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São Paulo, terça-feira, 27 de maio de 2003

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ENTREVISTA

Economista sustenta que reformas são fiscalistas e socialmente injustas, diz que "fase dois" é factóide e critica atuação do PSDB

PT abraça agenda morta de FHC, diz Mendonça

Marlene Bergamo/Folha Imagem
O economista Luiz Carlos Mendonça de Barros durante entrevista na sede do Instituto Sérgio Motta (no retrato à dir.), em São Paulo


FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

Luiz Inácio Lula da Silva atirou o programa do PT no lixo e elegeu como prioridade de governo uma agenda que era tucana, mas que hoje não serve mais nem mesmo ao PSDB. As reformas ora em curso no Congresso são muito mais um ritual de passagem do PT para se credenciar diante dos mercados do que uma necessidade real e urgente do país. A transição para a chamada "fase dois" da economia, mantida a atual equipe técnica à frente da Fazenda, não passa de mais um factóide solto no ar.
As posições acima são todas do economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, 60, ex-ministro das Comunicações de Fernando Henrique Cardoso e um dos principais formuladores no país do chamado "desenvolvimentismo", na falta de palavra menos batida.
Publisher do site Primeira Leitura e colunista da Folha, Mendonça acaba de assumir a presidência do Instituto Sérgio Motta, o que marca sua volta à política partidária. O primeiro documento do instituto, um paper de 24 páginas, tira uma radiografia do governo Lula e traça um plano de ação para os tucanos na oposição. Num e noutro caso, Mendonça faz petistas e tucanos saltarem sobre brasas, como castanhas na frigideira de um mestre-cuca. A seguir a entrevista, concedida à Folha na última quinta-feira.
 

Folha - No primeiro documento de responsabilidade do Instituto Sérgio Motta sob a sua presidência, intitulado "Um Plano de Ação para o PSDB", faz-se o diagnóstico do governo Lula e do desempenho do seu partido na oposição. O texto conclui: "Temos de decidir: seremos um partido com um projeto de poder ou uma ONG com projeto de gerência?". E então?
Luiz Carlos Mendonça de Barros -
Espero que o PSDB opte por ser um partido, é claro, que tenha, como diria o presidente da Câmara, João Paulo Cunha -só que num contexto infeliz-, um projeto de poder. Peguemos o caso das reformas. Os tucanos são favoráveis ou contrários? Alguns dizem que, em nome da coerência, têm de defender as medidas. Ok, mas a coerência só pesa nos ombros do PSDB e do PFL? O que faria o PT se obrigado, também ele, à coerência? O Brasil deve dar ao PT e a Lula o monopólio da incoerência?
Avancemos um pouco: será que essa reforma que aí está é a mesma de FHC, como dizem? Pois sustento que ela é mais conservadora, mais arraigadamente fiscalista e socialmente mais injusta. O corte de benefícios em aposentadorias pode chegar a 50%. E isso nada tem a ver com marajás. Onde estão as regras de transição? Com a votação gigantesca de Lula, não se poderia ter proposto uma verdadeira reforma do Estado? O PT contemplou em sua reforma a melhoria do serviço público?

Folha - No mesmo documento, fala-se que o governo Lula ficou apenas com a agenda já superada do governo FHC. Seria preciso explicar: superada, embora não inteiramente realizada. Qual seria, afinal, a agenda nova ou inovadora?
Mendonça de Barros -
Veja bem, Lula e o PT acordaram tarde, como reconheceu o próprio presidente outro dia. E, por isso, comem frio. No curto prazo, esse governo foi obrigado a resolver seu déficit de credibilidade com os mercados. Mas teve de fazê-lo com compromissos de longuíssimo prazo também, que vai tornando mais difícil, até a inviabilidade, uma mudança de modelo.
Veja a questão do superávit primário no orçamento plurianual. Ora, por acaso há alguém relevante no Brasil que advogue a irresponsabilidade fiscal como meio ou meta? Por acaso há alguma força política relevante que esteja disposta a flertar com a inflação? Desconheço. Esse é ainda o terceiro tempo do malanismo.
Ora, as reformas que o presidente Lula está propondo poderiam ter sido levadas a efeito antes. A colaboração do PT teria sido muito importante. O PT preferiu, e cito Lula de novo, o caminho das bravatas.
Sim, temos de equacionar o problema da Previdência, temos de pensar numa maior racionalidade fiscal. Mas isso são apenas instrumentos muito desejáveis. Não se pode empenhar a governabilidade e o futuro num projeto de reformas solto no ar.
Você me pergunta a nova agenda: olhe, parte dela não tem nada de novo. É preciso reduzir a vulnerabilidade externa -e isso não tem nada a ver com o salário dos aposentados, não numa relação de causa e efeito ao menos; é preciso ter uma política industrial, com efeito importante sobre o balanço de pagamentos, que torne o país menos sujeito às crises internacionais. E isso também não é novo. E há, sim, algo de absolutamente novo: precisamos decretar uma espécie de estado de emergência social, levando o Estado para as áreas conflagradas do país, para aumentar os níveis de justiça e segurança onde há um verdadeiro apagão de Estado. Essa parte nova da agenda o PT ainda não percebeu. Prefere fazer proselitismo contra o Judiciário, com generalizações inúteis.
O PT transformou a agenda social num blefe publicitário. Tudo bem que o PT jogasse seu programa no lixo -era muito ruim mesmo-, mas precisava pegar justamente aquele que já não servia nem mais ao PSDB?

Folha - Quer dizer que a agenda das reformas não tem essa urgência de que fala o governo?
Mendonça de Barros -
Comecemos por separar o relevante do irrelevante. A reforma tributária como foi proposta é, com efeito, o patinho feio da conversa. Ninguém liga muito para ela, a não ser alguns governadores que adorariam equalizar o seu ICMS pelo topo. A reforma tributária que permite ao Brasil ficar mais competitivo na economia e mais justo socialmente não tem nada a ver com a proposta apresentada.
Quanto à reforma da Previdência... Você realmente acredita que, fosse José Serra o presidente -e não estou fazendo aqui lamento nenhum, apenas constatando-, esse tema seria o ponto central de seu plano de governo? Não seria. Quer dizer que, então, à eleição do tucano sobreviria o caos? Ora...
A reforma da Previdência, a única que importa para os mercados, tornou-se o ritual de passagem do PT para o mundo adulto.
O PT vestiu as calças compridas, aparou a barba e o cabelo, vestiu Armani e se apresentou ao FMI e aos mercados. As reformas, como uma guerra de vida ou morte, vieram para compensar todas as bobagens que o PT disse no passado.

Folha - O sr. fala em "conselho de governadores", numa alusão ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, para identificar uma suposta estratégia do governo Lula de dividir o ônus das reformas. Mas os governadores deveriam ter outro papel ou atitude nesse processo? E não lhe parece que o desgaste pelas reformas já está associado à incoerência do PT, sem prejuízo de que o governo tenha feito o cálculo das perdas e ganhos e saído dessa vitorioso?
Mendonça de Barros -
Aqui é preciso pensar com calma e entender os movimentos que estão, digamos, abaixo da crosta. São grandes ajustes ideológicos, eu diria. Os sismógrafos do jornalismo até podem registrar baixa atividade, mas ela há de fazer grande diferença no futuro. Sim, os governadores vão arcar com o custo das reformas. O PT não conseguiu se esconder atrás do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e arrastou consigo os governadores. Ora, coitados! Premidos por sua folha de pagamentos, às voltas com seus próprios inativos, não tinham muito o que fazer também. O que quer Lula, com sucesso até agora? Os governadores ficam com o peso das reformas, e ele fatura o ethos da igualdade, do fim dos privilégios. O PT sofrerá desgaste? É possível que sim. Mas será desgaste o bastante para inviabilizá-lo eleitoralmente? É possível que não.
Lula tem ainda uma força simbólica formidável. Consegue falar acima dos partidos e do próprio governo. Repare como há um tom palanqueiro em tudo o que diz, como se não fosse ele o governo. Mas o fundamental, de fato, que precisa ser entendido, é que o PT está abrindo mão da classe média radicalizada, daquela eternamente presa à cultura da reclamação, e buscando novas bases sociais. Num extremo, os miseráveis; no outro, as elites tradicionais, com as quais aprendeu a compor de maneira notável.

Folha - Fala-se numa "fase dois" do governo Lula, que teria como eixos o crescimento e a geração de empregos. O sr. acredita nisso?
Mendonça de Barros -
Não acredito nesta chamada "fase dois" enquanto o núcleo técnico do Ministério da Fazenda continuar o mesmo. Conheço muito bem o pensamento econômico desses técnicos. Para eles, a "fase dois" resume-se a alguns ajustes na institucionalidade econômica, como a nova lei das falências. O resto fica com o mercado livre.
Mesmo que a ala esquerda do PT consiga montar alguns programas específicos, como o do microcrédito, eles não mudam as limitações que temos na esfera macroeconômica e a presença da mortal volatilidade externa. No fundo, a chamada "fase dois" não passará, nas condições atuais, de um factóide de opinião pública.

Folha- Maria da Conceição Tavares, ligada ao PT, rompeu a barreira do silêncio e atacou duramente o documento em que a Fazenda define suas diretrizes. De sobra, desancou a concepção "foquista" que parece estar se saindo vitoriosa na elaboração das políticas sociais...
Mendonça de Barros -
Ora, é claro que as críticas da professora Conceição Tavares fazem sentido. No site Primeira Leitura, chamamos aquele documento de "O verdadeiro programa do PT", no qual ninguém votou. Ou agora vão dizer que também aquele texto está na Carta ao Povo Brasileiro? Essa tal carta, aliás, tornou-se um verdadeiro "work in progress". Se contemplasse tudo o que dizem que ela autoriza, seria maior do que o "Mahabarata".
Sobre as políticas sociais focadas... Bem, vamos pôr foco nesse debate. No mérito, a professora está certíssima. A tradição social-democrata e de esquerda, com efeito, pensa nas políticas sociais segundo o critério da universalização, da indistinção, oferecendo-as como direitos básicos. É a direita, o pensamento conservador, que teorizou sobre a focalização dos gastos públicos. A sua versão mais conhecida no debate são as chamadas medidas compensatórias, que receberam esse nome justamente porque são implementadas para compensar ajustes na economia de caráter liberal, que sempre fazem vítimas.
Numa sociedade desigual como a do Brasil, no entanto, é preciso considerar que também os serviços do Estado acabam sendo apropriados pelos que dispõem de mais renda, realimentando a desigualdade. Esses próprios serviços acabam se transformando em meio de apropriação de renda por quem já tem mais. A inversão óbvia está à vista: os mais ricos estudam em universidades gratuitas, e os mais pobres pagam. Mas eis a questão: será que é essa matização que estou fazendo aqui que está no documento? Não é. Afinal, quais são os serviços universalizados -ainda que mal universalizados- que seriam extintos em benefício da focalização? Focalização, de resto, para quem? Repare: na campanha, o PT dizia haver quase 50 milhões de miseráveis no Brasil. Hoje, já fala que podem ser pouco mais de 20 milhões. Diz o Duda Mendonça que "a gente sente, o país está diferente". Será que retiramos 30 milhões de pessoas da miséria em cinco meses?

Folha - O sr. acha que o PSDB e o PFL estão aparelhados para fazer oposição ao governo Lula? Os tucanos deveriam aceitar esse alinhamento automático com os liberais, ou parecem mesmo estar a reboque deles em vários momentos?
Mendonça de Barros -
No momento, sejamos francos, a impressão é de que não estão. E aqui é preciso fazer um pouquinho de história. O PSDB sofreu o mesmo cerceamento do debate que hoje marca o PT. Não houve processos públicos de expulsão porque os tucanos não têm tradição nem formação stalinista. Mas houve, sim, desqualificação, utilização de áulicos na imprensa para jogar tachas e pechas nos que divergiam da linha oficial do governo. Afinal, eis-me aqui, como a carregar nas costas uma cruz chamada "desenvolvimentismo". Ainda há cretinos por aí que acreditam que eu toparia trocar um pouco de inflação por algum crescimento.
Veja: o PSDB elegeu-se sob os justificadíssimos louros do Plano Real. E duas vezes: a primeira, com esperança; a segunda, com medo. Mas cadê a tradição de militância partidária, de debate, de confronto? Aí, aconteceu uma coisa curiosa: no embate com um PT que era primitivo demais, dado a bravatas e à luta pelo poder a qualquer custo -eles assim se definem, certo?-, o PSDB acabou indo muito para a direita. Nos valores ideológicos? Nem tanto. Mas foi, sim, no debate econômico. Agora, quando o PT lhe rouba não o programa, mas o seu manual de má sobrevivência na selva, o PSDB acusa o roubo, mas parece um pouco atarantado. Ora, roubar manuais vencidos é feio, mas não é crime. Será que o PSDB não teria nada a dizer fora das reformas? Sim, o PT fez estelionato eleitoral. Mas está feito. Isso é um problema do partido com seus eleitores.

Folha - Como o sr. vê as formas de aliciamento do governo para formar sua maioria no Congresso? E como vê a composição política dessa presumida maioria, onde entram peemedebistas e malufistas, liberais e socialistas. Dirceu está trabalhando com eficiência?
Mendonça de Barros -
Comecemos pelo fim. Não há dúvida de que o José Dirceu é um operador brilhante. Por isso mesmo, quem decidir lhe fazer oposição há de tomar cuidado. A sua resposta, quando confrontado com a contradição entre o que defende hoje e o que defendia no passado -"E se mudei? E daí?"- é algo mais do que realismo, não? Veja: isso é como abrir a caixa de Pandora. Soltam-se todos os males do mundo. Como lhe cobrar a palavra empenhada? Se o passado não existe, então tudo é possível, não é? Dirceu se torna, na prática, o inventor do presente eterno na política em nome do futuro.
A raiz desse comportamento é profundamente autoritária. Falo de autoritarismo como projeto político. Sérgio Motta poderia parecer ríspido no trato, até autoritário nas relações pessoais, mas sempre que falou o equivalente a um "E daí?", o fez para o governo, para fazer avançar a questão social. O "E daí?" do Dirceu me parece regressivo, para justificar o vale-tudo. Se você me perguntar o que o PC do B do finado João Amazonas tem a ver com o PP de Paulo Maluf, não sei. E não me venham com o interesse nacional.

Folha - Como o sr. vê o expurgo dos chamados radicais do PT?
Mendonça de Barros -
Olhe, eu poderia, confortavelmente, me esconder em dois biombos. Poderia dizer que é um assunto interno do PT e que Heloísa Helena, Babá e Luciana Genro expressam convicções talvez nem tão democráticas assim. Mas vou fugir dessa facilidade. É uma vergonha o que estão fazendo. É uma reedição cabocla, absurda, mesquinha dos Processos de Moscou. É um misto de escalada stalinista e tara fiscalista. Nunca se viu nada assim antes. Não sou petista. Se fosse, estaria lutando contra essa barbaridade. Como pessoa de convicções profundamente democráticas -e, felizmente, perfaço a trilha contrária à de muitos: sinto-me mais progressista a cada ano-, repugna-me o trabalho de queimação que se orquestra na mídia contra esses parlamentares, reduzindo-os a uma caricatura.
Espere aí: eles estão ou não vocalizando o que foi decidido no encontro nacional do partido? Que eu saiba, sim. Ou será que, de novo, a Carta ao Povo Brasileiro também prevê expulsões? Não sei o nome disso. Mas certamente não é inocência.


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