São Paulo, Domingo, 28 de Fevereiro de 1999
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O mundo encantado das escolas que FFHH visita

FFHH não tem sorte quando visita escolas. Pouco depois de sua primeira posse, em 1995, deu uma aula em Santa Maria da Vitória, a 950 km de Salvador. Quem viu a cena encantou-se. O prédio estava bonito (tinha sido reformado). A sala tinha ventilador no teto (acabara de chegar). Havia 34 alunos na aula (selecionados pela aparência). Deixou boa impressão e um ensinamento: "É preciso motivar os professores e pagar a eles um salário decente".
Três anos depois, havia professores com os salários médios de R$ 112 atrasados em até 18 meses. Quando uma comitiva de deputados da oposição visitou a escola, havia oito turmas sem professores. Encontraram uma criança de 14 anos que estava no colégio há dois, mas ainda não sabia ler. Semanas antes, nem filtro a escola tinha.
Nenhuma das desgraças escolares de Santa Maria da Vitória é da responsabilidade de FFHH, simplesmente porque não é o governo federal quem administra a rede escolar pública. Ele se meteu na encrenca por conta da paixão de seu governo pela virtualidade. Um incorrigível desejo de ser o que não é, num mundo que deveria existir, mas, infelizmente, não existe. D. Pedro 2º fazia bonito, visitando colégios, tomando lições, por que não repetir o gesto?
Em quatro anos de governo, FFHH percebeu quanto lhe custou o teatrinho de Santa Vitória. Sempre que a oposição quer pisar no calo do ensino básico, é só passar por lá, revisitando a marquetagem de 1995.
Não se pode pedir que FFHH conserte aquilo que não pode remediar, mas se podia supor que não se deixaria levar ao mesmo erro de administração da virtualidade educacional.
Na semana passada, deu-se uma uma recaída. FFHH foi a Vila Velha, no Espírito Santo, e lá inaugurou "simbolicamente" o ano letivo no laboratório de informática da escola João Calmon. Tirou retrato ao lado dos computadores e de crianças que vestiam camisetas dando-lhe boas-vindas. A escola é nova e foi um bonito trabalho da prefeitura. Terá 480 alunos em tempo integral e 300 no curso noturno.
Terá, porque FFHH inaugurou o ano letivo num Estado onde seu início foi retardado. As aulas nas escolas capixabas só começam a partir desta semana. Enquanto as escolas públicas de todo o país tinham aulas, mesmo não tendo computadores, o tucanato pousou numa onde havia computadores, mas aula que é bom, nada. As crianças diante das máquinas eram alunos virtuais, não estavam aprendendo coisa alguma.
Inaugurou-se um laboratório de informática numa escola cujos professores ainda não receberam o treinamento necessário para usar os computadores. O curso para capacitá-los, com até 120 horas de aprendizado, não começou. Depois que a comitiva presidencial retornou a Brasília, a escola João Calmon voltou à paz dos prédios novos e desabitados. À tarde, tinha apenas um segurança e, às vezes, seu diretor. Na melhor das hipóteses, os alunos vão mexer nas máquinas na segunda metade de março. Por enquanto, nem endereço eletrônico ela tem.
Há na escola dois laboratórios, cada um com 20 computadores. Ambos equipados de acordo com o ProInfo, do ProMec, sustentado pelo ProViúva. O presidente saudou-os, informando que "a grande linguagem de comunicação vai ser a telemática". Vai, mas a escola só tem duas linhas telefônicas. Admitindo-se que uma seja usada para os fins habituais, restará uma para a telemática (leia-se Internet). Compraram os computadores, mas ainda não se deram conta de que a relação de 40 máquinas para uma linha é absurda. Em geral, trabalha-se com cinco computadores por linha.
Essa decisão poderia ter algo a ver com economia. Afinal "gastamos mais do que arrecadamos". Nada mais verdadeiro. Nos laboratórios da escola João Calmon, o ProViúva instalou as máquinas num ambiente com ar refrigerado. É desperdício. Faz tempo que se pode usar um micro sem a necessidade dessa despesa adicional. Há computadores sem ar refrigerado em milhares de escolas públicas do país. Em outras, quando se julga conveniente fazer essa despesa, ela é discutida com a Associação de Pais e Mestres, e a comunidade comparece com algum dinheiro para custear a melhoria. A escola João Calmon, por nova, não tem APM.
Os laboratórios estão equipados com armazenadores de energia, permitindo que as redes fiquem no ar por algum tempo em caso de interrupção do fornecimento de eletricidade. São caixinhas que custam dinheiro e, de cada 100 usuários de computadores, 99 as dispensam. Custa pouco perceber que, se há dezenas de milhares de escritórios sem esses equipamentos, não há de ser numa escola pública que eles serão essenciais.
Em março de 1996, havia dois aviões presidenciais no aeroporto de Los Angeles. Um era o de FFHH, que estava de passagem, para receber o título de doutor "honoris causa" da Universidade de Stanford. O outro era o de Bill Clinton. Tinha ido ajudar a passar os cabos que ligariam uma escola à Internet. Ambos exerciam o lado espetacular da Presidência. Quando Clinton voou de volta a Washington, a escola onde suou a camisa estava ligada à rede mundial de computadores. Na semana passada, FFHH voou de volta a Brasília, e a João Calmon continuou, como antes, sem aulas. Quando elas começaram, suas linhas telefônicas continuarão sendo duas, com ar refrigerado.

Mercadante dá os números. O BC deve procurar os nomes


Foi triste a reação do Ministério da Fazenda e do Banco Central à denúncia do deputado Aloizio Mercadante (PT-SP) de que há cheiro de podre no movimento do câmbio no dia 12 de março, véspera da desvalorização do real.
O que o deputado denunciou foi uma coisa simples, mas sua compreensão exige um pouco de paciência com o calendário de janeiro. O real foi desvalorizado na manhã de quarta-feira, 13 de janeiro. Até o final da tarde de terça, dia 12, era possível comprar dólares a R$ 1,20.
Mercadante mostrou que, entre os dias 5 e 12, o sistema bancário vinha vendendo, na média, US$ 808 milhões por dia.
FFHH optou pela desvalorização imediata (sem marcar uma data precisa) e convidou o economista Francisco Lopes no dia 7, quinta-feira. Esse segredo foi bem guardado até a noite de domingo, talvez até o fim da tarde de segunda-feira, dia 11. Na terça, quando Gustavo Franco chegou ao BC, já informado de que sairia no dia seguinte, surpreendeu-se ao ver funcionárias chorando.
Nesse dia, o mercado inverteu a mão. Em vez de vender US$ 808 milhões, como vinha fazendo, terminou o expediente comprando US$ 206 milhões. Uma reversão de US$ 1 bilhão.
Só esse número seria suficiente para que o Banco Central investigasse o que aconteceu. Mercadante foi além. Mostrou conhecer o movimento diário das intrigantes operações cambiais de pelo menos nove bancos. Deu nome aos bois: Morgan, BBM, Beal (Banco Europeu para a América Latina), ING, Garantia, Matrix, Pactual, Boston e Citi. (Mercadante dá o benefício da dúvida ao movimento do Citi, pois não há nele a irritante regularidade que se acentua nos outros.)
Numa atitude louvável, o deputado se recusa a identificar nominalmente as posições de cada banco. Não quer quebrar sigilos nem concentrar suspeitas. Quer apenas saber o que houve. Também não quer caçar escândalo, quer que se descubra se alguém tirou partido de informações privilegiadas (põe privilégio nisso). Ele sabe que, apesar de esses bancos agirem como investidores, não se pode dizer que tenham sido os beneficiários das operações lucrativas que fizeram (põe lucrativas nisso). Eles podem ter agido como simples e legítimos intermediários de clientes.
Diante da denúncia, tanto o Ministério da Fazenda quanto o BC trataram o tema como se fosse coisa velha, portanto sem importância. Vaí aí um erro. O deputado Rubens Paiva foi assassinado em 1971 no quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. Esse crime é coisa velha, mas nem por isso deixa de ser importante descobrir quem o matou (de pancada) e onde o enterraram. Se o nome dos assassinos de Rubens Paiva ainda não é conhecido, isso se deve à eficiência do acobertamento que os protege há 28 anos.
Para que as coisas fiquem mais claras, vai publicado no quadro acima o movimento de 3 dos 9 bancos. Exemplificam a regularidade com que vinham vendendo dólares e a intensidade com que passaram a comprá-los, no dia 12, véspera da desvalorização. Era último dia da festa da moeda americana a R$ 1,20. Não estão identificados porque quebra de sigilo não é o negócio de Mercadante. Ele quer saber exatamente o contrário: o que houve com o sigilo da Viúva. Para que se meça o tamanho do negócio, tome-se o caso do banco A. Comprou US$ 57,9 milhões a R$ 1,20. Pagou R$ 69,5 milhões. Caso tenha decidido vendê-los a R$ 2,00 no pânico do dia 29 de janeiro, ganhou R$ 46,3 milhões em 17 dias, ou R$ 5.700 por minuto, em jornadas de oito horas. É dinheiro suficiente para pagar a folha de pessoal da Biblioteca Nacional por três anos e ainda sobra um bom troco.
Se o assunto é mesmo velho e irrelevante, os doutores Malan e Fraga poderiam descobrir quem foram os geniais operadores dessas transações, com o único e saudável propósito de integrá-los à cadeia produtiva da ekipekonômica.

ENTREVISTA

Kenneth Maxwell
(58 anos, historiador, autor do livro "A Devassa da Devassa")

Depois que o presidente da República insinuou que o governador Itamar Franco está se comportando como Joaquim Silvério dos Reis, a trama da Inconfidência Mineira ganhou uma renovada curiosidade. Qual foi a extensão da traição de Silvério?

Ele traiu os seus companheiros de conspiração, com a finalidade de tirar proveito pessoal. Há, contudo, outros aspectos que não reduzem a importância da traição, mas permitem um melhor entendimento do que aconteceu em Minas no final do século 18. Silvério nasceu em Portugal. Tinha sido contratador de impostos e devia uma fortuna à Coroa. Fez a denúncia em troca de uma anistia. Quando ele traiu, o visconde de Barbacena, governador de Minas, já tinha desmontado a bomba tributária que estimulava a conspiração. A Coroa Portuguesa impusera a Minas uma derrama, um imposto compulsório de 500 arrobas de ouro. A cobrança de tributos aos brasileiros para financiar déficits comerciais é coisa antiga.

O senhor acha que Barbacena sabia da conspiração antes de suspender a derrama?

Não há documento que prove isso. Eu tenho uma enorme curiosidade por Barbacena. Ainda há muito a descobrir nesse personagem. Ele era um iluminista, homem inteligente, de grande cultura. Tinha sido secretário da Academia de Ciências de Lisboa. Seu antecessor foi o abade Correia Serra, um grande intelectual, que viria a se tornar amigo de Thomas Jefferson. Seu sucessor foi José Bonifácio de Andrada. Depois da devassa da Inconfidência, voltou a Lisboa e caiu na obscuridade. Só reapareceu no início do século 19, apoiando a invasão de Portugal por Napoleão Bonaparte. Acabou sua vida, sendo visto como um traidor pelos seus compatriotas. Sua decisão de suspender a derrama foi um ato de sabedoria.

A historiografia brasileira insiste em dizer que Barbacena só suspendeu a derrama depois da denúncia de Silvério.

A documentação guardada em Portugal mostra que a suspensão da derrama foi comunicada por Barbacena à Câmara de Vila Rica no dia 14 de março de 1789, e a denúncia de Silvério, feita oralmente, é do dia seguinte. Esses são os documentos. A conjectura de que as coisas tenham acontecido na ordem inversa leva à subestimação da sabedoria de Barbacena ao suspender o confisco. Dá a impressão que foi oportunismo, para esvaziar a conspiração. Os documentos sugerem que ele suspendeu a arrecadação das 500 arrobas de ouro, porque percebeu o efeito desastroso que ela teria sobre a economia mineira, afundada numa recessão. É interessante observar como há uma certa continuidade na história. Barbacena vivia a estagnação da economia mineira, mas Lisboa, com uma ótica estrangeira, precisava de dinheiro para financiar suas importações. Portugal resolveu tomar o ouro dos brasileiros, porque não dava importância aos fatores estruturais da economia da Colônia. Eles acreditavam que tudo se resumia a uma questão de corrupção fiscal e privilégios. Supunham que a sociedade de Minas Gerais não mandava mais ouro para Lisboa porque não queria. Barbacena percebeu que não podia.


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