São Paulo, Domingo, 26 de Dezembro de 1999


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BRASIL EM 2000
Ex-ministro defende aumento da oferta de crédito e redução da taxa de juros e critica Malan

Mendonça prega "agenda racional" a FHC


COSETTE ALVES
especial para a Folha

O economista tucano Luiz Carlos Mendonça de Barros, 56, prega uma "agenda da racionalidade" como resolução de Ano Novo para o governo do amigo Fernando Henrique Cardoso.
Essa agenda se traduz no aumento da oferta de crédito, diminuição dos juros, racionalização do sistema de tributos e "arejamento" do mercado de trabalho.
Ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), ele coordenou uma das maiores privatizações do mundo, a venda do Sistema Telebrás, por R$ 22,06 bilhões. Diz que os juros do BNDES não são subsidiados e são competitivos com os internacionais.
Há 13 meses fora do governo, Mendonça de Barros diz ter a língua "solta demais". E não a contém ao se referir ao ministro Pedro Malan (Fazenda). "Quando vejo o Malan boicotando a reforma tributária, fico pasmo."
O economista recebeu a Folha em seu apartamento, na zona sul de São Paulo. Fazia calor e ele vestia bermudas e camisa de manga curta. Afirmou que, se pudesse mudar o mundo, "tornaria o socialismo possível". Leia a seguir os principais trechos.

Folha - Em que circunstâncias o sr. aceitou o convite do presidente Fernando Henrique Cardoso para presidir o BNDES?
Luiz Carlos Mendonça de Barros -
Quando o presidente FHC montou o governo, o Sérgio Motta veio falar comigo da possibilidade de eu participar. Acontece que eu e o André (Lara Resende) tínhamos fundado o Matrix havia muito pouco tempo. Achamos que seria uma falta de responsabilidade com os outros sócios abandonar tudo. Por isso não participei da equipe inicial.
No fim de 1995, o Edmar Bacha tinha recebido um convite para trabalhar no setor privado e queria sair. Achei que já havia condições de sair do banco. Aceitei, mas sabia que havia um certo conflito de idéias no ar. E fui para o BNDES, convidado pelo Serra e pressionado muito pelo Sérgio Motta, amigo de 30 anos.

Folha - Quais os momentos da sua passagem pelo governo que mais o entristeceram?
Mendonça de Barros
- O momento de maior revolta foi a ida ao Senado, porque foi uma traição política do PFL e do PMDB, que -em vez de me defenderem como ministro do governo, eles que conheciam todas as circunstâncias e sabiam que o processo tinha sido correto- aproveitaram-se do episódio das fitas e dados da oposição e partiram para uma luta política.

Folha - O que causou a luta?
Mendonça de Barros
- O presidente tinha dito que eu ia ser o ministro do Desenvolvimento e que o ministério seria forte. Como sou vinculado ao PSDB, eles concluíram: "Se o ministro for para lá, desequilibra, então temos que derrubá-lo".

Folha - Se o sr. fosse presidente e FHC seu ministro das Comunicações, nas mesmas circunstâncias, aceitaria sua demissão?
Mendonça de Barros
- Acho que sim. Na primeira conversa com o presidente, eu estava em Nova York, ele não queria que eu fosse ao Congresso. Eu era ministro e estava sendo acusado de corrupção com um instrumento que não era só ilegal do ponto de vista da lei. A fita estava montada para mostrar uma ação do governo em favor de um dos consórcios. Essa versão foi passada para o público. Eu tinha que ir e explicar que trabalhamos para criar uma competição. O presidente concordou e fui ao Senado. Ali percebi que o PFL e o PMDB estavam querendo me derrubar. O Elcio Alvares foi chamado para defender um ministro de Estado e nada fez. Enfiaram a faca nas minhas costas. Eu não tinha condições de continuar.

Folha - Se o sr. fosse presidente, como teria agido?
Mendonça de Barros
- Se eu fosse o presidente, chamaria os ministros e diria: "Conheço o que foi feito, pois o ministro me reportava tudo, não tem nada de errado e essa é uma fita parcial. Para apresentar os fatos o ministro vai se defender, vai explicar tudo e vocês têm que sair em defesa dele". O erro do presidente foi esse. Depois do que aconteceu, não tendo criado condições de suporte político para mim, teve que aceitar minha demissão.

Folha - O sr. mudou depois da sua passagem pelo governo?
Mendonça de Barros
- Amadureci muito. No período que fiquei no BNDES, conheci o Brasil, porque viajei bastante. Entendi mais as limitações do presidente da República e do Congresso. Sou mais democrata hoje do que era antes. E, apesar de tudo, não consigo não gostar do FHC, não consigo não admirá-lo como homem público, embora possa ter críticas a umas tantas coisas que ele fez.

"Quando vejo o Malan boicotando a reforma tributária, fico pasmo, porque é claramente uma decisão errada"


Folha - O sr. se considera injustiçado pela mídia?
Mendonça de Barros
- A mídia, diante da fita que foi divulgada, reagiu corretamente. Ela deu a público. Só que a fita estava editada para insinuar falta de correção. Meses depois, quando a Folha publicou todas as fitas, fiquei contente porque as fitas, todas elas juntas, mostraram aquilo que era o meu argumento.

Folha - A Constituição diz que, num processo de leilão como esse, a ação de um homem público deve ser impessoal.
Mendonça de Barros
- Nessa questão da privatização, houve uma discussão de conceito sobre a ação de um homem público num processo de leilão como esse. Na Constituição, está claro que deve ser impessoal. Mas impessoalidade é no sentido de que as condições têm que ser iguais para todo mundo. A impessoalidade não pode ser lida de forma rígida, de que o responsável pela venda não faça propaganda e não procure criar o melhor negócio para o governo e a sociedade.

Folha - Essa boa intenção estava de acordo com a lei?
Mendonça de Barros
- Sim. Tanto que a decisão do Tribunal de Contas foi tomada em vários níveis: técnico, dentro do próprio estatuto do TCU, que obriga o procurador da República a também se manifestar sobre o julgamento. O tribunal foi unânime em aceitar a nossa defesa, que foi a seguinte: na Constituição há dois princípios que devem reger a ação de um homem público num leilão como o da Telebrás. Primeiro é o da impessoalidade. As condições têm que ser absolutamente iguais para todo mundo. A própria Constituição tem o princípio da economicidade, isto é, todo ato público, tipo leilão, venda, tem que buscar o melhor preço. Para que isso aconteça, é necessário estimular a participação do maior número de empresas, porque, se for uma só para o leilão, o preço é o mínimo. E o caso especificamente foi esse.

Folha - O sr. está de acordo que o BNDES empreste dinheiro para empresas estrangeiras comprarem estatais?
Mendonça de Barros
- A função do BNDES é fomentar investimentos no Brasil. Sejam de brasileiros, sejam de estrangeiros. Os juros do BNDES não são subsidiados. São normais, competitivos com os juros internacionais. Agora, comparados com os juros que temos aqui, é moleza. A questão é que, com esse juro operado no mercado de crédito no Brasil, não há investimento possível.

Folha - Como é que o sr. vê o ano 2000 para o Brasil?
Mendonça de Barros
- O ano 2000 vai ser um ano muito bom. Por uma razão muito simples. O ambiente externo, que foi a causa da crise que nós tivemos em 98, mudou completamente. Vamos ter em 2000 o oposto daquilo que tivemos em 98. A economia mundial está crescendo; na Europa, o crescimento aumentou; a Ásia saiu da crise.

Folha - Qual o desafio do governo?
Mendonça de Barros
- Em relação à parte interna, temos uma situação contraditória. Boa por um lado e ruim por outro. Vamos ter no ano que vem uma situação fiscal boa. Do ponto de vista de inflação, é fundamental. Essa situação fiscal é obtida em detrimento da racionalidade do funcionamento da economia. Porque são impostos irracionais, do ponto de vista da produção, que retiram recursos dos consumidores e dos produtores. Portanto diminuem sua capacidade de financiar.

Folha - Qual será o crescimento brasileiro em 2000?
Mendonça de Barros
- Vamos ter um crescimento medíocre para o Brasil resolver os problemas sociais. Teremos condições de crescimento de 2%, podendo terminar o ano em 4%. É aí que tenho um atrito com o ministro Malan (Fazenda). Não porque eu seja contra o que está sendo feito, mas temos que passar imediatamente para a segunda agenda, que é a agenda da racionalidade. E, quando eu o vejo boicotando a reforma tributária, do jeito que ele está boicotando, realmente eu fico pasmo, porque é claramente uma decisão errada.

Folha - Qual é o boicote?
Mendonça de Barros
- O governo vem boicotando a reforma tributária há dois ou três anos. E, no Brasil, se o Executivo não assumir a liderança de um processo de reforma, não se faz a reforma. A crítica e a cobrança que faço é que não é possível que o Executivo, que devia estar liderando esse processo, sirva como empecilho.

Folha - Qual é a sua opinião sobre a entrada de capitais e o comportamento do dólar?
Mendonça de Barros
- Tenho medo de que a entrada de capital seja grande demais e acabe valorizando o real. Aí vamos ter problemas nas exportações. Então acho que o governo e o BC têm o desafio de não deixar isso acontecer.

Folha - Inflação?
Mendonça de Barros
- Ano que vem 6% ou 7%, ou seja, não vejo inflação. Não tenho dúvida de que o presidente termina o ano próximo com mais apoio do que hoje.

Folha - Poderia haver uma aceleração de retomada do crescimento, se houvesse outra política econômica?
Mendonça de Barros
- Acho que política econômica é como jogo de futebol americano. Tem hora que tem um time para defender e hora que tem um time para atacar. E o segredo é saber a hora certa para pôr o time para defender e a hora para atacar. Se você trocar isso, dá uma bagunça danada. Pode ser até a mesma equipe, mas a agenda, as preocupações têm que mudar. E quais são os grandes pontos de irracionalidade no Brasil? Taxa de juros, oferta de crédito, a parte fiscal e o mercado de trabalho que precisa de uma mudança. A minha crítica é que a agenda tem que ser mudada e não adianta o Malan dizer que estou pregando a volta ao passado, porque não é verdade. Essa é apenas uma forma de desqualificar as minhas críticas.
Estamos perfeitamente de acordo sobre o equilíbrio fiscal, sobre a política monetária estável, tudo está ok. É preciso aumentar a oferta de crédito, diminuir a taxa de juros, tornar mais racional o sistema de tributos e arejar o mercado de trabalho.

Folha - Quem é que defendia câmbio fixo com juros altos?
Mendonça de Barros
- Quem formulou o Plano Real -o Pérsio Arida, o André Lara e o Edmar Bacha- não o executou. Quem executou o Plano Real foram outras duas pessoas que não tinham participado da formulação, Pedro Malan e Gustavo Franco. Eles evidentemente tinham conversado entre si. São amigos, colegas do André, sabiam toda a lógica do plano. Para enfrentar a inflação e a indexação que tínhamos, era preciso ter o mecanismo da URV (Unidade Referencial de Valor, indexador atrelado ao dólar) e o câmbio fixo, durante um certo tempo, para permitir que as pessoas tivessem uma noção de valor da moeda e saíssem do overnight. E que saíssem da URV e viessem para o real.

"Se você vira uma figura pública, perde sua privacidade. Não tenho equilíbrio para viver sem minha privacidade"


Folha - E o que aconteceu?
Mendonça de Barros
- O sucesso tão grande subiu à cabeça das pessoas que estavam ali. Esqueceram que aquele instrumento de câmbio fixo era passageiro. Eles alegam que houve a crise do México. Após a estabilização, tinha que passar para um sistema de câmbio flutuante e isso não foi feito. Fiquei louco de tanto repetir isso. Como havia uma oferta vasta de recursos, foi fácil manter o câmbio fixo valorizado. A sociedade se aproveitou disso, porque as importações ficaram baratas, era a maior farra. Isso, de certa forma, impregnou-se politicamente dentro do governo. Mas sempre houve um grupo de pessoas, e o mérito disso é do Serra e do Beto (José Roberto Mendonça de Barros), meu irmão, que alertavam para o perigo. O Serra cansou e foi cuidar da vida, e o Beto ficou. Quando fui para lá, estava nesse grupo. O presidente da República fez a escolha. Uma escolha que você não pode criticar, porque o ministro da Fazenda, Pedro Malan, e o presidente do Banco Central, Gustavo Franco, garantiam a ele que não havia problema. E dois ou três chatos diziam o contrário. Quando veio a crise da Ásia, o presidente começou a entender o risco. Começou a preparar a transição, mas esse processo demorou demais.

Folha - E aí?
Mendonça de Barros
- Em função da crise da Rússia, decidiu-se mudar o regime cambial, só que aí havia uma crise internacional. E nós dissemos: "Para mudar o regime cambial agora, você tem que fazer um acordo com o Fundo", porque não tínhamos mais os mercados nos financiando.

Folha - Que tipo de acordo iriam propor para o FMI?
Mendonça de Barros
- Faríamos o acordo com o Fundo para mudar o regime cambial. Isso era o que estava combinado. Acontece que veio o grampo no BNDES e as pessoas que estavam se preparando para fazer a transição saíram. O presidente da República ficou sem a equipe que tinha e manteve a política. Só que em janeiro estourou tudo e aí a mudança foi feita de forma atabalhoada. Foi um problema seríssimo. Estamos hoje, graças a Deus, libertos dessa amarra do câmbio fixo.

Folha - O sr. é vice-presidente do PSDB. O que o partido deve esperar das eleições municipais?
Mendonça de Barros
- Pela primeira vez, temos um candidato escolhido um ano antes das eleições, o vice-governador Geraldo Alckmin. Um candidato que quer ser candidato. Ele tem personalidade política correta para ser prefeito. É firme e sério, é médico, foi deputado e foi prefeito em Pindamonhagaba. Tem experiência administrativa, o que é importante. Um dos meus trabalhos é ajudar a fazer o plano de governo dele.

Folha - Que qualidades deve ter um bom prefeito?
Mendonça de Barros
- O prefeito tem que estar junto da comunidade no sentido físico. Um prefeito, para mim, não pode usar terno e gravata.Tem que estar de tênis, calça jeans, andando pela rua. Levantar de madrugada para ir para o ponto do ônibus para sentir a cidade. Tem que entender os problemas da comunidade. E não pensar em política nacional ou internacional. A responsabilidade dele é melhorar a qualidade de vida do paulistano. Como a cidade é muito grande, para fazer isso ele vai ter que mobilizar a sociedade civil, empresários. Mas o prefeito tem que ter uma agenda curta.

Folha - O sr. gostaria de ser candidato à prefeitura?
Mendonça de Barros
- Não.

Folha - O sr. fala dos problemas do país com paixão. Tem vocação para a vida pública?
Mendonça de Barros
- Não. Tenho uma dificuldade muito grande com a imprensa. Não tenho a humildade necessária para exigir que um jornalista me faça perguntas só inteligentes e corretas. Além do que, a maioria dos jornalistas tem uma predisposição para considerar que quem está no governo está lá para fazer alguma coisa errada. Existe um preconceito. E, se você vira uma figura pública, perde sua privacidade. Não tenho equilíbrio para viver sem minha privacidade. Ajudar um candidato, ótimo. Mas ir para dentro do governo, passar por todo esse bombardeio de novo, não.

Folha - Qual o seu hobby?
Mendonça de Barros
- Ler. Atualmente estou lendo todos os livros de Manuel Castells, um sociólogo espanhol que escreve sobre a sociedade na Internet.

Folha - O que o sr. tem se questionado?
Mendonça de Barros
- Se eu faria tudo de novo. É uma pergunta que eu me faço. Porque, no fundo, saímos do setor privado, fomos para lá, um trabalho infernal, longe da família, um esforço danado para fazer a coisa direito e de repente você se envolve num turbilhão, começam a falar da sua honra. Mas sou realista. Política é isso. Se eu voltaria a fazer a mesma coisa hoje? A resposta é não.

Folha - O que mais gosta e o que mais detesta em si mesmo?
Mendonça de Barros
- O que eu mais gosto em mim é o entusiasmo de fazer as coisas e o que eu mais detesto é que a minha língua é solta demais.

Folha - O que gostaria de mudar no mundo?
Mendonça de Barros
- Se eu pudesse mudar o mundo, tornaria o socialismo possível.


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