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NO PLANALTO
Arquivos do ex-SNI guardam 4 milhões de documentos
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Certos silêncios produzem
respostas barulhentas. A
mudez de Brasília diante dos arquivos da ditadura militar, por
exemplo, gerou um belo estrondo.
Foi ouvido em Guaratinguetá, no
dia 11 de novembro. Ressoou em
todo o país.
Acomodado numa pequena comarca do interior paulista, o juiz
federal Paulo Alberto Jorge determinou ao governo do ex-PT que
entregue à Justiça todo o papelório secreto do Exército. Na quarta-feira, o magistrado amplificou
o estrépito. Requisitou também os
arquivos da Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal e Abin.
O juiz deseja expor à luz do sol
todo o papelório da ditadura cujo
segredo não esteja escorado em lei.
A providência pressupõe a análise
prévia de cada documento. Uma
empreitada que tem as dimensões
de um enorme pesadelo.
Tome-se, a título de exemplo, o
caso do ex-SNI. Os relatórios dos
espiões do regime militar estão
armazenados numa salinha de
cerca de 15 m2. Fica no setor Policial Sul de Brasília. Há no recinto,
recostados numa parede ao fundo, 11 arquivos de metal. Cada
um tem oito gavetas estreitas.
Ali, naquelas 88 gavetas, guardam-se cerca de 240 mil microfilmes retangulares. São pequenos
cromos fotográficos. Retratam
documentos miniaturizados. Alguns contêm um único relatório.
Outros, até cem folhas de papel.
Somando-se todos os documentos microfilmados chega-se a cerca de 4 milhões de páginas escritas. Um bom leitor talvez consiga
digerir algo como cem folhas por
dia. Nesse ritmo, levaria 40 mil
dias para examinar todos os relatórios. Abandonando todo o serviço de sua jurisdição e arregaçando as mangas inclusive aos sábados e domingos, o juiz Alberto
Jorge teria diversão para os próximos 111 anos.
O manuseio dos microfilmes requer máquina própria. Uma geringonça de feições arcaicas. Coisa incompatível com os modernos
recursos da informática e, de resto, indisponível na 1ª Vara Federal de Guaratinguetá, para onde
o juiz determinou que fossem levados os documentos sob a guarda da Abin.
Para complicar, centenas de documentos microfilmados da Abin
remetem para fotografias que foram preservadas em papel. Encontram-se depositadas em pastas corrediças que pendem de outros dez arquivos metálicos. Têm
gavetas mais profundas. Estão na
mesma salinha de 15 m2.
Informado pelo repórter acerca
do tamanho da encrenca, Alberto
Jorge espantou-se: "Ao requisitar
os arquivos, não tinha noção do
tamanho". Não esboçou, porém,
preocupação: "Não tenho vocação para matusalém. Não planejo
passar a vida lendo documentos.
Caberá à União apontar os papéis que, a seu juízo, devem ser
mantidos sob sigilo. Veremos se
há ou não amparo legal".
O juiz não parece predisposto a
engolir evasivas ou subterfúgios.
Suponha que o governo informe
que não tem como triar os documentos. "Neste caso, estará caracterizada a inconstitucionalidade
do segredo", diz Alberto Jorge.
"Tornaremos todos os arquivos
públicos."
Imagine que Brasília diga que
nada pode ser divulgado. De novo, "ficará sacramentado o desrespeito à Constituição", prossegue o juiz de Guaratinguetá. "O
segredo é a exceção, não a regra.
O sigilo terá de ser quebrado."
A Advocacia da União encontra-se de mangas arregaçadas.
Brasília exala confiança. Auxiliares de Lula acham que as decisões
de Alberto Jorge cairão na segunda instância do Judiciário.
Simultaneamente, a Abin dá
forma final ao texto de um alvissareiro edital de licitação. Visa a
contratação de firma de informática capaz de digitalizar os microfilmes da ditadura. As regras da
tomada de preços serão exibidas,
nos próximos dias, no sítio da
agência na internet
(www.abin.gov.br).
Em tempos bicudos, Mauro
Marcelo de Lima e Silva, diretor
da Abin, obteve R$ 800 mil para
executar o plano de digitalização.
É um entusiasta da idéia. Imagina concluir a tarefa em seis meses.
Pessoas versadas no assunto
acham que o dinheiro é pouco e o
prazo é curto. De todo modo, é
um começo.
Transpostos para o cristal líquido do computador, os papéis poderão ser manuseados com maior
agilidade. Um time de analistas
recrutados pelo governo se incumbiria da classificação dos documentos, separando aqueles
passíveis de divulgação. Lula decidiria, então, como e quando os
porões seriam abertos.
Na véspera de deixar o Palácio
do Planalto, FHC baixou um decreto infame. Ampliou todos os
prazos previstos para a divulgação de documentos sigilosos. Publicado no "Diário Oficial" de 30
de dezembro de 2002, na surdina,
o ato foi revelado pelo repórter
Mário Magalhães em abril de
2003.
A lei de arquivos (8.159), de
1991, fixa o prazo máximo de 60
anos para a divulgação de documentos secretos do Estado. O decreto de FHC criou o sigilo de 50
anos, prorrogáveis por mais 50,
indefinidamente. Criou o segredo
eterno, flagrantemente ilegal.
Na semana passada, FHC disse
à coluna de Mônica Bergamo que
Lula deveria revogar o famigerado decreto. Esquivou-se de explicar por que diabos o editou. Teria
de revelar uma subserviência aos
comandos militares incompatível
com sua biografia. Se o Lula autêntico houvesse assumido a Presidência, já teria levado ao lixo o
decreto do antecessor, um atentado à historiografia nacional.
Há nos subterrâneos do governo quatro tipos de documentos.
Apenas os "ultra-secretos" ganharam de FHC o conforto da penumbra eterna. Os reservados (sigilo de 10 anos), confidenciais (20
anos) e secretos (30 anos) poderiam ser divulgados imediatamente. Se um Lula genuíno estivesse no Planalto, essa papelada
já estaria no Arquivo Nacional,
no Rio, submetido à análise de
historiadores, acadêmicos e jornalistas.
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