos em grande parte do seu artigo, que não foi publicado pela grande imprensa brasileira, a qual apenas citou infindáveis vezes a frase em ele critica Cuba.
No domingo passado, a Folha publicou uma página inteira sobre Cuba. Os grandes textos eram frontalmente críticos a Cuba: um era de um opositor ao regime, e outro, de Lech Walesa e amigos. Nenhum intelectual cubano favorável ao regime foi ouvido.
Os leitores ficam sem saber por que Cuba tem um IDH superior ao do Brasil e ao do México, dado publicado sem nenhuma explicação, porque contradiz a versão de que o regime estaria no seu ocaso, com o povo numa situação miserável. Os leitores também não sabem por que o regime cubano sobreviveu à queda do Muro de Berlim e que, portanto, é diferente dos regimes do Leste Europeu.
Sua legitimidade, aquela que se expressa nas maiores manifestações de apoio a um governo no mundo, fica incompreendida, além de escondida pelas mentiras do silêncio que cercam Cuba na grande imprensa brasileira.
Esse quadro típico da "guerra fria" favorece as posições maniqueístas no debate sobre Cuba. Antonio Candido, um dos tantos grandes intelectuais favoráveis ao socialismo cubano, chega a responder, quando é perguntado se não têm críticas a Cuba, que prefere falar das coisas favoráveis, já que quase só se fala coisas ruins de Cuba na imprensa.
A visita de Lula a Cuba pode ser uma oportunidade para superar esse clima, atacando pela raiz o clima de "guerra fria". O Brasil pode contribuir para isso, assumindo a responsabilidade de convocar negociações para normalizar as relações entre Cuba e EUA.
A condição necessária para essa normalização, isto é, para o reconhecimento diplomático mútuo é que isso se dê sem condições prévias. Cuba aceita esse tipo de negociação, apesar de os EUA manterem a base militar de Guantánamo há mais de um século na ilha, onde detêm uma grande quantidade de presos em condições desumanas e sem nenhuma proteção jurídica. Nem assim Cuba coloca a retirada das tropas norte-americanas como condição para a normalização de relações.
Além dessa contribuição, a viagem de Lula a Cuba tem na incorporação de Cuba ao esforço brasileiro de integração continental seu principal aspecto. Cuba foi marginalizada pelas pressões de Washington e excluída da OEA (Organização dos Estados Americanos) e de outros organismos regionais. A reparação dessa ação imperial dos EUA favorecerá o processo democrático de integração latino-americana em que o Brasil está tão empenhado.
Espera-se que a imprensa brasileira saiba captar esses aspectos essenciais da visita de Lula a Cuba e não fique mais uma vez pautada pela mídia norte-americana.
Aliás, para concluir, o tratamento dado sempre a Fidel Castro como "ditador" é exclusividade dele. Os ex-ditadores brasileiros Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo, para não falar de ditadores e ex-ditadores de outros países, recebem o tratamento de "ex-presidentes".
Esperamos que a cobertura dessa viagem de Lula também seja um passo para acabar com a "guerra fria" contra Cuba na imprensa brasileira.


EMIR SADER, 60, é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ e autor de "A Vingança da História" (Boitempo)


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