São Paulo, segunda-feira, 30 de setembro de 2002

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BRASIL PROFUNDO

Instituto Terra, ONG criada pelo fotógrafo brasileiro, realiza reflorestamento em área de Aimorés (MG)

Projeto de Salgado recupera mata atlântica

MARCOS SÁ CORRÊA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A melhor fazenda de Aimorés (MG), no Vale do Rio Doce, está com os dias contados. É a única da região que emprega cerca de 70 pessoas, sua produção cresce sem parar e seus pastos, ao contrário dos morros da vizinhança, atravessaram a última estiagem sem perder o verde. Se continuar assim, não chegará ao fim da década, engolida pela floresta que está fabricando em seus viveiros para cobrir cada palmo de seus 650 hectares.
Sobrará, na sede, o espaço necessário à criação de mudas da mata atlântica, os técnicos em reflorestamento, os tratoristas treinados para mexer na terra sem escalavrar barrancos e outros produtos típicos da educação ambiental.
Ela está longe de ser um exemplo clássico de administração rural. Para começar, não tem fins lucrativos e o MST tem a prerrogativa de palpitar em seu destino. Chama-se Fazenda Bulcão, mas sua porteira anuncia a entrada do Instituto Terra, uma ONG. Seu estábulo foi remodelado como escritório. A balança de gado virou refeitório. E o curral de bezerros, um pátio de festas. Em vez de uma casa grande, tem duas: a das suítes para professores e a dos alojamentos para alunos. E junto às salas de aula acaba de ser aberto o primeiro teatro de Aimorés.
Há quatro anos a fazenda foi registrada como reserva particular do patrimônio natural, a primeira RPPN do Brasil instituída numa área degradada para preservar a unidade de conservação que ela ainda virá a ser. E seu dono, que com essas decisões praticamente renunciou ao direito de propriedade, é o fotógrafo Sebastião Salgado, que mora em Paris e trabalha nos cinco continentes ao mesmo tempo.
Criado ali, há 33 anos se mudou do Brasil, por alergia aos governos militares, e só vem a Aimorés nas férias.
Ele comprou a fazenda dez anos atrás, sem ter a embocadura de fazendeiro. Mas seu pai, que naquela divisa de Minas Gerais com o Espírito Santo continua sendo o Sebastião Salgado original, quando passou dos 80 anos achou que não poderia descarregar nas sete filhas aquele problema familiar, e convocou o único varão a tratar do assunto. Deu no que deu.
O velho passou a vida derrubando mato, e o filho já deixou 350 mil árvores retomarem terrenos que pareciam conquistados de uma vez por todas pelo capim. É um número de mudas quatro vezes maior que o usado no século 19 pelo major Archer para lançar sobre a cidade do Rio de Janeiro a semente do Parque Nacional da Tijuca. E, ao contrário do major, que contava com seis escravos, ao reflorestamento da fazenda aderiram em 1999 todos os alunos das escolas de Aimorés.

Oásis
Por enquanto, 163 hectares da antiga Bulcão estão debaixo de uma mata atlântica rasteira, que mal começou a dar sombra, mas já abriga um oásis artificial. Os pesquisadores que acompanham seu crescimento descobriram mais pássaros lá do que no resto da região. E acharam até uma suçuarana confinada num retalho capoeira que à primeira vista parece acanhado até para tatu.
As madeireiras e os criadores de gado subiram há menos de um século o Vale do Rio Doce, mas fizeram um estrago. Os pastos ocupam 89,4% do município mas, no fim do inverno, eles não passam de uma palha amarela que só o fogo consegue comer. A pecuária se considera a base de sua economia, mas, nesta estação, é difícil ver um boi nos morros amarelados.
Nos 184 quilômetros da estrada para Vitória, o tráfego das bicicletas anuncia a mudança de mão entre o campo e a cidade. Elas saem da roça descarregadas e voltam com sacos de mantimentos balançando no guidão.
Aimorés, que data de 1916, perdeu 60% de sua população nos últimos 40 anos.
Inclusive o fotógrafo Sebastião Salgado, que agora está voltando devagar às raízes pela contramão de sua história.
Para começar, transformou Aimorés num estranho pólo de turismo, porque vem gente de toda parte ver sua fazenda antes que acabe. Como Antonio Maciel, que é mexicano, vive em Nova York e dirige o Open Society Institute, a mão beneficente do financista George Soros. E em sua última passagem pelo Brasil, foi até lá ver para dar uma espiada no projeto de reflorestamento. Sozinho, de carro alugado e para passar poucas horas.
O anfitrião está ali para isso mesmo. A reputação internacional que construiu como fotógrafo é o verdadeiro fertilizante da fazenda.

Milhões em doações
Ela nunca viu tanto dinheiro quanto nesta fase em que deixou de ser lucrativa. Recebeu doações de grandes empresas nacionais, como a Companhia Vale do Rio Doce e a Natura.
Tem vários patrocínios oficiais, como o do Ministério do Meio Ambiente, que lhe deu um viveiro de mudas, ou da Prefeitura de Aimorés, que a ligou à rede municipal de esgotos. Do exterior vieram recursos da Legambiente italiana, do laboratório Aventis Pasteur francês e de várias fundações americanas.
As exposições fotográficas de Sebastião Salgado lhe rendem presentes. Foi assim que a cidade de Parma bancou a nova garagem de tratores. Palestras em grandes universidades dos Estados Unidos costumam acabar com uma passagem do chapéu.
Ele estima que até agora, fora o terreno, que custou 400 mil dólares tirados de seu bolso, o projeto esteja consumindo entre US$ 2 milhões e US$ 2,3 milhões de dólares. Não dá para ser mais preciso porque parte do apoio veio em forma de serviços. Mas basta para mostrar como é caro desfazer uma fazenda.
Seu pai explorou aquela terra até gastar e, em mais de 30 anos, não tirou dela o que está entrando agora para devolvê-la integralmente à floresta. Mas este não é um argumento contra o projeto e sim a favor.
"É por isso mesmo que tento convencer as pessoas a parar com a devastação. Aqui, para refazer cada hectare, gastamos uns US$ 2.000. Imagine quanto será preciso quando chegar a hora de remendar a Amazônia? Uns US$ 600 bilhões", diz Salgado.
Antes que passasse a incluir uma máquina fotográfica na bagagem das viagens que fazia pela Organização Internacional do Café, ele era economista.

ONG de celebridades
Uma ONG assim não é para qualquer um. Seu conselho é uma galeria de celebridades, misturando entre outros o compositor Chico Buarque, o empresário José Mindlin, o dirigente sem-terra João Pedro Stédile, o diretor da Conservation International Russel Mittermeier e o monge budista Cristiano Bitti, prior do mosteiro zen Morro da Vargem, no Espírito Santo.
No folheto "Saving Brazil's Atlantic Forest", que promove o Instituto Terra em inglês, o texto é de Alan Riding, correspondente do jornal The New York Times em Paris.
Embora tenha nascido em Juiz de Fora e planos para um dia trabalhar no Vale do Jequitinhonha, a diretora do instituto é a bióloga Aline Tristão Bernardes, que Salgado pescou em Washington, como consultora do Banco Mundial. "Ele me ligou de Nova York dizendo que queria conversar e não teve jeito", diz ela, que veio para Aimorés com salário de R$ 2.000 e em poucos meses já se estabeleceu na cidade com casa, marido e filho adotivo, todos encontrados lá mesmo.
Dos dois viveiros da fazenda saem 160 mil mudas por ano combinando 118 espécies diferentes de árvores nativas.
E há mais um viveiro em construção que, pronto, levará a produção anual a 250 mil mudas. Estão entregues a Alexandre Nicole, tirado da Embrapa, onde cuidava de viveiros de árvores frutíferas. E nem na estatal ele lidou com uma complicação dessa magnitude.
"Cem mil pés de café são cem mil vezes a mesma coisa. Aqui, cada espécie da mata atlântica exige um tratamento diferente. Eu tenho que aprender fazendo", ele explica.
"Para mim isso é brincar de Deus", resume o naturalista Célio Murilo Carvalho do Valle, um padrinho. Ele presidia o Instituto Estadual de Florestas quando chegou ao governo mineiro o processo de credenciamento da fazenda como reserva.
Hoje, aposentado, morando em Belo Horizonte, que fica a 465 quilômetros dali, ele passa em média duas semanas por mês em Aimorés, ajudando como voluntário a tocar os cursos do Centro de Educação e Recuperação Ambiental. "E não nos cobra um tostão pela consultoria", comenta Salgado.
O que Valle lhe cobrou foi outra coisa: "Numa dessas vindas ele me disse que não ficava bem uma RPPN ter bois. No dia seguinte eu mandei o gado todo embora".

Reviravolta
A mudança foi tão repentina que espantou o vaqueiro Manoel Lopes. "Estou com 62 anos e nunca tinha ouvido falar nisso", ele conta. "Sou analfabeto mas conheço esta fazenda desde os nove anos. Meu pai já trabalhava para o pai dele".
Lá, Sebastião Salgado continua sendo o velho. O filho famoso é Tião. O pai já andava por Aimorés na década de 1930, quando gastava duas semanas levando sua tropa de burros dali a Manhuaçu por mais de 100 quilômetros de caminhos pelo meio da mata.
Mais de 20 anos depois, quando era menino, o filho ainda conheceu a fazenda com "bandos de bugios berrando atrás de casa e jacarés no córrego".
"Quando vim para cá ainda encontrei muito corte de mata", lembra o vaqueiro. "Mas a gente sempre vai tirando lasca de árvore para fazer cerca. Por meia dúzia de lascas se estragava uma peroba inteira. Até que o mato acabou. Ficou só o capim colonião. Depois, nem ele. Cheguei a tratar aqui de 400 vacas. Tirava 750 litros de leite por dia. No fim, quando as vacas davam 150 litros era muito".
Pior, para sua mulher, foi o sumiço dos pomares e roçados. "Depois que o gado nelore entrou aqui, todo mundo pegou de mandar os meeiros embora para abrir pasto. Diziam que boi dava menos trabalho que a agricultura e que o mato punha berne no gado. Com o velho Sebastião a coisa funcionava assim."
Desde que o gado saiu, Manoel Lopes virou jardineiro. Garante que a adaptação foi rápida: "É só pegar a mão. Planta não foge, não põe a gente nervoso". A iniciativa de sua conversão partiu da arquiteta Lélia Warnick Salgado, "a mulher do Tião", como se diz em Aimorés. Eles estão juntos há quase 40 anos.
Ela é mãe de seus dois filhos, programadora gráfica da maioria de seus doze livros, organizadora de suas grandes mostras internacionais e administradora da Imagens da Amazônia, a agência exclusiva de suas fotografias.
Foi Lélia, segundo o marido, que mudou o destino da fazenda: "Quando revimos as terras que tínhamos acabado de comprar, quase choramos com o estado de degradação em que estava. E ela teve a mesma hora a idéia de plantar árvores."

Futuro
Daí para a radicalização foi um pulo, que os dois deram juntos. Com a palavra Sebastião Salgado: "Eu tenho apartamento e um escritório em Paris, uma casa em Vitória e mais nada. Como reserva e ONG, isto aqui a rigor deixou de ser minha propriedade. A época, todo mundo achou que eu estava doido. Ela não. Meu pai reclamava que eu estava torrando o dinheiro da aposentadoria. O que iria fazer quando ficasse velho?" Agora ele tem a resposta.
Aos 58 anos, tem planos para os próximos 30, quando seus viveiros terão gerado 60 milhões de mudas, o suficiente para encher de mata fechada pelo menos 210 quilômetros quadrados. Ou um quinto de toda Aimorés. E sabe que, como suas árvores, seu projeto está pegando.
O pai, aos 94 anos, aparece agora de vez em quando na antiga sede, para saber como a fazenda vai andando. Os fazendeiros vizinhos, que no começo riram dessa história toda, já fazem fila para os cursos que ensinam, por exemplo, pequenos produtores de leite quase quebrados a dar a volta por cima fazendo queijo de Minas e iogurte artesanais para vender em delicatessen.
A prefeitura de Aimorés entrou no clima. Com o sistema de tratamento inaugurado dois anos atrás, devolve ao rio Doce o esgoto pluvial da cidade com 95% de pureza. Ou seja, mais limpa do que antes de usar. E seu lixo está sendo reciclado.
"Antes mesmo que o Tião começasse com essas idéias, nos já estávamos pensando que era preciso fazer alguma coisa", diz o prefeito Jurandir da Rocha, um ex-colega do ginásio Pan-Americano.
"Muita gente estava indo embora. A cidade já teve 50 mil habitantes. Agora tem 24 mil. Se não tomássemos uma providência logo, depois não iria dar tempo."
"Acho que sou um dos fotógrafos mais publicados em toda a história da fotografia", diz Sebastião Salgado. Modéstia. Para ficar num exemplo de sua estatura profissional, no site Legends On Line, que a Kodak e a revista PDN mantêm na internet, toda a fotografia contemporânea coube em 26 nomes e o seu está ao lado de fenômenos como Steve McCurry, aquele do retrato esgazeado da menina afegã. "Mas quero ser lembrado pelo que estou fazendo aqui".


O jornalista Marcos Sá Corrêa é colunista do site No Mínimo. Foi editor-chefe do "Jornal do Brasil", diretor de redação de "O Dia", além de colunista das revistas "Veja" e "Época".



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