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ARTIGO
Jeffords, ACM e o ressurgimento da política
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A saída do senador Jim Jeffords do Partido Republicano, pondo o governo de George
Bush em minoria no Senado, e a
renúncia do senador Antonio
Carlos Magalhães (PFL-BA),
obrigando o governo de Fernando Henrique Cardoso a recompor
suas alianças no Congresso, marcam o ressurgimento da dinâmica
política nos regimes presidencialistas americano e brasileiro.
Afirmou-se que eleger Bush ou
Al Gore dava no mesmo. O impasse da contagem de votos na
Flórida desmentiu essa interpretação. Longe de desdenhar as
apurações, militantes democratas
e republicanos saíram às ruas em
defesa dos seus candidatos. Em
seguida, Bush assumiu de corpo
inteiro a plataforma direitista.
Ataque aos avanços liberais americanos dos últimos 30 anos, rejeição da diplomacia de desarmamento nuclear, de respeito ao
meio ambiente etc. Assim, ao rejeitar a virada ultraconservadora,
Jeffords reforça a democracia.
Sem chantagens nem arreglos impublicáveis, desfiliou-se de seu
partido e mudou o jogo político.
Reafirmando o primado de seus
compromissos eleitorais, Jeffords
reabilita o pacto político que une
eleitores e eleitos.
Por caminhos tortuosos, a renúncia de ACM, até recentemente
peça angular da base governamental no Congresso, também
abre novas perspectivas institucionais no quadro político brasileiro.
Eleito logo no primeiro turno
em 1994, apoiado pelos governadores de seu partido que passavam ao comando dos principais
Estados, FHC intentava lograr a
reeleição. Dispunha de um imenso capital político. Preferiu outorgar-se mais margem de manobra
através do uso sistemático das
medidas provisórias e da aliança
com o PFL. O PFL de ACM: Luís
Eduardo (filho de ACM morto em
1998) detém a presidência da Câmara no primeiro mandato;
ACM, a presidência do Senado no
segundo.
Constitucionalmente, a emenda
da reeleição podia ser encaminhada de duas maneiras: mediante
referendo ou por votação do Congresso. Considerada a mudança
radical que se pretendia introduzir, o referendo era a via adequada. Precedida de um debate nacional, a emenda seria submetida
ao voto popular. Franco Montoro
defendia esse procedimento. Por
suposto, a oposição aproveitaria a
campanha do referendo para
questionar iniciativas controversas do governo. Em vista disso,
FHC preferiu fazer aprovar a
emenda no Congresso. Ora, a
emenda da reeleição trazia no bojo uma armadilha: a manutenção
do câmbio fixo, fonte de boa parte
do prestígio do governo junto à
classe média.
A recusa do referendo armou
uma segunda cilada: para obter a
maioria absoluta nas sucessivas
votações da emenda no Congresso, FHC engolfou-se no clientelismo. Aparentemente contraditórios, o exercício das medidas provisórias e o clientelismo completam-se perfeitamente: curvando-se à servidão voluntária, o Congresso aceita as medidas provisórias em troca da satisfação de seus
interesses paroquiais.
O essencial passava-se noutras
instâncias, formadas pelos atores
internos e externos da globalização. Alegadamente comandado
por gente entendida, o governo
cuidava das coisas sérias, enquanto deputados e senadores faziam
discursos e criavam ranários.
O desastre da manutenção do
câmbio fixo e as mudanças implementadas pelo governo na economia e no patrimônio público só
foram debatidas no Congresso a
contratempo e em meio a vitupérios: no constato de fatos consumados e na apuração de atos delituosos ou reputados como tais.
Tanto o Executivo como o Legislativo enfraqueceram-se com
esse método troncho de governar.
Agora o "apagão" desfez brutalmente a aura de racionalidade
que encobria a tecnocracia governamental. Mais ainda, a síncope
energética atinge o cerne da doutrina que fundamenta a reeleição
presidencial: o pressuposto de
que os cidadãos -governados
por dirigentes aptos ao descortino
histórico e à gestão pública de
longo prazo- têm o direito de reconduzi-los em suas funções, elegendo-os para um novo mandato.
Por que cargas d'água, ou de falta
de chuva, reelegeu-se um presidente que não sabia que iria faltar
energia elétrica?
Ao mesmo tempo, o clima deletério da eleição do atual presidente do Senado e da renúncia dos senadores José Roberto Arruda
(sem partido-DF) e Antonio Carlos Magalhães põe o Congresso
diante de suas responsabilidades.
Nos Estados Unidos não havia
mais política porque os políticos
diziam todos uma coisa só, não
havia desencontros: o mundo real
estava ali. No Brasil não havia
mais política porque os políticos
não diziam nada com nada, não
havia nenhum encontro: o mundo real estava alhures. Saindo do
Partido Republicano por probidade, o senador Jeffords restaura
o papel do Senado na política
americana. Saindo de seu posto
por improbidade, o senador ACM
abre espaço para o revigoramento
do Senado e da política brasileira.
Luiz Felipe de Alencastro é historiador, professor de história do Brasil na
Universidade de Paris-Sorbonne e autor
de "O Trato dos Viventes - Formação do
Brasil no Atlântico Sul" (Cia. das Letras)
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