São Paulo, Domingo, 29 de Agosto de 1999
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Elio Gaspari
Se estagnação é estabilidade, urubu é "meu louro"

Quem conversou com FFHH nas últimas semanas viu-o abatido. Guardadas as diferenças de temperamento, parecia José Sarney no último ano de mandato. Sente-se injustiçado pela opinião pública, pelos aliados políticos, pelo PSDB e até mesmo por alguns de seus amigos. Queixa-se da falta de reconhecimento pelo que fez e da falta de compreensão das dificuldades que enfrenta.
É pena, mas o seu desempenho na Presidência justifica esse sofrimento. É ele quem torna impossível a defesa de sua administração. Uma pessoa disposta a repetir o que o Planalto diz corre o risco de passar por tola e desinformada.
Na semana passada, ele produziu um cruel exemplo para a compreensão dessa desgraça. Diante da informação de que a economia brasileira sofreu uma contração no ano passado, disse, por intermédio de seu porta-voz, que isso não significou recessão, mas "estabilidade": "A boa notícia é que em 1998 não houve recessão, a não ser essa pequena alteração".
O IBGE informara que, de acordo com a última revisão das estatísticas nacionais, a soma dos bens e serviços produzidos pelo país (PIB) caiu 0,12% em 1998. Como a produção ficou estagnada e a população cresceu, disso resultou uma queda de 1,54% na renda "per capita" dos brasileiros. Um resultado ruim, sobretudo porque atravessou a linha mágica que separa os números positivos dos negativos. Desde a segunda metade da década de 30, é a sexta vez que isso acontece. A última contração do PIB, igualmente branda, deu-se em 1992.
Sem que FFHH possa ser integralmente responsabilizado pela desgraça dos últimos 20 anos da vida nacional, a economia cresce a um ritmo pelo qual serão necessários 120 anos para dobrar a renda "per capita" dos brasileiros. Entre 1947 e 1980, ela dobrou a cada 18 anos.
Chamar estagnação econômica de "estabilidade" é deboche. Dizer que é "boa notícia" chega a ser demência. Quem duvida pode acompanhar o que o próprio governo prometeu.
Em dezembro de 1996, no auge do populismo cambial, FFHH informava que, no ano 2000, o PIB brasileiro poderia chegar a US$ 1 trilhão. Para honrar a projeção, a economia precisa crescer 30% até dezembro do ano que vem. Uma taxa em torno de 1% ao mês.
Quando FFHH vendia esperança, o então secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, José Roberto Mendonça de Barros, advertia (em documentos que a choldra só leu há poucos dias, graças à repórter Míriam Leitão) que "estamos do ponto de vista macroeconômico numa trajetória insustentável".
Em fevereiro do ano passado, o ministro Pedro Malan informava que "1998 será o sexto ano consecutivo de crescimento do PIB". Seu otimismo ia além. Criticava "os palpiteiros e aqueles que repetem como papagaios aquilo que ouvem de alguns críticos".
Mendonça de Barros tinha um palpite diverso (sempre em sigilo, porque em público papagaiava o lero-lero da ekipekonômica): "Em resumo, temos grandes emoções diante de nós: continuamos encaixotados". Achava que se deveria pensar numa "formulação mais global que requer, naturalmente, a participação do superchefe".
Tempo perdido. O superchefe anunciava que "nós vamos crescer, crescer com estabilidade e, no fim deste ano, já estaremos rodando, de novo, a economia numa taxa de 3% a 4% ao ano".
De nada adiantava que um palpiteiro como o professor Jeffrey Sachs, da Universidade de Harvard, advertisse:
"É quase certo que o Brasil vai sofrer uma queda no PIB "per capita" em 1998. O desemprego está subindo. Está longe de estar garantida uma trajetória de melhora nos padrões de vida".
Quando o ano terminou, o superchefe disse que "o crescimento do ano passado (estimado preliminarmente pelo IBGE em 0,15%), as expectativas para 1999 são boas. Não se nega a realidade, as dificuldades do momento, mas estão se abrindo novos horizontes".
Não houve crescimento em 1998, nem abriu-se novo horizonte neste ano. O governo prometeu o que não podia entregar. Fez isso sabendo os riscos que a população corria. Feita a ruína, chama estagnação de estabilidade. Está na situação da médica de um hospital do Rio que anotou na ficha do paciente: "Paciente bem. Continua em coma".

Lula inventou uma novidade: a "ruptura democrática"

Deve-se a Luiz Inácio Lula da Silva a introdução de um novo conceito na política. É a "ruptura democrática". A seu ver, é isso que o coronel Hugo Chávez vem fazendo na Venezuela. Eleito pela maioria do povo, convocou uma Assembléia Constituinte. Elegeu a mulher e mais 120 dos 131 representantes do povo. Mutilou o Judiciário (a presidente da Corte Suprema renunciou) e cassou as prerrogativas do Congresso. Fez tudo isso sem prender uma só pessoa e sem tirar a tropa dos quartéis, senão para consertar escolas.
Chávez dizia que a Constituição venezuelana estava "bichada". Lula diz que "o sistema político venezuelano, havia décadas apresentado como modelo democrático para a América Latina, estava apodrecendo".
Numa comparação grosseira com o passado brasileiro, uma "ruptura democrática" para consertar uma democracia podre poderia ter sido assim.
Em março de 1964, amparado nos seus "generais do povo", o presidente João Goulart convocava um plebiscito, empalmava poderes que lhe permitissem atropelar o Congresso e conquistava o direito de concorrer à reeleição. A ruptura veio da outra banda, resultando numa ditadura militar.
O Brasil foi à breca em março de 1964 porque havia mais gente interessada na "ruptura" do que na democracia. Brincando-se com a história, vê-se que, sem ruptura, ia-se para uma eleição, na qual dois candidatos disputariam a Presidência: Carlos Lacerda (pela direita) e Juscelino Kubitschek (pelo centro).
Lacerda tinha sido um grande governador do Rio de Janeiro. Juscelino, um grande presidente. Seu partidários odiavam-se, mas isso não tem importância.
Passados 35 anos, pode-se perguntar ao mais virulento lacerdista: o que era preferível, JK na Presidência ou o que veio depois?
Pode-se também perguntar a um esquerdista: o que teria sido melhor, Lacerda na Presidência ou o que veio depois?
Jango achava que a ruptura democrática lhe convinha. Acabou no Uruguai. JK achou que sobreviveria à ruptura militar. Foi banido da vida pública dois meses depois. Lacerda achou que a ruptura institucional o levaria ao Planalto. Foi expulso da política quatro anos depois. Nenhum dos três viveu o fim da ditadura.
É possível que Lula não esteja defendendo coisa parecida para o Brasil. Analisa apenas a situação venezuelana. Está bem assim, mas ainda lhe sobram encrencas.
O coronel Chávez, "El Comandante", lançou o "Movimiento 5ª República". O último ditador militar venezuelano, Marcos Pérez Jiménez (1952-1958), lançou o "Nuevo Ideal Nacional". Chávez diz que é "neo-estruturalista". Pérez Jiménez era "perfeccionalista".
Pérez Jiménez dizia assim:
"O governo venezuelano, em princípio, garante a liberdade empresarial. Não obstante, as atividades que o Estado venha a assumir serão determinadas pelas exigências do bem comum e da defesa nacional."
Chávez trabalha com um "Plano Penta-Setorial" que faz parte da busca de uma "Economia Humanista, Autogestionária e Competitiva". Ele informa:
"O Estado deverá fortalecer o desempenho da acumulação de capital social, físico e humano do país. Para isso deve tutelar o desenvolvimento econômico da infra-estrutura".
Pérez Jiménez fugiu da Venezuela depois de um levante popular. Foi morar em Miami e, quando o procuraram para conspirar contra a ordem democrática, escusou-se, dizendo que estava rico e realizado. Sua maior contribuição para a história da espécie foi um hábito que desenvolveu depois de gordo e velho: soltava meia dúzia de mocinhas num campo de golfe e as perseguia num carrinho elétrico.
Não vai aqui qualquer comparação entre o jovem Chávez e o velho Pérez. Um chegou ao poder pelo voto. O outro, com os tanques. Vai apenas o registro da parlapatice dos governos salvacionistas que se colocam acima das instituições republicanas. Não é o acaso que os faz parecidos. É a necessidade de iludir a patuléia.
Vai aqui uma homenagem ao presidente chileno Salvador Allende. Ele queria construir um regime socialista, mas nunca falou em "ruptura". Isso ficou para o general Pinochet, que, para glória do Poder Judiciário britânico, está em cana.

Duas boas bocas-ricas

O ministro do Trabalho, Francisco Dornelles, tornou-se depositário de duas histórias, idênticas, que sintetizam a alma do capitalismo nacional. Nos anos 70, quando chefiava a Secretaria da Receita Federal, recebeu um notório empresário do Rio de Janeiro. Trazia pronta a minuta de uma portaria concedendo benefícios fiscais. Dornelles leu-a e respondeu:
- Mas isso que o senhor me traz só serve para beneficiar a sua empresa.
- Fique tranquilo, secretário. Beneficia só a minha empresa.
Na semana passada, os porta-vozes dos ruralistas caloteiros propuseram-lhe que o dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT, pudesse ser canalizado para os bancos de crédito cooperativo. O dinheiro do FAT é público e, mesmo sendo mal gerido, só vai para bancos públicos (BNDES, BB, CEF e BNB). Os bancos de crédito cooperativo, como o Bradesco, o Itaú e o Unibanco, são privados.
Dornelles recusou a idéia por conta do absurdo genérico, mas teve a curiosidade de verificar quantos bancos de crédito cooperativo existem no Brasil. São dois.
Não havia o menor perigo de a transferência do dinheiro dos trabalhadores vir a beneficiar todo o sistema financeiro. Muito menos aos trabalhadores.

Vazamento indelicado

O presidente da Comissão de Valores Mobiliários, Francisco Costa e Silva, fez saber que pretende deixar o cargo. Advogado do quadro do BNDES, está se aposentando. Fez saber também que pretende ir ao mercado, abrindo um escritório de advocacia. Fez saber mais: terá como sócia a advogada Isabel Bocater, atual diretora da CVM.
Segundo se informa, Costa e Silva já poderia ter deixado a CVM, mas continuará na função de xerife do mercado de ações, por pouco tempo, a pedido do ministro Pedro Malan.
A menos que os dois estejam dispostos a recusar causas de empresas que tenham ou possam vir a ter pleitos com a União e a CVM, o governo está fazendo papel de bobo. Ele organizou uma comissão para elaborar o Código de Conduta dos Titulares de Cargos na Alta Administração Federal. Na versão que está em audiência pública, o artigo 35 diz que as autoridades devem comunicar quaisquer propostas de emprego que recebam e, ao aceitá-las, pedir demissão.
Se o presidente e uma diretora da CVM deixam vazar que pretendem abrir um escritório de advocacia, ninguém os impede de fazê-lo, mas que o façam logo. Do contrário, acabarão atrapalhados por uma compreensível alta da cotação de conhecimentos jurídicos.


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