São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2007

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JANIO DE FREITAS

As emoções dispensáveis


Mesmo que prescritos, os crimes posteriores ao período anistiado envolvem também a responsabilidade do Estado

OS TRÊS acontecimentos que trazem, à última hora, emoções fortes a este ano quase morno são feitos da mesma substância composta: transgressão, violência e morte - em nome da política.
Dos três acontecimentos, um nos repõe diante de uma realidade nossa, de brasileiros, e nos expõe à humilhação internacional. Mas sem outra conseqüência senão a de exibir, ainda uma vez, a indignidade nacional que mantém o Brasil na condição imoral e covarde, como disse um especialista nos Estados Unidos, de último país a não investigar os crimes da repressão em sua ditadura. Nem mesmo os posteriores ao período abrangido pela anistia, caso, entre outros, dos crimes que levam agora a Justiça italiana a decretar a prisão de 11 generais, coronéis e policiais brasileiros.
Mesmo que prescritos, porque ocorridos há mais de 20 anos, os crimes posteriores ao período anistiado envolvem também, tal como os beneficiados pela anistia, a responsabilidade do Estado brasileiro, pela qual a União continua sujeita a responder. Seria o bastante para providências decentes das autoridades governamentais e judiciais brasileiras. Mas, assim como os crimes de assassinato, desaparecimento e tortura anistiados, os ocorridos depois de 1979 também levariam, se investigados, à identificação oficial dos seus autores. E então se criaria uma situação típica da imoralidade brasileira: sabe-se o nome desses criminosos, quase todos, mas designá-los oficialmente implicaria quebrar as regras de distribuição da impunidade aqui consagradas, com suas variantes segundo classe social, função, se civil ou militar, e outras.
A lei da anistia, de agosto de 79, tem 28 anos. Há 28 anos frustra-se a lógica de que a anistia de autores não impede nem dispensa o esclarecimento das circunstâncias e autoria dos atos anistiados, e, se necessário, do destino dado à vítima. No Brasil, os últimos governos passaram a reconhecer as vítimas e, portanto, a ocorrência dos crimes, ao indenizá-las ou a parentes seus. Sem, no entanto, reconhecer a obviedade das respectivas autorias. É o extremo da hipocrisia. E a comprovação da falta de autoridade moral dos que têm recebido a autoridade legal para extinguir o impasse.
O acontecimento entre Colômbia e Venezuela, incompleto no momento em que escrevo, não confunde o seu valor humanitário com um prenúncio de solução para o conflito entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-FARC e o governo colombiano. A Álvaro Uribe, presidente da Colômbia, não convêm acordos conseqüentes com as FARC: é na exploração propagandística de sua linha dura que Uribe, desejoso confesso do terceiro mandato sucessivo, tem feito o seu capital político.
Não foi à toa que, à falta de melhor, Uribe usou de um pretexto bobo para retirar de Hugo Chávez a procuração, forçada pelas contingências, com que negociava a soltura dos 45 reféns das FARC em troca de guerrilheiros presos. Nem foi à toa que Chávez, agora, adotou precauções minuciosas, até em relação aos seus helicópteros e à lealdade das tripulações, quanto a possíveis ardis da linha dura colombiana contra uma operação que a Uribe só prometeu derrotas internas e externas - a liberação pacífica de três reféns por seus inimigos das FARC e seu adversário venezuelano.
A morte de Benazir Bhutto, encerramento coerente com uma vida na maior parte dramática, e tantas vezes no umbral da tragédia, não foi nada de extraordinário na ditadura sanguinária que a política externa dos Estados Unidos produziu e mantém no Paquistão. Alvo de atentado ao voltar a seu país, em outubro, e provável vencedora das eleições parlamentares de janeiro contra o ditador general Pervez Musharraf (sua eleição de "presidente" foi tão legítima quanto as de Pinochet, Médici e congêneres), é tarde para sabermos que concepções objetivas ou razões subjetivas levaram Benazir a se expor tanto, contrariando toda a lógica, tão explícita, da luta em que entrara. Mas seguiu a lógica universal de que a violência tem uma raiz na política.

07-08
Agradeço muito aos que sustentaram esta coluna, em mais um ano, com sua leitura, com a crítica sempre possível ou com informações. A todos, desejo um novo ano com toda a sorte em tudo.


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