São Paulo, quinta-feira, 29 de março de 2001

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CELSO PINTO

A herança do terremoto argentino

D omingo Cavallo, o presidente virtual da Argentina, passou no primeiro teste, que era vencer o pânico de curtíssimo prazo. O cenário de ruptura foi adiado, embora persistam enormes incertezas. Lá, como aqui, o terremoto deixou sequelas. É uma boa hora de fazer as contas.
Há uma semana, o mercado considerava quase inevitável uma renegociação da dívida argentina e muito provável uma ruptura cambial. A necessidade de recursos da Argentina em março somou vencimentos de médio e longo prazo de US$ 2,3 bilhões mais uns US$ 700 milhões de déficit público. Em abril, os vencimentos caem para US$ 900 milhões e o déficit continuará em torno de US$ 600 milhões. Em maio, os vencimentos sobem para US$ 1,8 bilhão e o déficit deve continuar em US$ 600 milhões.
A Argentina recebeu US$ 5 bilhões do FMI no primeiro trimestre, o que ajudou a fechar as contas, mas só tem a receber do fundo, agora, US$ 1,3 bilhão em maio. Tão importante quanto o sinal verde do Congresso argentino em relação ao plano de Cavallo seria alguma indicação de acordo com os bancos credores e o Tesouro americano. O FMI olhou com desconfiança para a porção heterodoxa do plano Cavallo (mais proteção tarifária), mas, oficialmente, falou bem. Pode dar sinal verde ao plano, mas não vai acelerar desembolsos.
Se houver apoio financeiro externo, do Tesouro e dos bancos, Cavallo ganhará tempo para tentar provar que o país pode voltar a crescer e pagar suas contas. Com um prêmio de risco ("spread") acima de 700 pontos, ninguém acha que as contas fecham. No pânico, o prêmio superou mil pontos. Hoje está mais próximo do limite do viável, mas ainda longe de um nível que indique confiança.
O terremoto argentino foi agravado, no Brasil, por coincidir com o aumento de 0,5 ponto percentual no juro básico (Selic). A intenção do Banco Central era fazer um ajuste fino. A aceleração da economia mais a piora do cenário externo haviam colocado pressão sobre o câmbio, que poderia se transformar em pressão inflacionária. O BC queria mostrar que estava alerta e não deixaria a pressão via câmbio continuar indefinidamente. Incomodava o BC a assimetria na percepção do mercado: a maioria imaginava que os juros só poderiam ir para baixo e, portanto, era mais provável que o câmbio fosse para cima.
O BC trombou com um mercado em pânico, pela Argentina e pelos Estados Unidos, e o aumento do juro foi lido de outra forma. Em vez de ajuste fino, o mercado entendeu como o início de uma forte escalada no juro, empurrada por fatores externos.
O salto nos juros gerou prejuízos contábeis imediatos para muitas instituições. Os modelos de risco mais usados obrigam as instituições a zerar seu prejuízo potencial (e transformá-lo em prejuízo real), a partir de uma variação mais forte, como ocorreu na última quinta-feira. Muita gente foi zerar sua posição no mercado de juros ou de câmbio, pressionando ainda mais estes mercados e levando mais instituições a ter que zerar prejuízos. A consequência foi uma corrida para "stop-loss" que levou a um exagero na alta, depois parcialmente corrigido.
O lado bom do salto nos juros foi que o BC, com um pequeno aumento da taxa básica (que incide sobre a dívida pública), conseguiu elevar bastante toda a curva de juros e empurrar as empresas na direção que queria: mais cautela nos gastos e mais estímulo para tomar dólares. O lado ruim é que as perdas de quem tinha papéis prefixados vão atrasar dois movimentos importantes, mas lentos, de melhora na dívida mobiliária: o alongamento de prazos e a redução da parcela indexada à Selic ou ao dólar. Essa indexação faz com que quase dois terços da dívida reflita automaticamente qualquer desvalorização ou aumento de juro e diminui a eficácia da política monetária.
Em fevereiro, já havia piorado a composição da dívida. A fatia indexada à Selic cresceu de 51,2% para 51,5%; a indexada ao câmbio subiu de 21,6% para 22,4%; e a prefixada, mais eficiente para a política monetária, caiu de 16% para 14,4%. Em março e nos próximos meses, o estrago deve ser maior.
Rubens Sardenberg, secretário-adjunto do Tesouro, queria vender de R$ 4 bilhões a R$ 5 bilhões de títulos prefixados em março. Não conseguiu, nem deverá conseguir rolar a maior parte dos R$ 8,5 bilhões que vencem em títulos prefixados em abril (vence também R$ 1,5 bilhão em títulos pós-fixados). Ele admite que todo o esforço recente para ampliar o prazo dos títulos prefixados para 18 e 24 meses, deve sofrer um retrocesso.
Até maio, ele quer operar com cautela. Não vai forçar uma venda maior de títulos prefixados, se para isso for preciso aceitar juros altos demais, ou prazos muito curtos. Se o preço for esse, ele prefere piorar um pouco mais a composição da dívida, vendendo mais pós-fixados. Mas ainda considera viável ficar dentro do pior dos três cenários divulgados pelo Tesouro para o ano, em que a dívida apenas do Tesouro terminaria 2001 com 15,8% do total em títulos prefixados e 46,5% em pós (os títulos cambiais são de responsabilidade do BC e aumentaram em março com a crise).
Parte do custo fiscal da pressão externa também foi pago em fevereiro. A dívida líquida do setor público subiu de 49,2% para 49,9% do PIB, por conta da desvalorização de 3,8% no câmbio. Como em março a desvalorização cambial deve ser maior do que esta e o juro subiu 0,5 ponto, o impacto fiscal deve ser maior (um banco estima que a dívida líquida chegue até a 50,8% em março).
Não é pouco, considerando que este não será o custo de um cenário de ruptura argentina. Vários bancos calcularam que, com ruptura na Argentina, o juro básico aqui teria que subir para algo entre 19% e 23%, o que obrigaria a cortes fiscais de, no mínimo, de 2% a 3% do PIB. O que o ensaio de crise mostrou é que o Brasil, com estoques de dívida interna e de passivo externo ambos acima de 50% do PIB, está mais vulnerável do que Brasília gosta de admitir.
E-mail: CelPinto@uol.com.br




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