São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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ELIO GASPARI

O dinheiro das escolas vai para a privataria

Num dia de março de 1996 havia dois aviões no aeroporto de Los Angeles. Num viajara FFHH, que passaria pela Universidade de Stanford para receber a beca de doutor honoris causa. No outro viera o então presidente Bill Clinton. Ia participar de um programa de voluntários, ajudando a instalar cabos de telefonia em escolas públicas da Califórnia, ligando-as à internet. Era a época em que o governo de FFHH orgulhava-se de ter um projeto destinado a jogar bilhões de reais na informatização das redes públicas de educação e saúde.
No ocaso de seu reinado, FFHH está desmanchando o que disse estar interessado em fazer. Quer tirar o dinheiro destinado à informatização de escolas e centros de saúde para entregá-lo às empresas de telefonia fixa. Dando nome aos bois: Telemar, Telefônica e Brasil Telecom. Uma tunga de R$ 528 milhões.
Nos países onde o capitalismo tem lucros e riscos, quando as companhias telefônicas vão mal, mal elas vão. Viraram mico na Europa, e nos Estados Unidos quebrou a WorldCom. Em Pindorama a coisa é diferente. Quando iam bem, a Embratel (controlada pela WorldCom) patrocinou a conta de R$ 500 mil do Réveillon de FFHH no Forte de Copacabana, na virada de 1999. Quando vão mal, avançam na bolsa da Viúva. Deve-se ao deputado Sérgio Miranda (PC do B-MG) e à repórter Teresa Cruvinel a denúncia da manobra, típica da metodologia do andar de cima para sugar o dinheiro que deveria ir ao de baixo.
Quando o ministro Sérgio Motta concebeu o modelo do sistema privado de telecomunicações, criou um Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, o Fust. Ele seria alimentado por uma taxa de 1% sobre o faturamento mensal das empresas (leia-se dinheiro dos consumidores). Hoje esse fundo tem R$ 1,2 bilhão. Uma das jóias mais exibidas pela propaganda do governo era a utilização da maior parte desse dinheiro na informatização das redes públicas de educação e saúde. A preocupação em ligar as crianças à internet é uma constante dos governos de todo o mundo e foi um dos pontos centrais da plataforma eleitoral de Tony Blair, na Inglaterra.
Ia tudo muito bem até o dia em que as companhias de telefonia fixa começaram a reclamar da inadimplência de seus clientes e dos altos custos das metas destinadas a atender as regiões mais pobres do país. Lorota. Têm inadimplentes porque superdimensionaram o mercado, porque cobram caro e porque não mostram aos consumidores as armadilhas de seus serviços.
Para preservar seus lucros, conseguiram o apoio do governo e transformaram-se em doces defensores dos pobres. Pediram que a maior parte do dinheiro do Fust fosse utilizado para o atendimento de comunidades carentes. Essa idéia surgiu em fevereiro passado, na voz do presidente da Brasil Telecom. É falsa. O que está em questão é o cumprimento de metas contratuais. Os contratos da privataria só são sacrossantos quando as engordam. Se as distribuidoras de energia perdem faturamento por conta do apagão, a choldra paga tarifas mais caras para ressarci-las porque os contratos devem ser cumpridos. Quando as telefônicas não cumprem as metas, arma-se a mudança dos contratos. Nessa hora, coloca-se a expressão "comunidades carentes" no negócio, como se joga manjericão num bom espaguete.
Ainda em fevereiro as companhias de telefonia fixa anunciavam sua disposição de procurar o governo, o Congresso e os candidatos a presidente. Pelo jeito, com o governo deram-se bem. Há duas semanas o Ministério do Planejamento mandou ao Congresso um projeto de lei que tunga os investimentos do Fust em educação de R$ 480 milhões para R$ 119 milhões. A rede de saúde, que deveria receber R$ 227 milhões, receberá R$ 60,7 milhões. As telefônicas, coitadinhas, ficarão com R$ 612,3 milhões. Pela conta antiga, deveriam receber apenas R$ 112,3 milhões. A tunga deverá ser aprovada pelo Congresso, e sua tramitação tem cheiro de arroz queimado. Não há tempo para que seja votada antes da eleição. Há tempo, contudo, para que seja votada antes do final do mandato de FFHH. Com isso entra-se no lusco-fusco político, no qual um governo já acabou e o outro não começou, votando-se num Congresso onde, com exceção de um terço dos senadores, quem já foi eleito nada tem a temer e quem não o foi pode até descobrir um jeito de cuidar do próprio futuro.
Se o Congresso aprovar a tunga, os contratos serão revistos e o dinheiro do Fust fará um interessante percurso. Irá do bolso do consumidor para a caixa do governo e, dela, para as empresas. Assim, privatizou-se a telefonia onde ela dá lucro fácil e estatizou-se o serviço onde ele demanda mais investimentos e resulta em menor retorno. No meio do caminho, a informatização das redes de educação e saúde públicas vai para o espaço.
Se em março de 1996 FFHH tivesse ido ajudar a instalação de cabos em escolas do Piauí e Bill Clinton tivesse ganho o título de doutor de Stanford, onde estudava sua filha, talvez as coisas tivessem andado de outro jeito.
As concessionárias de telefonia fixa estão mostrando quão grande é seu poder de persuasão. Felizmente, há o que fazer. Basta que se cobre de cada candidato a presidente que revele, desde já, o destino que julga mais adequado para o dinheiro que os consumidores remetem ao Fust.

Registro de risco

Terminada a Copa, o mercado e as grandes casas bancárias continuarão divulgando suas previsões para o comportamento da economia mundial.
Aqui vão, de novo, duas previsões para o mundo da bola, feitas em maio:
Segundo o mercado de apostadores, as seguintes seleções chegariam às semifinais: Argentina (com 2 chances em 7), França (1 em 4), Itália e Brasil (1 em 6). Só o Brasil chegou lá.
Segundo um estudo bem-humorado da casa nova-iorquina Goldman Sachs, os semifinalistas seriam Argentina, França, Itália e Espanha. Nenhum chegou lá.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota e acredita em tudo o que o governo diz. Ele leu a explicação que o delegado Gilberto Tadeu Vieira Cezar, da Polícia Federal, deu para o fato de se terem grampeado sete telefones de petistas durante as investigações do assassinato do prefeito de $anto André, Celso Daniel. O pedido do DPF à Justiça era claro: os telefones "estariam sendo utilizados sistematicamente como meio de contato na articulação de organização criminosa atuando junto ao tráfico de drogas".
A explicação do porta-voz do DPF:
"Foi um problema de formatação do ofício".
O idiota pretende passar o dia de amanhã percorrendo a rede bancária. Tem consigo uma dúzia de cheques de R$ 1 milhão em bancos onde seu saldo é de R$ 10. Se algum gerente chamar a polícia, Eremildo dirá que "foi um problema de formatação do cheque".

O papel de Simonsen na ditadura

O general Ernesto Geisel pregou mais uma peça aos seus críticos. Tendo doado o arquivo de sua Presidência ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), abriu o caminho para que nove pesquisadores, liderados po Celso Castro e Maria Celina D'Araujo, publicassem o livro "Dossiê Geisel", com a análise de 4.000 documentos. O papelório deixado por Geisel faz com que sua Presidência, uma das mais secretas da República, tenha se tornado uma das mais ricas em documentação. Facilitou a pesquisa e complicou bastante a análise.
Um bom exemplo disso pode ser encontrado na interpretação segundo a qual o ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, pretendia incorporar o AI-5 à Constituição sob forma de salvaguardas.
Simonsen nunca defendeu isso, nem havia no governo de Geisel qualquer ministro que defendesse essa posição. (O ministro do Exército general Silvio Frota podia ser contra a revogação do AI-5, mas nem ele defendia a sua incorporação à Carta.) As salvaguardas exigidas por Geisel relacionavam-se sobretudo com a possibilidade de se decretar o estado de emergência. Nada a ver com a suspensão do habeas corpus, cassações de mandatos ou recesso parlamentar. O AI-5 foi extinto em janeiro de 1979 precisamente porque as salvaguardas foram incluídas na Constituição.
Simonsen, como o general Golbery do Couto e Silva, acreditava que as salvaguardas poderiam entrar em vigor ainda em 1976, permitindo a revogação do AI-5 no famoso Pacote de Abril, que criou a figura dos senadores biônicos, eleitos indiretamente. Geisel achou mais prudente esperar.
Durante o tempo em que ocupou o Ministério da Fazenda, Simonsen foi um leal servidor de um governo ditatorial, mas não é justo que sua biografia carregue a suspeita de que tenha sido um defensor de uma ordem constitucional que incorporasse o AI-5 à Constituição. Pelo contrário, todas as vezes em que Geisel chocou-se com a linha-dura, o professor estava ao seu lado. Em episódios pontuais, como no banzé criado em torno da prisão da economista Maria da Conceição Tavares, em novembro de 1975, Simonsen e o ministro Severo Gomes, da Indústria e Comércio, funcionaram como uma espécie de banda de música anti-DOI. Solta, Conceição resolveu viajar e, por receio de que voltassem a prendê-la, foi levada à porta do avião num carro do Ministério da Fazenda, protegida pela segurança de Simonsen.

Curso Madame Natasha de piano e português

Madame Natasha tem horror a música e adora grampos. Acha ótima a idéia de se usar a polícia para grampear as pessoas. Elas ficariam mais bonitas, com o cabelo arrumado. Preocupada com o Risco Camões, ela concedeu mais uma de suas bolsas de estudo ao professor de literatura José Mário da Silva, da Universidade Federal da Paraíba, pelas suas observações a respeito do livro de poesias "Os Resistentes", de Alexei Bueno:
"A escritura de Alexei Bueno consolida, em seu particular sistema poético e no de outros autores que percorrem similar itinerário, o reencontro da poesia com a sua vocação de profundidade discursiva e elevação do pensamento, com a sua vertical e bem trabalhada dimensão logopéica, sem nenhum prejuízo para os estratos melopéico e fanopéico, consoante a tríade conceitual postulada por Pound, ao acercar-se do fenômeno poético".
Natasha acredita que ele quis dizer que Bueno é um bom poeta.

Lealdade pública

O ministro da Justiça, Miguel Reale Jr., tem 57 anos. Passou a maior parte de sua vida adulta num regime ditatorial. Fazendo-lhe oposição, construiu uma biografia na qual confundem-se a defesa do direito e a da democracia. Por conta disso, é provável que tenha pouca, ou nenhuma, admiração pelo general americano Vernon Walters, adido do Exército da embaixada americana em 1964, quando o presidente João Goulart foi deposto.
Pode ser que não haja valia na recordação. Walters saiu do Brasil, foi servir em Paris, passou pelo Vietnã e em 1972 chegou a vice-diretor da Central Intelligence Agency, nomeado pelo presidente Richard Nixon. Mal tinha esquentado a cadeira, começou o caso Watergate, no qual a Casa Branca meteu-se a grampear a sede do Partido Democrata. Um ano depois, quando as investigações já estavam na ante-sala de Nixon, seu chefe de gabinete teve uma idéia. Resolveu pedir a Walters que telefonasse ao diretor do FBI dizendo que um depósito de US$ 89 mil achado na conta dos grampeadores era coisa da CIA e, por envolver a segurança nacional, deveria ser esquecido. Fez isso em nome do presidente. Walters ouviu, redigiu um memorando com o resumo da conversa e dias depois ligou para a Casa Branca. Nada feito, informou o general.
O caso foi adiante e deu no que deu. Walters morreu em fevereiro passado, aos 85 anos, depois de escrever um livro no qual chama Nixon de estadista, despreza o caso Watergate e lastima seu desfecho.
Quando contava o caso, explicava que, como servidor público, não podia fazer o que a Casa Branca lhe pedira. (Em tempo: o ministro da Justiça de Nixon acabou preso.)



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