São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997.

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LANTERNA NA POPA
Sessões espíritas

ROBERTO CAMPOS

"A única razão para não se privatizar a Vale do Rio Doce é que ela já foi privatizada pelos funcionários, para os funcionários" Gilberto Paim

Nada mais parecido com uma sessão espírita do que os debates na Câmara dos Deputados sobre a privatização da Vale do Rio Doce. A argumentação dos esquerdistas e nacionalistas faz ressuscitar o espírito de Artur Bernardes, rabugento e ditatorial, que governou em contínuo estado de sítio entre 1922 e 1926. Alegando o "interesse estratégico" de minério de ferro, Bernardes criou toda a sorte de obstáculos a Percival Farquhar, fundador da Itabira Iron Ore Mining, um vigoroso gênio empresarial. Bernardes queria condicionar a exportação de minério a um compromisso de implantação siderúrgica. Como o mercado interno de ferro e aço era insuficiente para investimentos em escala econômica, acabamos estiolando a exportação e atrasando a industrialização. Farquhar era um visionário. Bernardes, um obscurantista.
Quem teve vida longa como eu não pode deixar de ficar de "saco cheio" com nosso "fetichismo estratégico". O fetiche estratégico de minha primeira infância era o minério de ferro. Nos anos 40, o fetiche passou a ser Volta Redonda, nossa primeira grande usina integrada de aço. Como jovem secretário da Embaixada em Washington durante a Segunda Guerra Mundial, minha cansativa tarefa era peregrinar pela confusa burocracia americana, tentando garantir prioridades na fabricação e exportação de equipamentos para a construção da Cia. Siderúrgica Nacional. A burocracia norte-americana queria relegar a segundo plano o acordo entre os presidentes Roosevelt e Vargas para montagem de CSN, procurando direcionar equipamentos e matérias-primas para as grandes batalhas com os japoneses no Pacífico.
No segundo governo Vargas, em 1953, surgiria um novo fetiche estratégico -a Petrossauro-, que passou de produtora de fétido combustível a símbolo religioso. Até hoje se reveste de uma aura de sacralidade. Enquanto a Petrossauro não for privatizada, o país não poderá ser acusado de sucumbir à racionalidade ou ao neoliberalismo. Nos debates sobre a petroteologia, o mais engraçado é a repetitiva afirmação do clube de lobistas da Petrossauro -a Aepet- que o dinossauro investiu até hoje US$ 82 bilhões, mais que a soma de todos os investimentos das multinacionais no Brasil! Esses fanfarrões não percebem a gravidade de sua autocondenação: se a empresa investiu US$ 82 bilhões e seu valor atual de mercado é de US$ 17 bilhões, sugere-se que o país jogou fora US$ 65 bilhões!
Nos anos 70 surgiu um novo fetiche estratégico: o acordo nuclear com a Alemanha, que transformaria o país numa potência nuclear. O sonho secreto e inconfessado dos militares era fabricarmos uma "bombette" atômica. Já havia prenúncios dessa degradação mental quando, no governo Kubitschek, o deputado Renato Archer lançou a campanha da "monazita é nossa". Possuidores abundantes de tório, o Brasil e a Índia se tornariam potências nucleares, escapando às humilhações do subdesenvolvimento! Hoje a serventia principal dessas áreas é energizar os testículos dos turistas nas praias de Guarapari.
Na década dos 80, o "fetiche estratégico" foi a política de informática. Em vez de priorizarmos a difusão do "uso" de computadores, o desenvolvimento de "softwares" e a aquisição de capacidade tecnológica na microeletrônica, corporificamos nosso fetichismo na fabricação do "hardware". Claro que quebraríamos a cara... O mercado interno não tinha escala para produção econômica, a tecnologia estava em rápido fluxo e, vedados os investimentos de multinacionais, ficamos sem acesso aos mercados externos.
Na década dos 90, sinto-me de volta à primeira infância: os argumentos contra a privatização da Vale do Rio Doce são os mesmos aventados por esse fantasma ressurrecto -Artur Bernardes- há três quartos de século: a importância "estratégica" do minério de ferro, mineral que compõe nada menos que 6% da crosta terrestre. Isso, na era da microeletrônica e da sociedade do conhecimento!
O debate na Câmara não é só uma chatíssima sessão espírita. É um total falseamento da questão, pela falta de habilidade do governo na comunicação propagandística. Não se trata de privatizar a Vale do Rio Doce! Ela já está privatizada pelos funcionários, em favor dos funcionários! Trata-se apenas de uma "abertura" para os não funcionários -a saber, investidores, contribuintes e o "povo" em geral.
Por que a Vale do Rio Doce já está privatizada em favor dos funcionários? Basta olharmos os balanços dos últimos cinco anos -1991-1995. O principal acionista -o Tesouro- só é majoritário no suprimento de capital (51%). É absurdamente minoritário na participação dos lucros, pois só recebeu transferências líquidas de R$ 178 milhões, enquanto os lucros distribuídos aos não-acionistas -diretores e funcionários- montaram a R$ 440 milhões. Os funcionários sugam a empresa por três dutos: salários bem superiores à média nacional, participação nos lucros equivalente a mais do dobro dos lucros do Tesouro e generosas contribuições (R$ 518 milhões) ao fundo de pensões Valia. Essa generosidade não impediu que a Valia, segundo cálculos da Secretaria de Previdência Complementar do MPS, tenha uma "insuficiência de cobertura" de R$ 535 milhões, o que só se pode explicar por aposentadorias polpudas e precoces.
Realizando o valor patrimonial pela venda da Vale, o Tesouro falido aliviaria seus pesados encargos de rolagem da dívida interna e liberaria recursos para aplicações fundamentais em educação, saúde, segurança e justiça.
Uma outra bizarria do momento é o encaminhamento dos causídicos corporativistas da OAB e dos nobres prelados da CNBB contra a venda da Vale. Nenhuma dessas categorias se notabilizou por conhecimentos de macroeconomia ou análise de balanços. Imaginar-se-ia que os advogados estivessem obsessivamente concentrados em propor reformas no Judiciário. Este é talvez o mais ineficiente dos Poderes, aumentando os "custos de transação" da sociedade pela lerdeza dos julgamentos, pela processualística obsoleta, pela proliferação de liminares contraditórias e pela denegação de justiça embutida na justiça tardia. Em vez disso, organizam passeatas contra a privatização de estatais!
Imaginar-se-ia também que os bispos estivessem superpreocupados em proteger seu rebanho contra as incursões das seitas protestantes. Estas parecem ter entendido que o capitalismo é o pior dos sistemas econômicos, excetuados todos os outros; que o planejamento familiar contribui para evitar a proliferação de pobres e que os criadores de riqueza merecem algum respeito pois sem eles só se consegue distribuir pobreza.
Como católico, quero que os bispos me iluminem o caminho das minas da fé e não das minas de ferro...

Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).

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