São Paulo, Domingo, 29 de Agosto de 1999
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PÓS-MARCHA
Governador do Ceará afirma que FHC está "consciente" da necessidade de "modificações corretivas"
Tasso propõe mudar modelo econômico

JOSIAS DE SOUZA
Secretário de Redação

O discurso em favor de alterações na política econômica chegou à cozinha do Palácio do Planalto. Amigo e aliado de Fernando Henrique Cardoso, o governador do Ceará, Tasso Jereissati, afirma: "Temos que fazer algumas modificações corretivas no rumo da política econômica. O presidente está consciente disso".
Tasso acha que está esgotada a fórmula que se convencionou chamar de "Consenso de Washington." O termo, criado em 1990, define o receituário do governo americano, do FMI e do Banco Mundial, que combina combate ao déficit público, abertura econômica e redução da presença do Estado na economia.
Propõe que o governo reavalie alguns temas tratados até aqui como dogmas, entre eles a abertura econômica e a integração com os países do Mercosul. "Isso precisa ser reestudado. Ainda não sei o que propor. Mas sei o que não serve. O que está aí é ruim."
Na opinião de Tasso, o governo comete um erro ao festejar o cumprimento de metas fixadas pelo FMI como sinal de vigor econômico. "Não podemos analisar a economia apenas a partir de dados estatísticos", diz ele. "A economia vai bem se há muita gente empregada."
Em entrevista à Folha, Tasso produziu o que talvez seja a avaliação mais severa que um tucano fez em público da gestão FHC. Aponta vários méritos pontuais do governo. Mas, de resto, utiliza termos que não costumam frequentar o discurso do tucanato.
Diz, por exemplo, que, em função da relação "promíscua" que mantém com o Congresso, "o governo não tem uma cara definida". Algo que "a sociedade interpreta como fraqueza, como falta de decisão".
"Havia a expectativa de que um presidente com as credenciais morais e intelectuais de Fernando Henrique poderia superar essa realidade." Daí a reação da sociedade, materializada na corrosão da popularidade de FHC.
Tasso faz uma outra autocrítica. O PSDB, diz, não se preparou adequadamente para o novo mandato. "Tratamos o segundo mandato como se fosse simples continuação. Não é." Ele acha que é preciso "discutir melhor esse período" para alterar a situação.
Mantido o quadro atual, afirma Tasso, as chances de um crescimento da candidatura presidencial de Ciro Gomes (PPS) "são enormes". Ele não descarta também a hipótese de o nome do senador Antonio Carlos Magalhães (PFL) vir a ser tonificado.
Tasso deixa claro que, em termos eleitorais, ficará com o nome que vier a ser definido pelo PSDB. E diz que se manterá fiel a FHC até o final, seja qual for a sua taxa de popularidade.
A entrevista foi feita em duas etapas. A Folha teve uma conversa de duas horas e meia com o governador, na quarta-feira, em seu gabinete, em Fortaleza. Na sexta-feira, por telefone, Tasso respondeu a perguntas sobre a "Marcha dos 100 Mil", realizada na véspera. A seguir, a entrevista.

Folha - O segundo mandato é um bebê de oito meses. A despeito disso, FHC tem a impopularidade de um Collor e é tratado por alguns grupos -caminhoneiros e ruralistas, por exemplo- como um Sarney, fraco. O que está havendo?
Tasso Jereissati -
O problema crônico é a relação entre Executivo e Legislativo. Desde a morte de Getúlio Vargas temos tido uma longa história de crises, que levam a uma situação de governabilidade complicada. Todos os presidentes que assumiram sob regime democrático viveram esse problema. O que há de novo agora? É o segundo mandato. No final do primeiro mandato, o presidente Fernando Henrique, como todos os anteriores, chegou a uma situação difícil de administrar nas relações com o Legislativo. Com uma diferença: ao contrário dos outros presidentes, ele ainda tem um novo mandato inteiro pela frente.

Folha - A reeleição foi um erro?
Tasso -
Acho que não avaliamos corretamente as consequências de um segundo mandato. Tratamos o segundo mandato como se fosse uma simples continuação. Não é. Há coisas inteiramente novas e há coisas que se apresentam como desgastes do primeiro período.

Folha - Quais são os desgastes do primeiro mandato?
Tasso -
Há o desgaste natural do exercício do poder. E o desgaste dessa relação não muito bem definida entre Legislativo e Executivo. Somou-se a esse quadro, agravando-o, uma crise internacional. Mas Fernando Henrique ainda tem um mandato inteiro pela frente. Temos tempo de discutir melhor esse segundo período.

Folha - Em entrevista à Folha em agosto do ano passado, o senhor dizia que o segundo mandato de FHC teria mais a cara do PSDB. Onde está a cara do partido? Na política econômica recessiva? Em um certo descaso com os problemas sociais? Na autofagia que pauta as relações dos partidos governistas?
Tasso -
Como disse antes, fazendo uma autocrítica, nós avaliamos mal o que seria o segundo mandato. Mas o desgaste do governo, que é inegável, precisa ser melhor analisado. O péssimo humor do país é desproporcional à situação geral, que não é tão ruim. E o desgaste também é uma decorrência dessa falta de cara. De fato, o governo não tem uma cara definida. Nem sem sei se conseguiria ter com esse modelo político que está aí. Ele é obrigado a fazer uma coalizão no Congresso, em que vários setores partidários têm participação na administração. A tendência, a longo prazo, é de aumentar o desgaste. A sociedade interpreta isso como fraqueza, como falta de decisão.

Folha - A sociedade interpreta ou é mesmo fraqueza e falta de decisão?
Tasso -
Diria que não é. Basta olhar para trás. Todos os presidentes brasileiros, em regimes democráticos, tiveram esse tipo de problema, exceto o Juscelino, que terminou o mandato com relativo sucesso. E digo relativo porque também o Juscelino, no último ano, estava terrivelmente desgastado. Esse modelo político é visto pela opinião pública com profunda antipatia. As pessoas não aceitam essa relação promíscua entre Legislativo e Executivo. A palavra é forte, mas talvez seja adequada. Essa é a principal fonte de desgaste do governo. Havia a expectativa de que um presidente com as credenciais morais e intelectuais de Fernando Henrique poderia superar essa realidade.

Folha - Ia justamente perguntar-lhe isso. Elegeu-se FHC na expectativa de que não fosse outro Sarney. É impossível mudar?
Tasso -
Não diria que é impossível, mas é muito difícil, quase impossível mudar essa relação dentro dos moldes atuais. A sociedade precisa discutir essa questão.

Folha - O senhor quer reabrir a discussão sobre parlamentarismo?
Tasso -
Com muito cuidado. Se é inevitável, dentro da nossa cultura política, a participação do Legislativo dentro do Executivo, talvez seja o caso de colocarmos essa discussão agora, com regras que valham para o próximo governo. Deve ficar claro que isso não implica a recondução de ninguém, nem de Fernando Henrique nem de nenhum governador.

Folha - Todos tenderão a enxergar a pregação em favor do parlamentarismo como manobra para reconduzir FHC.
Tasso -
É por isso que eu digo que é preciso tomar muito cuidado. É preciso dizer desde já que não se trata disso. Apenas eu não vejo na história nenhum exemplo de presidente que tenha conseguido lidar bem com esse modelo político vigente. Precisamos fazer isso funcionar. Pode não ser via parlamentarismo. A aprovação de uma reforma política, com a fidelidade partidária pode resolver, não sei.

Folha - E fidelidade partidária passa no Congresso?
Tasso -
Acho muito difícil.

Folha - Do modo como o senhor fala, parece que todos os problemas do governo derivam da relação tumultuada com o Congresso. Em agosto do ano passado, o senhor dizia que era essencial que o governo tratasse o combate à miséria e à pobreza como uma prioridade. Não é o que vem ocorrendo. Isso não influi?
Tasso -
Como disse antes, o humor do país está muito pior do que o governo. O sentimento negativo está alguns pontos acima da realidade econômica e social do país. Mas temos um quadro novo, não só pela novidade da reeleição, mas também pela nova realidade econômica. O mundo hoje é outro. O país também é outro. Há cerca de cinco anos havia um consenso em torno de um modelo, de um receituário...

Folha - O senhor se refere ao chamado "Consenso de Washington"?
Tasso -
Sim, esse receituário vindo do "Consenso de Washington" se disseminou. E a experiência recente nos tem mostrado que a coisa não é bem assim. Temos que fazer algumas modificações corretivas no rumo da política econômica. A meu ver, o presidente está consciente disso. Embora eu ache importante ressaltar que os índices de miséria no país melhoraram. Caíram a mortalidade infantil e a taxa de analfabetismo. Em poucos anos, poderemos ter erradicado o analfabetismo no país. O problema é que essa política econômica de uma maneira geral leva o país a uma insegurança muito grande.

Folha - O senhor acha, então, que é preciso mudar os rumos da economia?
Tasso -
Alguns conceitos têm de ser reavaliados. Como país emergente, o Brasil não pode seguir o mesmo modelo de inserção na economia mundial utilizado por uma nação desenvolvida. Somos muito mais sujeitos às turbulências internacionais do que nações como os Estados Unidos, a Suíça ou a Alemanha. Não conseguimos nos vacinar contra turbulências externas, especialmente na região em que nós vivemos.

Folha - A América Latina...
Tasso -
Sim, a América Latina. Já percebemos claramente que um espirro na Venezuela pode atrapalhar a vida do Brasil gravemente. Uma dor nas costas da Colômbia também atrapalha a nossa vida. As eleições na Argentina colocam o nosso país em sobressaltos. Esse é o fato novo. Nós não avaliamos bem isso. É possível um país como o Brasil, emergente, ter estabilidade e crescimento consistente, a médio e longo prazos, com um modelo sujeito a essa instabilidade dos vizinhos? Tudo indica que não.

Folha - O senhor está tocando em alguns dogmas: a abertura econômica, a integração regional via Mercosul. Tudo isso deve ser revisto?
Tasso -
Isso precisa ser reestudado. Se você me perguntar qual é a fórmula, o que devemos pôr no lugar, eu não sei.

Folha - O país deve fechar-se um pouco mais, promover uma abertura econômica mais seletiva?
Tasso -
Com certeza precisamos estudar fórmulas que permitam que fiquemos menos sujeitos a turbulências internacionais. Ainda não sei exatamente o que propor. Mas sei o que não deve ser, o que não serve.

Folha - E o senhor está convencido de que o que está aí é ruim.
Tasso -
O que está aí é ruim. Também há uma tendência equivocada, e o presidente está atento a isso, de avaliar a saúde da economia brasileira a partir dos chamados números macroeconômicos.

Folha - O senhor se refere às metas negociadas com o FMI?
Tasso -
Sim, analisam-se as metas negociadas com o FMI, pressupondo-se que, se esses números estiverem bem, o país vai bem. Não podemos analisar a economia simplesmente a partir de dados estatísticos. O presidente, mais do que ninguém, sabe disso. A economia vai bem se há muita gente empregada.

Folha - Voltamos ao ponto de partida. Há uma razão para o pessimismo da opinião pública. Para o ministro Malan, o cumprimento das metas é o bastante.
Tasso -
Essa é outra coisa no governo que precisa ser corrigida. Na verdade, esse quadro gerou uma sensação de insegurança muito grande, que afeta desde o empresário até o pequeno agricultor, o operário. O brasileiro vive um mundo de muitas incertezas. A economia e a vida das pessoas se rege muito pelas expectativas. Se você sente que sua empresa está sob risco, que seu emprego está ameaçado, que o produto que você produz no campo pode não ter preço competitivo, isso gera uma sensação de insegurança que, somada à análise do quadro político, produz o mau humor, embora tenhamos bons indicativos sociais para exibir. Mesmo na economia, se formos analisar com cuidado, os números não são brilhantes. Mas também não são tão ruins a ponto de justificar um pessimismo no nível atual.

Folha - O senhor faz a crítica ao modelo e diz que não sabe o que pôr no lugar. Havia uma expectativa de que o PSDB, com os quadros que possui, propusesse saídas criativas.
Tasso -
O PSDB não só propôs como implantou coisas novas no país. As consequências dessas mudanças são, na sua maioria benéficas. Algumas são de longa maturação. Não podemos perder de vista que Fernando Henrique implantou no país mudanças estruturais profundas. O erro está em simplesmente pegar esse receituário de cinco anos atrás e avaliar que tudo deu certo. Nem tudo deu certo. É preciso ver o que deu errado.

Folha - O que deu errado?
Tasso -
No campo político, esperávamos ter um governo muito menos sujeito a esses humores do Congresso. E esperávamos ter iniciado um ciclo de crescimento econômico que gerasse novas expectativas no país. Não conseguimos reverter as expectativas, algo essencial. Existem fatores normais, de qualquer sistema. Mas não podemos nem queremos esconder que existem fatores objetivos por trás da insatisfação da sociedade. Se as pessoas sentem que o seu futuro corre risco, precisamos dar a elas uma nova expectativa. E não pode ser uma expectativa falsa, baseada em publicidade. Precisamos apontar soluções viáveis.

Folha - Ulysses Guimarães estava para o governo Sarney assim como ACM está para o governo FHC. Ulysses passou à história como eminência parda de Sarney. Chegou a vetar o seu nome para o Ministério da Fazenda. O senhor acha que FHC conseguirá desfazer a impressão, hoje generalizada, de que ACM faz e desfaz no governo?
Tasso -
É falsa essa impressão. ACM não manda no governo. Para aproveitar o seu exemplo, doutor Ulysses deu uma lista com três nomes para a pasta da Fazenda. Sarney quis indicar alguém fora da lista. Não conseguiu. Ou seja, doutor Ulysses tinha interferência direta no Ministério da Fazenda, coração de qualquer governo. Hoje, seria absurdo dizer que a indicação de Malan tenha tido alguma influência de Antonio Carlos. Na verdade, alguns ministros importantes do governo são indicações claras do presidente. Fazenda é uma delas. Planejamento também. Na área social, a Educação e a Saúde.

Folha - Mas a impressão de que ACM manda não vem do nada. Foi, aliás, reforçada com o caso Ford. Malan era contra a concessão de benefícios para que a Ford se instalasse na Bahia.
Tasso -
É óbvio que o senador Antonio Carlos tem uma influência enorme no governo. Mas evidentemente não é comparável com o doutor Ulysses. Quem não manda na Fazenda e no Planejamento, quem não manda na Saúde e na Educação, as duas áreas de maior orçamento, com certeza não manda no governo. É verdade que se criou essa impressão. Aonde eu chego ouço: "ACM manda no governo, ele manda no presidente". Mas quem tem conhecimento mínimo do governo sabe que isso não é verdade.

Folha - O real já elegeu Fernando Henrique duas vezes. Agora, sem frango e iogurte baratos, com uma taxa de desemprego nada desprezível, o senhor acha que o presidente terá influência na própria sucessão ou o candidato do PSDB, para se viabilizar, terá de se afastar de FHC?
Tasso -
Toda essa discussão em torno da sucessão é, neste momento, irrelevante. A história mostra que nossos últimos presidentes se viabilizaram nas vésperas das eleições. Os nomes que surgiram com antecedência não tiveram nenhum sucesso nas campanhas.

Folha - O senhor tem razão, mas não se fala em outra coisa.
Tasso -
Esse é um outro fenômeno do segundo mandato. Mas balizar o comportamento político de hoje em função da sucessão presidencial é uma bobagem sem tamanho.


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