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"Traidores" do MST enriqueceram com a soja
Em 1981, 203 famílias aceitaram a proposta dos militares para trocar acampamento gaúcho por lotes em Mato Grosso
Criticados pelos líderes dos sem-terra e pela Pastoral da Terra, "traidores" justificam opção e condenam métodos utilizados pelo movimento
EDUARDO SCOLESE
ENVIADO ESPECIAL A LUCAS DO RIO VERDE (MT)
Exatos 25 anos atrás, 203 famílias sem terra foram convencidas pela ditadura militar a
trocar um acampamento no
Rio Grande do Sul, o maior que
o país já tinha visto e gestor da
organização que viria a ser o
MST, por lotes no Mato Grosso.
A opção rendeu-lhes a pecha
de "traidores" tanto no MST
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) como na
Comissão Pastoral da Terra.
Mas os que permanecem em
Lucas do Rio Verde (a 356 km
de Cuiabá) se orgulham do que
fizeram em 1981 e hoje têm vastas plantações de soja -a monocultura mais criticada por
seus antigos companheiros.
No início dos anos 80, essas
203 famílias faziam parte do
acampamento Encruzilhada
Natalino, em Ronda Alta (RS).
À época, para desmobilizar
os 2.500 camponeses, a Presidência da República enviou ao
local o major Sebastião Curió.
Estratégia militar
Curió seguiu com uma estratégia pronta: ao oferecer lotes
de terra em outros Estados, como no Norte e no Centro-Oeste, esvaziaria o acampamento e,
ao mesmo tempo, enfraqueceria os líderes sem-terra e diminuiria o poder de mobilização
da Pastoral da Terra no local.
A maioria das famílias preferiu rejeitar a oferta dos militares e permaneceu com o objetivo inicial de pressionar os governos federal e estadual a desapropriar áreas no próprio Rio
Grande do Sul. A experiência
contribuiu para a criação, em
1984, do MST.
Outras 203 famílias, porém,
cansadas da precariedade do
acampamento e com poucas
perspectivas de conseguir um
pedaço de terra a curto prazo,
cederam à proposta de Curió e
foram para Mato Grosso, onde
receberam lotes de 200 hectares (o equivalente a 280 campos de futebol) num projeto
chamado Lucas do Rio Verde.
Na semana passada, a Folha
esteve no município, atualmente com cerca de 25 mil habitantes, e localizou ex-sem-terra, hoje sojicultores de sucesso. O inusitado é que a base
para ampliar suas propriedades -e construir piscinas, pagar faculdade e comprar caminhonetes- é justamente a monocultura da soja, demonizada
pelos sem-terra como símbolo
de devastação e de inviabilização da pequena agricultura.
Ildo Romancini, 51, atuou ao
lado de João Pedro Stedile na
comissão central da Encruzilhada Natalino. Ele preferiu
aceitar a proposta dos militares. "Nos mandamos para Lucas no escuro. Sei que os demais ficaram chateados comigo. Mas a vontade era ter um
pedaço de terra", diz Romancini, hoje dono de uma área de
600 hectares de soja.
Stedile
Stedile, hoje com 52 anos e
na coordenação nacional do
MST, diz que os camponeses
foram "cooptados" pelos militares: "Alguns por desespero,
medo, outros por oportunismo,
pelo sonho de ficar rico". "Passados alguns anos, a maioria
voltou mais pobre [ao RS].
Meia dúzia deles ficou rica
comprando as terras dos vizinhos, beneficiada por regalias
do Banco do Brasil e em troca
das puxações de saco que faziam ao governo. Coitados, eles
não têm consciência do papel
que exerceram na época. Todas
as famílias que resistiram conquistaram terra e vivem no Rio
Grande do Sul", declara.
A fazenda de Romancini fica
próxima à de Aquilino Sirtoli,
58, que transformou os 200
hectares doados pelo governo
numa propriedade de 1.500
hectares. Na região central de
Mato Grosso, cada hectare de
soja representa uma colheita
de 55 sacas (vendida por cerca
de R$ 17 cada).
Sirtoli lembra a pressão dos
militares para desmantelar o
acampamento: "Se descobrissem algo contra você, uma conta atrasada ou outra dívida, eles
anunciavam nos alto-falantes
para todo o acampamento. Era
uma forma de desmoralizar e
desmobilizar. A pressão psicológica era muito forte".
Sirtoli recebeu a reportagem
na sede de sua fazenda. Ao seu
lado estava Airton Willers, que
aos 12 anos deixou a Encruzilhada Natalino com os pais e
duas irmãs. Ele conta que levou
um ano para voltar a uma sala
de aula. "Nem escola tinha por
aqui", diz Willers, 37, responsável pelos 200 hectares de soja
da família e de outros 160 hectares arrendados numa outra
fazenda. Tudo em soja.
Willers e Sirtoli criticam o
MST. "A causa é válida, tem
muita gente boa. Mas os métodos dos líderes são muito pesados", diz Sirtoli. Para Willers, "é
muita política no movimento".
Agnor Vieira, 65, um dos fundadores do MST, resume a opção de Sirtoli e dos outros: "Foi
muito grave, pois estava nascendo um movimento e essas
famílias foram iludidas. Muito
triste". Das 203 famílias, restam 12 em Lucas do Rio Verde.
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