São Paulo, domingo, 30 de outubro de 2005

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MEMÓRIA

Ministério da Justiça redescobre filmes e pareceres de autoridades da época em que a cultura estava submetida à tutela estatal

Governo recupera documentos da censura

ANDRÉA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Numa operação de garimpagem, o Ministério da Justiça recuperou, em Brasília, fragmentos da história de 50 filmes censurados pelo regime militar. Entre os resgatados estão os documentários "Muda Brasil" (1986), de Oswaldo Caldeira, e "Jango" (1984), de Silvio Tendler, e os longas "Kuarup" (1988), de Ruy Guerra, e "Matou a Família e Foi ao Cinema" (1969), de Júlio Bressane.
A memória das fitas proibidas -que inclui pareceres de censores com as razões apresentadas para a proibição- surgiu de documentos esquecidos nos armários do ministério e de arquivos pessoais de antigos funcionários do órgão.
Em parceria com a UnB (Universidade de Brasília), o ministério pretende, com base na análise dos argumentos utilizados pelos censores para proibir ou cortar os filmes, mostrar exemplos concretos de que a classificação indicativa da programação feita hoje não é censura.
"Não adianta eu dizer que o nosso trabalho, de classificação, é democrático, que tem perfil pedagógico e informativo. Preciso de elementos para que as pessoas possam comparar e comprovar isso", diz José Eduardo Romão, diretor do Departamento de Justiça e Classificação do ministério.
"A censura escolhia o que as pessoas iriam assistir. Nós informamos o que elas poderão ver, se quiserem", diz Romão. Ele não descarta que haja subjetividade na classificação do conteúdo exibido nos cinemas e nas TVs hoje. Afirma, no entanto, que esse caráter subjetivo está sob controle por conta de parâmetros técnicos que vêm sendo construídos, pelo ministério, em audiências públicas com a população, educadores e especialistas de diferentes áreas.
Exemplo do que mudou desde a ditadura está na reclassificação do longa "O País dos Tenentes" (1987), que havia sido proibido. Analisado à luz dos novos critérios -basicamente cenas de violência, sexo e drogas-, o filme agora é "livre".
Em 1988, a nova Constituição, ao banir a censura, definiu que o conteúdo exibido ao público passaria por uma classificação. Na ocasião, a Divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal, responsável pela análise do conteúdo da programação exibida à população, enviou para o Arquivo Nacional toda a documentação de que dispunha. Mas, sabe-se agora, ficaram para trás, perdidos, fragmentos dessa história.
Alguns deles também estão espalhados nas sete salas de projeção utilizadas pelo serviço de censura no primeiro subsolo do edifício sede da Polícia Federal, em Brasília. Resumem-se a duas máquinas de projeção (para fitas de 16 e 35 milímetros), uma dezena de latas de filmes inteiros em película e pedaços de tantos outros sem identificação.
Entre os pedaços de filmes encontrados pela Folha no local estão cenas de "Bum Bum de Ouro", "A Fábrica de Camizinhas" (sic), "Yayá Garcia", além de episódios dos desenhos animados Popeye e Scooby-Doo.
Em uma das seqüências, sem indicação de título, o diálogo de um casal de jovens esfria uma cena que deveria ser picante na época. Pergunta: "É errado, não é, ter desejo que a gente sabe que deve recalcar?" Resposta: "É. A gente deveria reprimi-los."

Faroeste caboclo
Nos arquivos pessoais da delegada federal Viviane da Rosa, que trabalhou na censura da PF em seus últimos três anos de existência, a Folha encontrou um conjunto de pareceres sobre músicas, filmes, peças e programas de TV.
Entre as músicas, a indicação para veiculação "restrita" de "Faroeste Caboclo", de Renato Russo, "pelas referências a drogas abordadas na composição e pelos termos e expressões vulgares".
O relatório de missão 373/DF, de 23 de novembro de 1987, cujo alvo era "a programação noturna da TV Globo", afirma que "o filme "Gigolô Americano", que apresentava corte [determinado pela censura], foi exibido de acordo com o certificado anexo, isto é, o corte foi obedecido".
Presente ao ensaio geral da peça "O Santo Inquérito", de Dias Gomes, em 6 de novembro de 1987, a censura sugeriu o rebaixamento da faixa etária permitida de 14 para 10 anos. Motivo: "houve modificações supressivas que reduziram consideravelmente o clima de tensão".


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