São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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NO PLANALTO

Arquivos do ex-SNI guardam 4 milhões de documentos

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Certos silêncios produzem respostas barulhentas. A mudez de Brasília diante dos arquivos da ditadura militar, por exemplo, gerou um belo estrondo. Foi ouvido em Guaratinguetá, no dia 11 de novembro. Ressoou em todo o país.
Acomodado numa pequena comarca do interior paulista, o juiz federal Paulo Alberto Jorge determinou ao governo do ex-PT que entregue à Justiça todo o papelório secreto do Exército. Na quarta-feira, o magistrado amplificou o estrépito. Requisitou também os arquivos da Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal e Abin.
O juiz deseja expor à luz do sol todo o papelório da ditadura cujo segredo não esteja escorado em lei. A providência pressupõe a análise prévia de cada documento. Uma empreitada que tem as dimensões de um enorme pesadelo.
Tome-se, a título de exemplo, o caso do ex-SNI. Os relatórios dos espiões do regime militar estão armazenados numa salinha de cerca de 15 m2. Fica no setor Policial Sul de Brasília. Há no recinto, recostados numa parede ao fundo, 11 arquivos de metal. Cada um tem oito gavetas estreitas.
Ali, naquelas 88 gavetas, guardam-se cerca de 240 mil microfilmes retangulares. São pequenos cromos fotográficos. Retratam documentos miniaturizados. Alguns contêm um único relatório. Outros, até cem folhas de papel.
Somando-se todos os documentos microfilmados chega-se a cerca de 4 milhões de páginas escritas. Um bom leitor talvez consiga digerir algo como cem folhas por dia. Nesse ritmo, levaria 40 mil dias para examinar todos os relatórios. Abandonando todo o serviço de sua jurisdição e arregaçando as mangas inclusive aos sábados e domingos, o juiz Alberto Jorge teria diversão para os próximos 111 anos.
O manuseio dos microfilmes requer máquina própria. Uma geringonça de feições arcaicas. Coisa incompatível com os modernos recursos da informática e, de resto, indisponível na 1ª Vara Federal de Guaratinguetá, para onde o juiz determinou que fossem levados os documentos sob a guarda da Abin.
Para complicar, centenas de documentos microfilmados da Abin remetem para fotografias que foram preservadas em papel. Encontram-se depositadas em pastas corrediças que pendem de outros dez arquivos metálicos. Têm gavetas mais profundas. Estão na mesma salinha de 15 m2.
Informado pelo repórter acerca do tamanho da encrenca, Alberto Jorge espantou-se: "Ao requisitar os arquivos, não tinha noção do tamanho". Não esboçou, porém, preocupação: "Não tenho vocação para matusalém. Não planejo passar a vida lendo documentos. Caberá à União apontar os papéis que, a seu juízo, devem ser mantidos sob sigilo. Veremos se há ou não amparo legal".
O juiz não parece predisposto a engolir evasivas ou subterfúgios. Suponha que o governo informe que não tem como triar os documentos. "Neste caso, estará caracterizada a inconstitucionalidade do segredo", diz Alberto Jorge. "Tornaremos todos os arquivos públicos."
Imagine que Brasília diga que nada pode ser divulgado. De novo, "ficará sacramentado o desrespeito à Constituição", prossegue o juiz de Guaratinguetá. "O segredo é a exceção, não a regra. O sigilo terá de ser quebrado."
A Advocacia da União encontra-se de mangas arregaçadas. Brasília exala confiança. Auxiliares de Lula acham que as decisões de Alberto Jorge cairão na segunda instância do Judiciário.
Simultaneamente, a Abin dá forma final ao texto de um alvissareiro edital de licitação. Visa a contratação de firma de informática capaz de digitalizar os microfilmes da ditadura. As regras da tomada de preços serão exibidas, nos próximos dias, no sítio da agência na internet (www.abin.gov.br).
Em tempos bicudos, Mauro Marcelo de Lima e Silva, diretor da Abin, obteve R$ 800 mil para executar o plano de digitalização. É um entusiasta da idéia. Imagina concluir a tarefa em seis meses. Pessoas versadas no assunto acham que o dinheiro é pouco e o prazo é curto. De todo modo, é um começo.
Transpostos para o cristal líquido do computador, os papéis poderão ser manuseados com maior agilidade. Um time de analistas recrutados pelo governo se incumbiria da classificação dos documentos, separando aqueles passíveis de divulgação. Lula decidiria, então, como e quando os porões seriam abertos.
Na véspera de deixar o Palácio do Planalto, FHC baixou um decreto infame. Ampliou todos os prazos previstos para a divulgação de documentos sigilosos. Publicado no "Diário Oficial" de 30 de dezembro de 2002, na surdina, o ato foi revelado pelo repórter Mário Magalhães em abril de 2003.
A lei de arquivos (8.159), de 1991, fixa o prazo máximo de 60 anos para a divulgação de documentos secretos do Estado. O decreto de FHC criou o sigilo de 50 anos, prorrogáveis por mais 50, indefinidamente. Criou o segredo eterno, flagrantemente ilegal.
Na semana passada, FHC disse à coluna de Mônica Bergamo que Lula deveria revogar o famigerado decreto. Esquivou-se de explicar por que diabos o editou. Teria de revelar uma subserviência aos comandos militares incompatível com sua biografia. Se o Lula autêntico houvesse assumido a Presidência, já teria levado ao lixo o decreto do antecessor, um atentado à historiografia nacional.
Há nos subterrâneos do governo quatro tipos de documentos. Apenas os "ultra-secretos" ganharam de FHC o conforto da penumbra eterna. Os reservados (sigilo de 10 anos), confidenciais (20 anos) e secretos (30 anos) poderiam ser divulgados imediatamente. Se um Lula genuíno estivesse no Planalto, essa papelada já estaria no Arquivo Nacional, no Rio, submetido à análise de historiadores, acadêmicos e jornalistas.


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