São Paulo, quarta-feira, 30 de maio de 2001

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ARTIGO

Jeffords, ACM e o ressurgimento da política

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A saída do senador Jim Jeffords do Partido Republicano, pondo o governo de George Bush em minoria no Senado, e a renúncia do senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), obrigando o governo de Fernando Henrique Cardoso a recompor suas alianças no Congresso, marcam o ressurgimento da dinâmica política nos regimes presidencialistas americano e brasileiro.
Afirmou-se que eleger Bush ou Al Gore dava no mesmo. O impasse da contagem de votos na Flórida desmentiu essa interpretação. Longe de desdenhar as apurações, militantes democratas e republicanos saíram às ruas em defesa dos seus candidatos. Em seguida, Bush assumiu de corpo inteiro a plataforma direitista. Ataque aos avanços liberais americanos dos últimos 30 anos, rejeição da diplomacia de desarmamento nuclear, de respeito ao meio ambiente etc. Assim, ao rejeitar a virada ultraconservadora, Jeffords reforça a democracia. Sem chantagens nem arreglos impublicáveis, desfiliou-se de seu partido e mudou o jogo político. Reafirmando o primado de seus compromissos eleitorais, Jeffords reabilita o pacto político que une eleitores e eleitos.
Por caminhos tortuosos, a renúncia de ACM, até recentemente peça angular da base governamental no Congresso, também abre novas perspectivas institucionais no quadro político brasileiro.
Eleito logo no primeiro turno em 1994, apoiado pelos governadores de seu partido que passavam ao comando dos principais Estados, FHC intentava lograr a reeleição. Dispunha de um imenso capital político. Preferiu outorgar-se mais margem de manobra através do uso sistemático das medidas provisórias e da aliança com o PFL. O PFL de ACM: Luís Eduardo (filho de ACM morto em 1998) detém a presidência da Câmara no primeiro mandato; ACM, a presidência do Senado no segundo.
Constitucionalmente, a emenda da reeleição podia ser encaminhada de duas maneiras: mediante referendo ou por votação do Congresso. Considerada a mudança radical que se pretendia introduzir, o referendo era a via adequada. Precedida de um debate nacional, a emenda seria submetida ao voto popular. Franco Montoro defendia esse procedimento. Por suposto, a oposição aproveitaria a campanha do referendo para questionar iniciativas controversas do governo. Em vista disso, FHC preferiu fazer aprovar a emenda no Congresso. Ora, a emenda da reeleição trazia no bojo uma armadilha: a manutenção do câmbio fixo, fonte de boa parte do prestígio do governo junto à classe média.
A recusa do referendo armou uma segunda cilada: para obter a maioria absoluta nas sucessivas votações da emenda no Congresso, FHC engolfou-se no clientelismo. Aparentemente contraditórios, o exercício das medidas provisórias e o clientelismo completam-se perfeitamente: curvando-se à servidão voluntária, o Congresso aceita as medidas provisórias em troca da satisfação de seus interesses paroquiais.
O essencial passava-se noutras instâncias, formadas pelos atores internos e externos da globalização. Alegadamente comandado por gente entendida, o governo cuidava das coisas sérias, enquanto deputados e senadores faziam discursos e criavam ranários.
O desastre da manutenção do câmbio fixo e as mudanças implementadas pelo governo na economia e no patrimônio público só foram debatidas no Congresso a contratempo e em meio a vitupérios: no constato de fatos consumados e na apuração de atos delituosos ou reputados como tais.
Tanto o Executivo como o Legislativo enfraqueceram-se com esse método troncho de governar. Agora o "apagão" desfez brutalmente a aura de racionalidade que encobria a tecnocracia governamental. Mais ainda, a síncope energética atinge o cerne da doutrina que fundamenta a reeleição presidencial: o pressuposto de que os cidadãos -governados por dirigentes aptos ao descortino histórico e à gestão pública de longo prazo- têm o direito de reconduzi-los em suas funções, elegendo-os para um novo mandato. Por que cargas d'água, ou de falta de chuva, reelegeu-se um presidente que não sabia que iria faltar energia elétrica?
Ao mesmo tempo, o clima deletério da eleição do atual presidente do Senado e da renúncia dos senadores José Roberto Arruda (sem partido-DF) e Antonio Carlos Magalhães põe o Congresso diante de suas responsabilidades.
Nos Estados Unidos não havia mais política porque os políticos diziam todos uma coisa só, não havia desencontros: o mundo real estava ali. No Brasil não havia mais política porque os políticos não diziam nada com nada, não havia nenhum encontro: o mundo real estava alhures. Saindo do Partido Republicano por probidade, o senador Jeffords restaura o papel do Senado na política americana. Saindo de seu posto por improbidade, o senador ACM abre espaço para o revigoramento do Senado e da política brasileira.


Luiz Felipe de Alencastro é historiador, professor de história do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul" (Cia. das Letras)


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