São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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ELIO GASPARI

Para baixo, volver

Lula não leva o governo para a esquerda nem para a direita. Leva-o para baixo. Enquanto consome seus dias seduzindo hierarcas do PMDB, perdeu cinco quadros da primeira linha do seu governo: Carlos Lessa (BNDES), Gastão Wagner (secretário-executivo da Saúde), Ana Fonseca (secretária-executiva da fome), Ricardo Kotscho (assessor de imprensa) e Frei Betto (assessor pessoal).
Dessas cinco pessoas, pode-se dizer de tudo: doidos, encrenqueiros, intransigentes, atrapalham por intrometidos ou por ausentes. Duas coisas são certas: todos os cinco têm mais de 30 anos de militância na defesa do interesse público e são exemplos de probidade pessoal. São todos pobres. O patrimônio dos cinco cabe na disputa de R$ 7 milhões que uma empresa do deputado Eunício de Oliveira, grão-senhor do PMDB, teve com o INSS.
Gastão Wagner, defenestrado da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, pode ser um símbolo do quinteto. Indica quem são as pessoas que estão saindo. Ele tem 52 anos, 21 de PT, uma cadeira de professor de medicina preventiva na Unicamp e três filhos. Não precisa do poder nem do seu aparelho. Dois anos de governo lhe custaram dinheiro e a paciência de manter duas moradias. Foi para Brasília levando o sonho de uma geração. Viu-se num governo que centraliza a compra de toneladas de material odontológico do programa Brasil Sorriso. Reuniu-se com uma ekipekonômica (Joaquim Levy e Bernard Appy), que trata o Sistema Único de Saúde como se fosse uma dissidência do Banco Santos. Viu-se submetido a uma marquetagem que privilegia o que pode ser apresentado como novidade em detrimento da boa política de saúde.
Exemplo: o governo gosta das farmácias populares, uma demagogia de alcance limitado, enquanto vai devagar com o Programa Saúde da Família. Lula prometeu aumentar o número de equipes de 17 mil para 32 mil. Passou-se metade do governo e implantaram-se apenas 5.000 equipes. O plano de qualificação dos serviços hospitalares, prometido para o Brasil, ficou restrito a três cidades, entre elas o Recife do ministro Humberto Costa.
É muito provável que Wagner tenha sido chamado ao Planalto para reuniões com marqueteiros com mais freqüência do que para discutir políticas de saúde.
Os governos podem ser medidos de duas formas: pelo tamanho das pessoas que entram e pelo tamanho das que saem. Lula conseguiu uma proeza: nunca tanta gente exemplar saiu em tão pouco tempo por motivos tão desqualificados.
Wagner foi para Brasília achando que o governo de Lula faria um Plano Marshall para quem trabalha e vive mal. Caiu fora do Plano Palocci para quem vive de juros sem trabalhar.

Surgiu no Ceará o fiscal das Bolsas

Veio do sertão cearense o remédio para proteger os programas sociais do governo. Seu inventor se chama Wilson Melo, tem 38 anos, dirige a rádio Jangadeiro FM e passa uma hora por dia no ar, conversando com a gente de Brejo Santo, um município de 40 mil habitantes, a 500 km de Fortaleza. Ele lê em seu programa cerca de cem nomes de beneficiários dos programas sociais da Viúva e pede aos ouvintes que identifiquem as pessoas que não precisam de ajuda.
A malha popular captura em torno de três espertalhões por dia. Numa crueldade com Suzana Vieira, pegaram a Maria do Carmo local, dona do depósito de materiais de construção, embolsando R$ 15 mensais do Vale-Gás. A diretora da escola municipal, duas vezes candidata a vereadora, também avança no Vale-Gás. Já a secretária da policlínica da família do prefeito, mulher de um pequeno criador e comerciante de leite, recebe o Bolsa-Escola. Na quinta-feira, Melo foi procurado por Jucélia Reinaldo dos Santos, uma jovem de 23 anos que ouvia a letra "M" quando soube que alguém recebe R$ 30 do Bolsa-Alimentação em nome de sua mãe, Miraneide.
Numa patifaria da corrupção, o prefeito de Brejo Santo é do PPS de Ciro Gomes, ministro da Integração Nacional. A maracutaia local segue um padrão. Em geral, quem frauda o cadastro da pobreza são funcionários da rede de proteção social do Estado: servidores, agentes de saúde e professores. Num governo em que o ministro da Fome tem um funcionário (DAS3) encarregado do seu cerimonial, isso não chega a ser uma surpresa.
São peças destinadas a preservar relações de poder que começam em Brejo Santo e terminam em Brasília, de onde saem de volta para os brejos desta vida. Sem Brejo Santo, Brasília não seria o que é.

Um andar de cima que soube ser elite

Depois de "Churchill", a biografia de Winston Churchill escrita por Roy Jenkins, e de "Cinco Dias em Londres", a narrativa do grande momento de sua vida, contada por John Lukacs, os perseguidores da memória de sir Winston têm mais um livro à disposição. É sua obra "Grandes Homens do Meu Tempo", o painel com 34 ensaios biográficos de figuras como Charles Chaplin, Leon Trotsky, Hitler e Lawrence da Arábia. Essas são as figuras de fora do Império, todas bem conhecidas. Os retratos de ingleses como Arthur Balfour, George Curzon e Herbert Asquith mostram os homens do esplendor de um império servido por uma elite inimitável. Asquith não falava de assuntos de Estado fora do expediente. Balfour, o primeiro governante inglês a andar de carro (Rolls Royce, por certo), era um mestre do estilo. Um exemplo: "Nesse discurso, houve coisas que são verdadeiras e outras que são banais: mas o que é verdadeiro é banal e o que não é banal não é verdadeiro".
Churchill escreveu os retratos entre 1928 e 1936, seus anos de ostracismo. Há em inúmeros perfis (sobretudo dos militares) ecos dos desentendimentos ocorridos durante a Grande Guerra. Em 1936, sir Winston ainda não sabia o tamanho de Churchill. Talvez isso explique uma solicitude próxima da bajulação de muitos personagens ingleses. Fora daí, sabia ser claro, sincero e mau como os adversários. Atribuía a Leon Trotsky "a ferocidade de Jack, o estripador". Na combatividade contra o inimigo comunista, ouve-se o primeiro-ministro que, a partir de 1940, enfrentou Adolf Hitler e, como sustenta John Lukacs, salvou a civilização ocidental.
São esboços biográficos da elite, para a elite, pela elite.
Acordar tarde? Todos os notívagos se justificam com o exemplo de Churchill, mas ele seguiu um dos costumes de Balfour, que depois do almoço conversava por meia hora e saía para jogar golfe ou tênis. Só uma elite que se respeita e autoglorifica poderia produzir um livro como esse e um autor como Churchill, capaz de ver mérito numa informação desse tipo.

Gushipress
O comissário Luiz Gushiken se tornou um reformulador das teorias de comunicação. Sua última realização foi suspender a circulação do boletim interno "Carta Crítica", onde falara-se mal do governo. Levou dois anos para descobrir as virtudes do cadeado.
Essa atitude se soma à edição de uma revista que noticiava o bom funcionamento do Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção. (Ele não existia.) Depois liberou um filme de TV mostrando as belezas do Programa Nacional de Agricultura Familiar. (Era fraude, filmada numa fazenda que nada teve a ver com o Pronaf.) Em setembro passado, distribuiu uma falsa entrevista do ministro Gilberto Gil, descascando "o fascismo das grandes corporações da mídia". Era falsa.
Depois de ter associado a Presidência da República a uma fantasia e a duas fraudes, a Gushipress aprendeu a apreciar as vozes do silêncio.

Curso Madame Natasha de piano e português
Madame Natasha tem horror a música e detesta arquivos, pois teme que alguém descubra sua data de nascimento. Ela condena a tortura do idioma e acaba de conceder mais uma de suas bolsas de estudo ao almirante Mario Cesar Flores, pela seguinte pérola a respeito da memória da ditadura:
"Não se trata de descartar o passado, cujo estudo deve ser poupado do sensacionalismo, nem de rejeitar a contribuição política e civil em geral, com vistas ao futuro; em particular, na contribuição para a identificação e avaliação política, administrativa e acadêmica dos cenários de preocupações verossímeis e das vulnerabilidades nacionais neles -como acontece nas grandes democracias, onde políticos e a intelligentsia dedicados ao tema são relevantes no macrodelineamento da segurança e defesa nacionais".
Madame ficou com uma saudade danada do professor Francisco Campos, o Chico Ciência, autor do preâmbulo do ato institucional de 9 de abril de 1964, que dizia:
"O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. [...] A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte".
Natasha gosta do professor Campos porque ele maltratava as instituições, mas deixava o idioma em paz.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e, como todos os demais idiotas, se estarreceu com a sabedoria sintética do líder do PMDB, deputado José Borba, quando especificou as exigências de seu partido nas negociações que Lula vem conduzindo para reorganizar o governo do PT Federal. Ele pede:
"Um ministério que conte com estrutura orçamentária e financeira, caneta e tinta. É o perfil que desejamos".
O idiota tem certeza de que o doutor Borba se esqueceu de uma coisa: algemas.

Registro
Ana Fonseca saiu do ministério da fome porque não quis misturar sua biografia com o prontuário de improvisações destinadas a saciar a fantasia marqueteira do Planalto.

O pulo
Há dois anos, Lula teve que apertar José Dirceu para que ele se decidisse entre a Casa Civil e a presidência da Câmara. Mostrou-lhe que arriscava ficar sem nada.
Pelo andar da carruagem, o comissário pode preferir a presidência da Câmara a uma Casa Civil com mais trabalho e menos conversa.
Para seus viperinos adversários no PT, mudando de prédio, Dirceu levaria consigo proezas das quais o governo não quer mais ouvir falar.
Como ensinou Guimarães Rosa, "sapo não pula por boniteza, mas sim por precisão".

Erro
Estava redondamente errada a notícia aqui publicada de que o Sindicato dos Empregados dos Correios de Pernambuco cobra 2% de contribuição assistencial aos trabalhadores da categoria.
Estava errada porque o Sintect-PE não cobra essa contribuição. Pior: esse sindicato é contra esse tipo de cobrança, condena sua prática por meio dos descontos em folha e denuncia qualquer expediente destinado a tomar esse dinheiro dos trabalhadores. Sua diretoria tem um compromisso de independência em relação ao governo e à ECT.
Ao sindicato, devidas desculpas. O que ele faz é exatamente o contrário do que se denominou de "tunga sindical".

* * *
A tunga está em outro lugar. Quem cobra 2% de taxa em cima de um salário mensal dos trabalhadores da ECT é o Sintect de São Paulo. Seu jornal, "O Ecetista", na edição de outubro, informou que os trabalhadores (sindicalizados ou não) tomariam uma mordida de 2% sobre um mês de salário, em quatro prestações. Quem não quiser pagar deve ir pessoalmente ao sindicato ou escrever quatro cartas registradas, com aviso de recebimento.
Um trabalhador que ganha R$ 1.000 mensais pagará R$ 20. Se quiser se livrar da mordida, morrerá em R$ 21,40 nas tarifas postais das cartas que os companheiros pedem.
Outra solução: os funcionários da ECT de São Paulo pediriam transferência para Pernambuco.

Brasil perigoso
Bem que o Itamaraty poderia se interessar pela derrubada das barreiras que dificultam o acesso de brasileiros ao Japão. O governo japonês exige um visto exclusivo para cada entrada no país. Faz isso com os brasileiros enquanto dispensa os cidadãos de 59 nações da apresentação de vistos. Entre eles Argentina, Chile, Lesoto e Tunísia.
Mais: os consulados exigem a apresentação de uma cópia integral da declaração de Imposto de Renda dos interessados. Exigência ilegal pela legislação brasileira, impertinente de acordo com os bons modos do mundo.
Desde os anos 70, cerca de 300 mil brasileiros foram viver legalmente no Japão. No início do século 20, quando o andar de cima do Mikado quis se livrar de um pedaço do seu andar de baixo, o Brasil acolheu 250 mil japoneses.
Em 2008, os dois países comemorarão o centenário da imigração dos pobres do Japão. Poderão festejar também as barreiras para os brasileiros.


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