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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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Na rua Rita Rodrigues, no Rio, em dez famílias entrevistadas, só duas pessoas tinham carteira assinada

Empobrecimento traz fogão a lenha de volta

ELVIRA LOBATO
DA REPORTAGEM LOCAL

O sinal mais surpreendente do empobrecimento causado pelo desemprego crônico é o reaparecimento do fogão a lenha em bairros de periferia do Rio de Janeiro. O botijão de gás, que custa entre R$ 27 e R$ 29, já não cabe no orçamento de muitos lares de baixa renda, onde a preocupação maior está em conseguir o que comer, e não em como cozinhar.
Na casa de nº 10 da rua Rita Rodrigues, no bairro Parque da Conquista, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, o fogão a gás está sem uso há dois meses porque os três membros da família se encontram desempregados. Eles sobrevivem graças a biscates, à ajuda de vizinhos e à cesta básica distribuída por uma igreja.
O fogão a lenha vem se tornando usual no bairro, mas há outros sintomas visíveis do estrago causado pelo desemprego, como a queda da auto-estima dos homens, o ócio dos jovens e o confinamento das pessoas no bairro, porque não têm dinheiro sequer para pagar as passagens de ônibus e procurar trabalho.

Caçar passarinhos
Nota-se ainda, na região, a volta de formas tipicamente rurais de subsistência, como capinar lotes ou caçar passarinhos para vendê-los na feira. Itamar Cirilo Assis, 40, vendeu um por R$ 10 na semana passada e comprou açúcar, café, leite e pão com o dinheiro. A limpeza de um lote também rende R$ 10.
A Folha escolheu, aleatoriamente, a rua Rita Rodrigues, no bairro Parque da Conquista, a 35 km do centro do Rio, para ver a extensão do desemprego. A rua contém apenas um quarteirão, onde, originalmente, foram construídas 12 casas.
Em dez famílias entrevistadas, havia duas pessoas com carteira assinada: o morador da casa 8, que é porteiro de um conjunto habitacional em Caxias e recebe salário mínimo, e o da casa 6, que é motorista de caminhão e ganha R$ 400 por mês. A mulher do porteiro, Marli Conceição Miranda, 41, perdeu o emprego de costureira três meses atrás e passou a vender roupas e bijuterias na vizinhança.
Das oito casas restantes, duas vivem da aposentadoria e pensão dos mais velhos; três só têm desempregados e sobrevivem de biscates; e três contam com pelo menos um membro da família trabalhando como autônomo.
O bairro nasceu em 1991, a partir da invasão de um terreno que pertencia aos supermercados Casas da Banha. Hoje ele tem ruas asfaltadas, casas de alvenaria e infra-estrutura de serviço básicos (luz, água e telefone). O presidente da associação de moradores local, Sérgio Moreno, afirma que cerca de 800 famílias vivem ali e que o bairro é pobre, mas tranquilo, porque não existe tráfico de drogas.
Questionado sobre a dimensão do desemprego na região, Moreno responde que é mais fácil contar os empregados do que os desempregados. "É difícil achar quem tenha carteira assinada aqui", resume. Na avaliação dele, a situação vem piorando desde o início do governo Fernando Henrique Cardoso.
Parte das residências da rua Rita Rodrigues foi dividida para acomodar mais de uma família, em geral parentes, deixando caótica a numeração das edificações. A situação, no entanto, é idêntica nas demais ruas.
Na casa com fogão a lenha, o pai, Sebastião Cardoso, 54, era estofador e está sem emprego definido há dez anos. A mãe, Maria Tereza Macedo, 52, já nem se lembra de quando abandonou o serviço de empregada doméstica, devido a problemas de saúde. O filho, Marcos Macedo, 19, está no primeiro ano do segundo grau.
Há várias famílias cozinhando eventualmente com o fogão a lenha no bairro, mas na casa de Eliane Luzia Alves da Silva, 66, que mora a cem metros da rua Rita Rodrigues, o fogão, construído com capricho fora da casa, tornou-se definitivo.
A família é composta por seis pessoas -a avó, os pais, dois filhos (de 34 e de 31 anos) e a neta (Daniele, de 10 anos)- mas as únicas fontes certas de renda são a pensão de R$ 230 da avó, e R$ 100 que a mãe recebe na condição de viúva do primeiro marido. Os três homens da casa estão desempregados.

Humilhação
O desemprego entre os homens inverte os papéis nas famílias e enfraquece a autoridade masculina, à medida que a mulher se torna o principal, quando não o único, provedor da casa.
Itamar Cirilo, que teve a carteira assinada pela última vez em janeiro de 2002, pede ao filho, de sete anos, que conte como a mulher, que é faxineira, referiu-se a ele naquela manhã. O garoto hesita, mas, diante da insistência do pai, responde: "Safado".
"Sou safado porque não tenho trabalho. Ouço isso e tenho de ficar calado", acrescenta o homem, que estudou até a 8ª série e se sente humilhado perante a família por estar há mais de um ano desempregado, dependendo do dinheiro da mulher para sobreviver.
Os homens dizem que está mais difícil para eles arrumar dinheiro do que para elas. De fato, a diária de uma faxineira em Duque de Caxias está por volta de R$ 40, ao passo que a diária de ajudante de pedreiro, em Parque da Conquista, varia de R$ 10 a R$ 15, e quando aparece a oportunidade, ela é disputada. Com isso, os homens vão assumindo o trabalho doméstico, enquanto as mulheres trabalham fora.

Falta de perspectiva
Assim que o carro de reportagem da Folha estacionou em frente à Associação de Moradores do Parque da Conquista e começou a circular a informação de que o assunto era desemprego, homens e mulheres se ofereceram para relatar a situação em que vivem.
A dificuldade financeira das famílias é visível até pelas promoções feitas pelo comércio. Na fachada de um salão de beleza, o cartaz anuncia que os clientes concorrerão ao sorteio de uma cesta básica.
Eram 10h da manhã e não havia jovem nas ruas. Segundo os pais, eles dormem até tarde porque não têm como ocupar o dia. "A única diversão deles é ficar de papo na pracinha. A praça começa a encher no final da tarde e só esvazia na madrugada", descreve o ex-guarda-costas José Luiz Benedito da Silva, 53, morador da casa de número 12. Ele se aposentou há dois anos, depois de três pontes de safena. Com uma pensão equivalente a três salários mínimos, considera-se privilegiado em relação aos vizinhos.
A falta do que fazer é um problema também para os adultos. A desocupação torna os dias longos, e os fins de semana, iguais aos dias úteis. Para passar o tempo, os homens jogam dominó e, como não têm dinheiro para as apostas, inventaram uma forma gratuita de tornar o jogo mais emocionante. Quem perde é obrigado a beber de um a quatro copos de água, dependendo de como o jogo foi encerrado: se foi uma vitória simples ou de "gabão", com as duas pontas fechadas com pedras iguais.
O desemprego traz uma outra consequência: os moradores ficam cada vez mais confinados no bairro porque não têm dinheiro para a passagem de ônibus. Marcos Macedo, 19, está há quatro meses sem sair de Parque da Conquista. A passagem de ônibus para o centro de Caxias ou para outros bairros do município custa R$ 2,80, ida e volta, e ele não dispõe sequer desses recursos.
No centro de Caxias há um restaurante popular mantido pelo Estado com refeição a R$ 1.
O mineiro José Alves Moreira, 55, morador da casa de número 14, está desempregado já faz um ano e meio. Ele diz que gostaria de levar a mulher e a neta ao restaurante, mas que não dá, porque gastaria com passagens quase o triplo (R$ 8,40) do preço da comida para os três.
Ele conta que a família está sobrevivendo do salário da mulher, que recebe R$ 220 por mês como servente de uma escola pública. O casal tem um filho com deficiência mental, que recebia pensão de um salário mínimo da União. José Moreira diz que o INSS suspendeu a pensão quanto descobriu que a mãe tinha emprego.
O mineiro usa uma expressão corriqueira no bairro ao ser indagado sobre quanto consegue ganhar com os biscates que faz como servente de obra e capinas: "mal dá para o sal", responde.


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