|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BRASIL PROFUNDO
Instituto Terra, ONG criada pelo fotógrafo brasileiro, realiza reflorestamento em área de Aimorés (MG)
Projeto de Salgado recupera mata atlântica
MARCOS SÁ CORRÊA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A melhor fazenda de Aimorés
(MG), no Vale do Rio Doce, está
com os dias contados. É a única
da região que emprega cerca de 70
pessoas, sua produção cresce sem
parar e seus pastos, ao contrário
dos morros da vizinhança, atravessaram a última estiagem sem
perder o verde. Se continuar assim, não chegará ao fim da década, engolida pela floresta que está
fabricando em seus viveiros para
cobrir cada palmo de seus 650
hectares.
Sobrará, na sede, o espaço necessário à criação de mudas da
mata atlântica, os técnicos em reflorestamento, os tratoristas treinados para mexer na terra sem escalavrar barrancos e outros produtos típicos da educação ambiental.
Ela está longe de ser um exemplo clássico de administração rural. Para começar, não tem fins lucrativos e o MST tem a prerrogativa de palpitar em seu destino.
Chama-se Fazenda Bulcão, mas
sua porteira anuncia a entrada do
Instituto Terra, uma ONG. Seu estábulo foi remodelado como escritório. A balança de gado virou
refeitório. E o curral de bezerros,
um pátio de festas. Em vez de uma
casa grande, tem duas: a das suítes
para professores e a dos alojamentos para alunos. E junto às salas de aula acaba de ser aberto o
primeiro teatro de Aimorés.
Há quatro anos a fazenda foi registrada como reserva particular
do patrimônio natural, a primeira
RPPN do Brasil instituída numa
área degradada para preservar a
unidade de conservação que ela
ainda virá a ser. E seu dono, que
com essas decisões praticamente
renunciou ao direito de propriedade, é o fotógrafo Sebastião Salgado, que mora em Paris e trabalha nos cinco continentes ao mesmo tempo.
Criado ali, há 33 anos se mudou
do Brasil, por alergia aos governos
militares, e só vem a Aimorés nas
férias.
Ele comprou a fazenda dez anos
atrás, sem ter a embocadura de fazendeiro. Mas seu pai, que naquela divisa de Minas Gerais com o
Espírito Santo continua sendo o
Sebastião Salgado original, quando passou dos 80 anos achou que
não poderia descarregar nas sete
filhas aquele problema familiar, e
convocou o único varão a tratar
do assunto. Deu no que deu.
O velho passou a vida derrubando mato, e o filho já deixou
350 mil árvores retomarem terrenos que pareciam conquistados
de uma vez por todas pelo capim.
É um número de mudas quatro
vezes maior que o usado no século 19 pelo major Archer para lançar sobre a cidade do Rio de Janeiro a semente do Parque Nacional
da Tijuca. E, ao contrário do major, que contava com seis escravos, ao reflorestamento da fazenda aderiram em 1999 todos os alunos das escolas de Aimorés.
Oásis
Por enquanto, 163 hectares da
antiga Bulcão estão debaixo de
uma mata atlântica rasteira, que
mal começou a dar sombra, mas
já abriga um oásis artificial. Os
pesquisadores que acompanham
seu crescimento descobriram
mais pássaros lá do que no resto
da região. E acharam até uma suçuarana confinada num retalho
capoeira que à primeira vista parece acanhado até para tatu.
As madeireiras e os criadores de
gado subiram há menos de um século o Vale do Rio Doce, mas fizeram um estrago. Os pastos ocupam 89,4% do município mas, no
fim do inverno, eles não passam
de uma palha amarela que só o fogo consegue comer. A pecuária se
considera a base de sua economia,
mas, nesta estação, é difícil ver um
boi nos morros amarelados.
Nos 184 quilômetros da estrada
para Vitória, o tráfego das bicicletas anuncia a mudança de mão
entre o campo e a cidade. Elas
saem da roça descarregadas e voltam com sacos de mantimentos
balançando no guidão.
Aimorés, que data de 1916, perdeu 60% de sua população nos últimos 40 anos.
Inclusive o fotógrafo Sebastião
Salgado, que agora está voltando
devagar às raízes pela contramão
de sua história.
Para começar, transformou Aimorés num estranho pólo de turismo, porque vem gente de toda
parte ver sua fazenda antes que
acabe. Como Antonio Maciel, que
é mexicano, vive em Nova York e
dirige o Open Society Institute, a
mão beneficente do financista
George Soros. E em sua última
passagem pelo Brasil, foi até lá ver
para dar uma espiada no projeto
de reflorestamento. Sozinho, de
carro alugado e para passar poucas horas.
O anfitrião está ali para isso
mesmo. A reputação internacional que construiu como fotógrafo
é o verdadeiro fertilizante da fazenda.
Milhões em doações
Ela nunca viu tanto dinheiro
quanto nesta fase em que deixou
de ser lucrativa. Recebeu doações
de grandes empresas nacionais,
como a Companhia Vale do Rio
Doce e a Natura.
Tem vários patrocínios oficiais,
como o do Ministério do Meio
Ambiente, que lhe deu um viveiro
de mudas, ou da Prefeitura de Aimorés, que a ligou à rede municipal de esgotos. Do exterior vieram
recursos da Legambiente italiana,
do laboratório Aventis Pasteur
francês e de várias fundações
americanas.
As exposições fotográficas de
Sebastião Salgado lhe rendem
presentes. Foi assim que a cidade
de Parma bancou a nova garagem
de tratores. Palestras em grandes
universidades dos Estados Unidos costumam acabar com uma
passagem do chapéu.
Ele estima que até agora, fora o
terreno, que custou 400 mil dólares tirados de seu bolso, o projeto
esteja consumindo entre US$ 2
milhões e US$ 2,3 milhões de dólares. Não dá para ser mais preciso porque parte do apoio veio em
forma de serviços. Mas basta para
mostrar como é caro desfazer
uma fazenda.
Seu pai explorou aquela terra
até gastar e, em mais de 30 anos,
não tirou dela o que está entrando
agora para devolvê-la integralmente à floresta. Mas este não é
um argumento contra o projeto e
sim a favor.
"É por isso mesmo que tento
convencer as pessoas a parar com
a devastação. Aqui, para refazer
cada hectare, gastamos uns US$
2.000. Imagine quanto será preciso quando chegar a hora de remendar a Amazônia? Uns US$
600 bilhões", diz Salgado.
Antes que passasse a incluir
uma máquina fotográfica na bagagem das viagens que fazia pela
Organização Internacional do Café, ele era economista.
ONG de celebridades
Uma ONG assim não é para
qualquer um. Seu conselho é uma
galeria de celebridades, misturando entre outros o compositor Chico Buarque, o empresário José
Mindlin, o dirigente sem-terra
João Pedro Stédile, o diretor da
Conservation International Russel Mittermeier e o monge budista
Cristiano Bitti, prior do mosteiro
zen Morro da Vargem, no Espírito Santo.
No folheto "Saving Brazil's
Atlantic Forest", que promove o
Instituto Terra em inglês, o texto é
de Alan Riding, correspondente
do jornal The New York Times
em Paris.
Embora tenha nascido em Juiz
de Fora e planos para um dia trabalhar no Vale do Jequitinhonha,
a diretora do instituto é a bióloga
Aline Tristão Bernardes, que Salgado pescou em Washington, como consultora do Banco Mundial. "Ele me ligou de Nova York
dizendo que queria conversar e
não teve jeito", diz ela, que veio
para Aimorés com salário de R$
2.000 e em poucos meses já se estabeleceu na cidade com casa,
marido e filho adotivo, todos encontrados lá mesmo.
Dos dois viveiros da fazenda
saem 160 mil mudas por ano
combinando 118 espécies diferentes de árvores nativas.
E há mais um viveiro em construção que, pronto, levará a produção anual a 250 mil mudas. Estão entregues a Alexandre Nicole,
tirado da Embrapa, onde cuidava
de viveiros de árvores frutíferas. E
nem na estatal ele lidou com uma
complicação dessa magnitude.
"Cem mil pés de café são cem
mil vezes a mesma coisa. Aqui, cada espécie da mata atlântica exige
um tratamento diferente. Eu tenho que aprender fazendo", ele
explica.
"Para mim isso é brincar de
Deus", resume o naturalista Célio
Murilo Carvalho do Valle, um padrinho. Ele presidia o Instituto
Estadual de Florestas quando
chegou ao governo mineiro o
processo de credenciamento da
fazenda como reserva.
Hoje, aposentado, morando em
Belo Horizonte, que fica a 465 quilômetros dali, ele passa em média
duas semanas por mês em Aimorés, ajudando como voluntário a
tocar os cursos do Centro de Educação e Recuperação Ambiental.
"E não nos cobra um tostão pela
consultoria", comenta Salgado.
O que Valle lhe cobrou foi outra
coisa: "Numa dessas vindas ele
me disse que não ficava bem uma
RPPN ter bois. No dia seguinte eu
mandei o gado todo embora".
Reviravolta
A mudança foi tão repentina
que espantou o vaqueiro Manoel
Lopes. "Estou com 62 anos e nunca tinha ouvido falar nisso", ele
conta. "Sou analfabeto mas conheço esta fazenda desde os nove
anos. Meu pai já trabalhava para o
pai dele".
Lá, Sebastião Salgado continua
sendo o velho. O filho famoso é
Tião. O pai já andava por Aimorés
na década de 1930, quando gastava duas semanas levando sua tropa de burros dali a Manhuaçu por
mais de 100 quilômetros de caminhos pelo meio da mata.
Mais de 20 anos depois, quando
era menino, o filho ainda conheceu a fazenda com "bandos de bugios berrando atrás de casa e jacarés no córrego".
"Quando vim para cá ainda encontrei muito corte de mata",
lembra o vaqueiro. "Mas a gente
sempre vai tirando lasca de árvore
para fazer cerca. Por meia dúzia
de lascas se estragava uma peroba
inteira. Até que o mato acabou.
Ficou só o capim colonião. Depois, nem ele. Cheguei a tratar
aqui de 400 vacas. Tirava 750 litros de leite por dia. No fim, quando as vacas davam 150 litros era
muito".
Pior, para sua mulher, foi o sumiço dos pomares e roçados.
"Depois que o gado nelore entrou
aqui, todo mundo pegou de mandar os meeiros embora para abrir
pasto. Diziam que boi dava menos trabalho que a agricultura e
que o mato punha berne no gado.
Com o velho Sebastião a coisa
funcionava assim."
Desde que o gado saiu, Manoel
Lopes virou jardineiro. Garante
que a adaptação foi rápida: "É só
pegar a mão. Planta não foge, não
põe a gente nervoso". A iniciativa
de sua conversão partiu da arquiteta Lélia Warnick Salgado, "a
mulher do Tião", como se diz em
Aimorés. Eles estão juntos há
quase 40 anos.
Ela é mãe de seus dois filhos,
programadora gráfica da maioria
de seus doze livros, organizadora
de suas grandes mostras internacionais e administradora da Imagens da Amazônia, a agência exclusiva de suas fotografias.
Foi Lélia, segundo o marido,
que mudou o destino da fazenda:
"Quando revimos as terras que tínhamos acabado de comprar,
quase choramos com o estado de
degradação em que estava. E ela
teve a mesma hora a idéia de plantar árvores."
Futuro
Daí para a radicalização foi um
pulo, que os dois deram juntos.
Com a palavra Sebastião Salgado:
"Eu tenho apartamento e um escritório em Paris, uma casa em
Vitória e mais nada. Como reserva e ONG, isto aqui a rigor deixou
de ser minha propriedade. A época, todo mundo achou que eu estava doido. Ela não. Meu pai reclamava que eu estava torrando o
dinheiro da aposentadoria. O que
iria fazer quando ficasse velho?"
Agora ele tem a resposta.
Aos 58 anos, tem planos para os
próximos 30, quando seus viveiros terão gerado 60 milhões de
mudas, o suficiente para encher
de mata fechada pelo menos 210
quilômetros quadrados. Ou um
quinto de toda Aimorés. E sabe
que, como suas árvores, seu projeto está pegando.
O pai, aos 94 anos, aparece agora de vez em quando na antiga sede, para saber como a fazenda vai
andando. Os fazendeiros vizinhos, que no começo riram dessa
história toda, já fazem fila para os
cursos que ensinam, por exemplo, pequenos produtores de leite
quase quebrados a dar a volta por
cima fazendo queijo de Minas e
iogurte artesanais para vender em
delicatessen.
A prefeitura de Aimorés entrou
no clima. Com o sistema de tratamento inaugurado dois anos
atrás, devolve ao rio Doce o esgoto pluvial da cidade com 95% de
pureza. Ou seja, mais limpa do
que antes de usar. E seu lixo está
sendo reciclado.
"Antes mesmo que o Tião começasse com essas idéias, nos já
estávamos pensando que era preciso fazer alguma coisa", diz o
prefeito Jurandir da Rocha, um
ex-colega do ginásio Pan-Americano.
"Muita gente estava indo embora. A cidade já teve 50 mil habitantes. Agora tem 24 mil. Se não tomássemos uma providência logo,
depois não iria dar tempo."
"Acho que sou um dos fotógrafos mais publicados em toda a história da fotografia", diz Sebastião
Salgado. Modéstia. Para ficar
num exemplo de sua estatura
profissional, no site Legends On
Line, que a Kodak e a revista PDN
mantêm na internet, toda a fotografia contemporânea coube em
26 nomes e o seu está ao lado de
fenômenos como Steve McCurry,
aquele do retrato esgazeado da
menina afegã. "Mas quero ser
lembrado pelo que estou fazendo
aqui".
O jornalista Marcos Sá Corrêa é colunista
do site No Mínimo. Foi editor-chefe do
"Jornal do Brasil", diretor de redação de
"O Dia", além de colunista das revistas
"Veja" e "Época".
Texto Anterior: Outro Lado: Empresas refutam privilégios Próximo Texto: Entrevista da 2ª: Anúncio rápido de "novo" BC irá acalmar o mercado Índice
|