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São Paulo, quarta-feira, 27 de agosto de 2003

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JANIO DE FREITAS

Programa de perguntas

Ao acidente na base de Alcântara segue-se outra explosão: a dos despropósitos nas discussões motivadas pelo próprio acidente. Seria extraordinário se as discussões não ficassem girando em torno do problema de verbas, sem avanço em direção alguma, e como se nada mais merecesse ser considerado.
A mesma ligeireza com que o ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, atribuiu o acidente ao corte de verbas, feito pelo governo anterior no Programa Aeroespacial, foi utilizada por Luiz Inácio Lula da Silva para contestá-lo, lá do Peru, com três argumentos conjugados.
Os acidentes da Nasa não escapariam de uma citação, como se explicassem alguma coisa fora da própria Nasa. Em seguida, a explosão de Alcântara se justificaria porque "acidentes acontecem quando se está lidando com tecnologias sofisticadas". Não se sabe, no entanto, de forçosa relação de causa e efeito entre sofisticação tecnológica e acidentes, sendo fácil demonstrar o oposto até com exemplos tão óbvios como o da aviação e o dos nossos carros. E o argumento aparentemente definitivo: "Pode não haver recursos para o futuro, mas o foguete já estava pronto". Se estava pronto, não foi por falta de verba que explodiu.
Talvez seja assim, mas não é provável. O foguete adotava tecnologia primária, em comparação mesmo com níveis apenas médios de desenvolvimento aeroespacial. Se não fossem tão cortadas as verbas do programa, o foguete poderia ter tecnologia mais desenvolvida, por exemplo para abandonar o combustível sólido que é tido como fator de risco maior. Talvez fosse assim, mas não é certo. Porque outros fatores estariam em jogo, como a necessidade de especialistas científicos e técnicos em nível e número, tudo indica, maior do que o disponível.
O acidente de Alcântara suscita muitas perguntas de resposta difícil, senão impossível. Não é o mesmo que o problema de verbas cortadas para saneamento, saúde, educação -ou o Fome Zero. E suscita outras perguntas que podem não ser fáceis, mas são respondíveis. E, para isso, não exigem mais do que seriedade, isenção e o que chamam de espírito cívico.
Nessas perguntas, sim, está o que discutir. Já várias opiniões se insurgiram, inclusive com certa grosseria, contra os que indagam se não haveria melhor finalidade para as verbas postas em programas como o aeroespacial. Em país com as carências desumanas que o Brasil ostenta, tal indagação tem cabimento, sim. Em certos casos, é mesmo necessária. A quantas vai, se vai ainda, o programa do submarino nuclear brasileiro, do qual se sabe tanto quanto se sabe da utilidade que um tal submarino teria? E o Centro Nuclear da Marinha em Iperó, São Paulo, sobre cuja existência baixou o mistério ou o esquecimento injustificável?
Alcântara pode ser um fator de desenvolvimento científico e de faturamento, sem que seja necessário, para isso, deixar-se de discutir o Programa Aeroespacial. As hipóteses são inúmeras. Com a melhor localização mundial para lançamento de foguetes, pode permutar sua utilização estrangeira por informação tecnocientífica. E pode render muito com a prestação de seus serviços, desde que não seja sob as condições colonizadoras que os Estados Unidos exigem. Nisso tudo, a compra ou permuta de espaço em foguetes alheios, para os satélites brasileiros, é uma possibilidade interessante, sem exigir sacrifícios para um programa aeroespacial que o Brasil não tenha condições de desenvolver no nível, no ritmo e no custo que o justifiquem como investimento nacional.
Quando baixarem as cinzas de Alcântara, o programa que deve começar é o de perguntas. E não limitado à área militar ou a sua associação com cientistas interessados.


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