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ENTREVISTA
Economista sustenta que reformas são fiscalistas e socialmente injustas, diz que "fase dois" é factóide e critica atuação do PSDB
PT abraça agenda morta de FHC, diz Mendonça
Marlene Bergamo/Folha Imagem
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O economista Luiz Carlos Mendonça de Barros durante entrevista na sede do Instituto Sérgio Motta (no retrato à dir.), em São Paulo |
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
Luiz Inácio Lula da Silva atirou
o programa do PT no lixo e elegeu
como prioridade de governo uma
agenda que era tucana, mas que
hoje não serve mais nem mesmo
ao PSDB. As reformas ora em curso no Congresso são muito mais
um ritual de passagem do PT para
se credenciar diante dos mercados do que uma necessidade real e
urgente do país. A transição para
a chamada "fase dois" da economia, mantida a atual equipe técnica à frente da Fazenda, não passa
de mais um factóide solto no ar.
As posições acima são todas do
economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, 60, ex-ministro das
Comunicações de Fernando Henrique Cardoso e um dos principais formuladores no país do chamado "desenvolvimentismo", na
falta de palavra menos batida.
Publisher do site Primeira Leitura e colunista da Folha, Mendonça acaba de assumir a presidência do Instituto Sérgio Motta,
o que marca sua volta à política
partidária. O primeiro documento do instituto, um paper de 24
páginas, tira uma radiografia do
governo Lula e traça um plano de
ação para os tucanos na oposição.
Num e noutro caso, Mendonça
faz petistas e tucanos saltarem sobre brasas, como castanhas na frigideira de um mestre-cuca. A seguir a entrevista, concedida à Folha na última quinta-feira.
Folha - No primeiro documento
de responsabilidade do Instituto
Sérgio Motta sob a sua presidência,
intitulado "Um Plano de Ação para
o PSDB", faz-se o diagnóstico do
governo Lula e do desempenho do
seu partido na oposição. O texto
conclui: "Temos de decidir: seremos um partido com um projeto de
poder ou uma ONG com projeto de
gerência?". E então?
Luiz Carlos Mendonça de Barros -
Espero que o PSDB opte por ser
um partido, é claro, que tenha, como diria o presidente da Câmara,
João Paulo Cunha -só que num
contexto infeliz-, um projeto de
poder. Peguemos o caso das reformas. Os tucanos são favoráveis
ou contrários? Alguns dizem que,
em nome da coerência, têm de defender as medidas. Ok, mas a coerência só pesa nos ombros do
PSDB e do PFL? O que faria o PT
se obrigado, também ele, à coerência? O Brasil deve dar ao PT e a
Lula o monopólio da incoerência?
Avancemos um pouco: será que
essa reforma que aí está é a mesma de FHC, como dizem? Pois
sustento que ela é mais conservadora, mais arraigadamente fiscalista e socialmente mais injusta. O
corte de benefícios em aposentadorias pode chegar a 50%. E isso
nada tem a ver com marajás. Onde estão as regras de transição?
Com a votação gigantesca de Lula,
não se poderia ter proposto uma
verdadeira reforma do Estado? O
PT contemplou em sua reforma a
melhoria do serviço público?
Folha - No mesmo documento, fala-se que o governo Lula ficou apenas com a agenda já superada do
governo FHC. Seria preciso explicar: superada, embora não inteiramente realizada. Qual seria, afinal,
a agenda nova ou inovadora?
Mendonça de Barros - Veja bem,
Lula e o PT acordaram tarde, como reconheceu o próprio presidente outro dia. E, por isso, comem frio. No curto prazo, esse
governo foi obrigado a resolver
seu déficit de credibilidade com
os mercados. Mas teve de fazê-lo
com compromissos de longuíssimo prazo também, que vai tornando mais difícil, até a inviabilidade, uma mudança de modelo.
Veja a questão do superávit primário no orçamento plurianual.
Ora, por acaso há alguém relevante no Brasil que advogue a irresponsabilidade fiscal como meio
ou meta? Por acaso há alguma
força política relevante que esteja
disposta a flertar com a inflação?
Desconheço. Esse é ainda o terceiro tempo do malanismo.
Ora, as reformas que o presidente Lula está propondo poderiam ter sido levadas a efeito antes. A colaboração do PT teria sido muito importante. O PT preferiu, e cito Lula de novo, o caminho das bravatas.
Sim, temos de equacionar o
problema da Previdência, temos
de pensar numa maior racionalidade fiscal. Mas isso são apenas
instrumentos muito desejáveis.
Não se pode empenhar a governabilidade e o futuro num projeto
de reformas solto no ar.
Você me pergunta a nova agenda: olhe, parte dela não tem nada
de novo. É preciso reduzir a vulnerabilidade externa -e isso não
tem nada a ver com o salário dos
aposentados, não numa relação
de causa e efeito ao menos; é preciso ter uma política industrial,
com efeito importante sobre o balanço de pagamentos, que torne o
país menos sujeito às crises internacionais. E isso também não é
novo. E há, sim, algo de absolutamente novo: precisamos decretar
uma espécie de estado de emergência social, levando o Estado
para as áreas conflagradas do
país, para aumentar os níveis de
justiça e segurança onde há um
verdadeiro apagão de Estado. Essa parte nova da agenda o PT ainda não percebeu. Prefere fazer
proselitismo contra o Judiciário,
com generalizações inúteis.
O PT transformou a agenda social num blefe publicitário. Tudo
bem que o PT jogasse seu programa no lixo -era muito ruim
mesmo-, mas precisava pegar
justamente aquele que já não servia nem mais ao PSDB?
Folha - Quer dizer que a agenda
das reformas não tem essa urgência de que fala o governo?
Mendonça de Barros - Comecemos por separar o relevante do irrelevante. A reforma tributária
como foi proposta é, com efeito, o
patinho feio da conversa. Ninguém liga muito para ela, a não
ser alguns governadores que adorariam equalizar o seu ICMS pelo
topo. A reforma tributária que
permite ao Brasil ficar mais competitivo na economia e mais justo
socialmente não tem nada a ver
com a proposta apresentada.
Quanto à reforma da Previdência... Você realmente acredita que,
fosse José Serra o presidente -e
não estou fazendo aqui lamento
nenhum, apenas constatando-,
esse tema seria o ponto central de
seu plano de governo? Não seria.
Quer dizer que, então, à eleição do
tucano sobreviria o caos? Ora...
A reforma da Previdência, a
única que importa para os mercados, tornou-se o ritual de passagem do PT para o mundo adulto.
O PT vestiu as calças compridas,
aparou a barba e o cabelo, vestiu
Armani e se apresentou ao FMI e
aos mercados. As reformas, como
uma guerra de vida ou morte, vieram para compensar todas as bobagens que o PT disse no passado.
Folha - O sr. fala em "conselho de
governadores", numa alusão ao
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, para identificar
uma suposta estratégia do governo Lula de dividir o ônus das reformas. Mas os governadores deveriam ter outro papel ou atitude
nesse processo? E não lhe parece
que o desgaste pelas reformas já
está associado à incoerência do PT,
sem prejuízo de que o governo tenha feito o cálculo das perdas e ganhos e saído dessa vitorioso?
Mendonça de Barros - Aqui é preciso pensar com calma e entender
os movimentos que estão, digamos, abaixo da crosta. São grandes ajustes ideológicos, eu diria.
Os sismógrafos do jornalismo até
podem registrar baixa atividade,
mas ela há de fazer grande diferença no futuro. Sim, os governadores vão arcar com o custo das
reformas. O PT não conseguiu se
esconder atrás do Conselho de
Desenvolvimento Econômico e
Social e arrastou consigo os governadores. Ora, coitados! Premidos por sua folha de pagamentos,
às voltas com seus próprios inativos, não tinham muito o que fazer
também. O que quer Lula, com
sucesso até agora? Os governadores ficam com o peso das reformas, e ele fatura o ethos da igualdade, do fim dos privilégios. O PT
sofrerá desgaste? É possível que
sim. Mas será desgaste o bastante
para inviabilizá-lo eleitoralmente? É possível que não.
Lula tem ainda uma força simbólica formidável. Consegue falar
acima dos partidos e do próprio
governo. Repare como há um
tom palanqueiro em tudo o que
diz, como se não fosse ele o governo. Mas o fundamental, de fato,
que precisa ser entendido, é que o
PT está abrindo mão da classe
média radicalizada, daquela eternamente presa à cultura da reclamação, e buscando novas bases
sociais. Num extremo, os miseráveis; no outro, as elites tradicionais, com as quais aprendeu a
compor de maneira notável.
Folha - Fala-se numa "fase dois"
do governo Lula, que teria como eixos o crescimento e a geração de
empregos. O sr. acredita nisso?
Mendonça de Barros - Não acredito nesta chamada "fase dois"
enquanto o núcleo técnico do Ministério da Fazenda continuar o
mesmo. Conheço muito bem o
pensamento econômico desses
técnicos. Para eles, a "fase dois"
resume-se a alguns ajustes na institucionalidade econômica, como
a nova lei das falências. O resto fica com o mercado livre.
Mesmo que a ala esquerda do
PT consiga montar alguns programas específicos, como o do
microcrédito, eles não mudam as
limitações que temos na esfera
macroeconômica e a presença da
mortal volatilidade externa. No
fundo, a chamada "fase dois" não
passará, nas condições atuais, de
um factóide de opinião pública.
Folha- Maria da Conceição Tavares, ligada ao PT, rompeu a barreira do silêncio e atacou duramente o
documento em que a Fazenda define suas diretrizes. De sobra, desancou a concepção "foquista" que parece estar se saindo vitoriosa na
elaboração das políticas sociais...
Mendonça de Barros - Ora, é claro que as críticas da professora
Conceição Tavares fazem sentido.
No site Primeira Leitura, chamamos aquele documento de "O
verdadeiro programa do PT", no
qual ninguém votou. Ou agora
vão dizer que também aquele texto está na Carta ao Povo Brasileiro? Essa tal carta, aliás, tornou-se
um verdadeiro "work in progress". Se contemplasse tudo o
que dizem que ela autoriza, seria
maior do que o "Mahabarata".
Sobre as políticas sociais focadas... Bem, vamos pôr foco nesse
debate. No mérito, a professora
está certíssima. A tradição social-democrata e de esquerda, com
efeito, pensa nas políticas sociais
segundo o critério da universalização, da indistinção, oferecendo-as como direitos básicos. É a
direita, o pensamento conservador, que teorizou sobre a focalização dos gastos públicos. A sua
versão mais conhecida no debate
são as chamadas medidas compensatórias, que receberam esse
nome justamente porque são implementadas para compensar
ajustes na economia de caráter liberal, que sempre fazem vítimas.
Numa sociedade desigual como
a do Brasil, no entanto, é preciso
considerar que também os serviços do Estado acabam sendo
apropriados pelos que dispõem
de mais renda, realimentando a
desigualdade. Esses próprios serviços acabam se transformando
em meio de apropriação de renda
por quem já tem mais. A inversão
óbvia está à vista: os mais ricos estudam em universidades gratuitas, e os mais pobres pagam. Mas
eis a questão: será que é essa matização que estou fazendo aqui que
está no documento? Não é. Afinal,
quais são os serviços universalizados -ainda que mal universalizados- que seriam extintos em
benefício da focalização? Focalização, de resto, para quem? Repare: na campanha, o PT dizia haver
quase 50 milhões de miseráveis
no Brasil. Hoje, já fala que podem
ser pouco mais de 20 milhões. Diz
o Duda Mendonça que "a gente
sente, o país está diferente". Será
que retiramos 30 milhões de pessoas da miséria em cinco meses?
Folha - O sr. acha que o PSDB e o
PFL estão aparelhados para fazer
oposição ao governo Lula? Os tucanos deveriam aceitar esse alinhamento automático com os liberais,
ou parecem mesmo estar a reboque deles em vários momentos?
Mendonça de Barros - No momento, sejamos francos, a impressão é de que não estão. E aqui
é preciso fazer um pouquinho de
história. O PSDB sofreu o mesmo
cerceamento do debate que hoje
marca o PT. Não houve processos
públicos de expulsão porque os
tucanos não têm tradição nem
formação stalinista. Mas houve,
sim, desqualificação, utilização de
áulicos na imprensa para jogar tachas e pechas nos que divergiam
da linha oficial do governo. Afinal, eis-me aqui, como a carregar
nas costas uma cruz chamada
"desenvolvimentismo". Ainda há
cretinos por aí que acreditam que
eu toparia trocar um pouco de inflação por algum crescimento.
Veja: o PSDB elegeu-se sob os
justificadíssimos louros do Plano
Real. E duas vezes: a primeira,
com esperança; a segunda, com
medo. Mas cadê a tradição de militância partidária, de debate, de
confronto? Aí, aconteceu uma
coisa curiosa: no embate com um
PT que era primitivo demais, dado a bravatas e à luta pelo poder a
qualquer custo -eles assim se
definem, certo?-, o PSDB acabou indo muito para a direita.
Nos valores ideológicos? Nem
tanto. Mas foi, sim, no debate econômico. Agora, quando o PT lhe
rouba não o programa, mas o seu
manual de má sobrevivência na
selva, o PSDB acusa o roubo, mas
parece um pouco atarantado.
Ora, roubar manuais vencidos é
feio, mas não é crime. Será que o
PSDB não teria nada a dizer fora
das reformas? Sim, o PT fez estelionato eleitoral. Mas está feito. Isso é um problema do partido com
seus eleitores.
Folha - Como o sr. vê as formas de
aliciamento do governo para formar sua maioria no Congresso? E
como vê a composição política dessa presumida maioria, onde entram peemedebistas e malufistas,
liberais e socialistas. Dirceu está
trabalhando com eficiência?
Mendonça de Barros - Comecemos pelo fim. Não há dúvida de
que o José Dirceu é um operador
brilhante. Por isso mesmo, quem
decidir lhe fazer oposição há de
tomar cuidado. A sua resposta,
quando confrontado com a contradição entre o que defende hoje
e o que defendia no passado -"E
se mudei? E daí?"- é algo mais
do que realismo, não? Veja: isso é
como abrir a caixa de Pandora.
Soltam-se todos os males do
mundo. Como lhe cobrar a palavra empenhada? Se o passado não
existe, então tudo é possível, não
é? Dirceu se torna, na prática, o inventor do presente eterno na política em nome do futuro.
A raiz desse comportamento é
profundamente autoritária. Falo
de autoritarismo como projeto
político. Sérgio Motta poderia parecer ríspido no trato, até autoritário nas relações pessoais, mas
sempre que falou o equivalente a
um "E daí?", o fez para o governo,
para fazer avançar a questão social. O "E daí?" do Dirceu me parece regressivo, para justificar o
vale-tudo. Se você me perguntar o
que o PC do B do finado João
Amazonas tem a ver com o PP de
Paulo Maluf, não sei. E não me venham com o interesse nacional.
Folha - Como o sr. vê o expurgo
dos chamados radicais do PT?
Mendonça de Barros - Olhe, eu
poderia, confortavelmente, me
esconder em dois biombos. Poderia dizer que é um assunto interno
do PT e que Heloísa Helena, Babá
e Luciana Genro expressam convicções talvez nem tão democráticas assim. Mas vou fugir dessa facilidade. É uma vergonha o que
estão fazendo. É uma reedição cabocla, absurda, mesquinha dos
Processos de Moscou. É um misto
de escalada stalinista e tara fiscalista. Nunca se viu nada assim antes. Não sou petista. Se fosse, estaria lutando contra essa barbaridade. Como pessoa de convicções
profundamente democráticas
-e, felizmente, perfaço a trilha
contrária à de muitos: sinto-me
mais progressista a cada ano-,
repugna-me o trabalho de queimação que se orquestra na mídia
contra esses parlamentares, reduzindo-os a uma caricatura.
Espere aí: eles estão ou não vocalizando o que foi decidido no
encontro nacional do partido?
Que eu saiba, sim. Ou será que, de
novo, a Carta ao Povo Brasileiro
também prevê expulsões? Não sei
o nome disso. Mas certamente
não é inocência.
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