São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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JANIO DE FREITAS

Abalos em série

Coincidências, meras ou não, existem. Se não forem apenas isso, para prová-lo são necessárias, muitas vezes, outras coincidências. Ou, pelo menos, algum tempo e boa dose de sorte. Nada disso houve ainda em relação aos abalos impostos à disputa para a Presidência. Mas a sequência de fatos coincidentes em numerosos aspectos tem eloquência própria.
A série começa (ao que se sabe até agora) com a original integração de um delegado da Polícia Federal na assessoria direta do ministro da Saúde, então, José Serra. O questionamento da originalidade teve como explicação a necessidade de investigar as práticas de certos laboratórios. Em se tratando de ilegalidades, sua verificação disporia do âmbito propriamente policial, como determina a lei e sempre ocorreu. Se irregularidades de ordem farmacêutica, para delas se ocupar há, no Ministério, a Vigilância Sanitária, até elevada a agência nacional.
No rescaldo da exclusão de Roseana Sarney da disputa presidencial, revelou-se a atividade, por contratação do Ministério da Saúde, de um coronel do SNI e sua empresa especializados em escuta clandestina de telefones. As explicações para a contratação não resistiram ao mais simples exame: eram só mentiras. Entrevistas do próprio coronel evidenciaram o propósito mentiroso das explicações oficiais. E, nesses casos, só há um motivo para a mentira: a verdade é inconfessável.
Mais escandaloso do que o episódio de São Luís, em si, é que não tenha levado a inquérito algum sobre o que e como se passou ali. Só isso já denuncia a natureza do episódio. Consumado por delegados da Polícia Federal com práticas anormais, umas, e outras ilegais. Os Sarney, conhecedores da face interna do episódio, logo concluíram que os policiais federais valeram-se de escuta clandestina de telefones, inclusive do palácio de governo.
A casa que a PM maranhense estourou pouco mais tarde, sendo acusada pela PF de haver exposto publicamente um núcleo de investigação de narcotráfico, era mesmo uma central de escuta telefônica clandestina. Nada chegou ao Judiciário que resultasse de investigações de narcotráfico por aqueles policiais. E outra vez as mentiras em abundância. De cima a baixo:
O então ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira: "Estava informado [do que se passaria em São Luís". Não comuniquei ao presidente porque não quis e não era necessário".
O então diretor da Polícia Federal, Agílio Monteiro Filho, depondo em comissão do Senado: "O ministro não estava informado da operação". O senador Jefferson Péres estranha, e insiste, falando quase sílaba por sílaba: "O senhor está dizendo que o ministro não sabia?" Agílio, enfático: "Não sabia".
Quando não se pode acreditar no ministro da Justiça e no diretor da Polícia Federal, por não saber qual é o (mais?) mentiroso, não há o que surpreender ainda no governo. Ou no país mesmo. E não surpreendeu: até os jornais explicitamente governistas publicaram a convicção de que outros candidatos oposicionistas, em especial Luiz Inácio Lula da Silva, logo teriam os seus dias de vítimas.
Tal como em São Luís, o pretexto do narcotráfico foi utilizado pela Polícia Federal para escutas clandestinas de mais de 40 telefones ligados à administração do PT em Santo André, sob a cobertura de investigar a morte do prefeito Celso Daniel. A Polícia Federal não pode justificar-se nem ao menos com uma pequena colaboração: o que está dito sobre o assassinato foi apurado só pela polícia paulista. E nem sobre as acusações de propinas naquela prefeitura a Polícia Federal contribuiu com alguma apuração. Seus fins eram outros.
Em relação a esses fins, não faltou com a colaboração, involuntária embora: a partir dali, escapou o conhecimento de que Lula da Silva estava sob investigação havia 19 meses, de novembro de 2000 até quarta-feira passada. Investigação clandestina, porque sem o inquérito exigido pela legislação. Partida de suposta denúncia de falso ex-prefeito. E instaurada por ações coincidentes de delegados da Polícia Federal ocupados, em Brasília, para todos os efeitos oficiais, com diferentes tarefas em diferentes instâncias.
Diante de tanta coincidência de modos, personagens e sentido dos efeitos, vontade não basta para descrer da existência de uma trama contra a legitimidade da disputa eleitoral (sem falar nas contribuições dadas pelo Tribunal Superior Eleitoral e em seus conselhos e decisões no fundo da madrugada).
Eric Ambler, um dos menos citados e por certo o melhor dos autores de romances de investigação, vários com temas de política, adotou e citou muito este princípio: nos crimes e demais atos ilegais em torno de políticos, o que menos interessa é quem os praticou; os interessados, sim, são o que importa, para se chegar à verdade dos fatos e dos homens. É, de fato, um princípio lúcido e útil.



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