São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 1999

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MÍDIA
Escritor e dramaturgo diz que tentará desvendar o "Brasil real" em contraposição ao país "oficial grotesco e caricato"
Suassuna estréia coluna na terça-feira

Eder Chiodetto/Folha Imagem
O escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, autor do "Auto da Compadecida", em sua casa em Recife


da Reportagem Local

O escritor Ariano Suassuna estréia na próxima terça-feira como colunista da Folha, na página 1-2, em substituição ao filósofo Roberto Mangabeira Unger, com o propósito de tentar desvendar "o Brasil real". Dito assim, pode parecer mais uma platitude, dessas que os intelectuais oferecem ao mercado.
Não é o caso de Suassuna. Dramaturgo, romancista e poeta, autor de clássicos da dramaturgia moderna como "Auto da Compadecida" e "O Santo e a Porca", Suassuna, 71, é um dos mais singulares autores brasileiros.
O "Brasil real" que ele pretende retratar na coluna parte de uma idéia de Machado de Assis (1839-1908), exposta também em jornal, em 1861: "O Brasil real é bom, revela os melhores instintos. Mas o Brasil oficial é caricato e grotesco".
"Quero mostrar o Brasil real, não o Brasil do Real. São coisas muito diferentes. Uso a distinção de Machado, não a de Fernando Henrique", diz Suassuna.
O "Brasil real", segundo ele, estava em Canudos, o movimento messiânico que ocorreu na Bahia entre 1896 e 1897 e foi massacrado pelas tropas da nascente República, mas não é preciso ir ao sertão para encontrá-lo. Ele está por toda a parte, em luta contra a pasteurização e a vulgarização, alguns dos males do "Brasil do Real". Não por acaso, o escritor Euclides da Cunha (1866-1909) é outro de seus guias na busca do Brasil real.
Mangabeira Unger, professor titular do curso de direito na Universidade Harvard e responsável pela coluna desde fevereiro do ano passado, optou por interromper a colaboração em dezembro, ao retornar aos Estados Unidos.
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Ibéricos e romanceiros Suassuna adotou uma visão singular do Brasil já na sua primeira peça, "Uma Mulher Vestida de Sol" (1947), escrita aos 20 anos, quando cursava direito -depois estudaria filosofia.
O título foi tirado do Apocalipse de São João, mas o enredo e os personagens saíram do romanceiro popular nordestino. No caso de sua obra mais famosa, "Auto da Compadecida" (1955), adaptada para microssérie pela Globo, os dois atos foram baseados em folhetos de cordel: o primeiro saiu de "O Enterro do Cachorro" e o segundo de "O Cavalo que Defecava Dinheiro".
"O Santo e a Porca", outra de suas peças, é "uma imitação brasileira de Plauto", o dramaturgo romano cujas peças foram encenadas no segundo século antes de Cristo. "Eu gosto muito de imitação. Acho que é um processo criador", defende.
Suassuna combina essa suposta imitação a sua formação literária, também derivada de sua visão de Brasil. Ele parte da península ibérica "porque o Brasil vem de lá". Cervantes (1547-1616), Calderón de la Barca (1600-1681), Santa Teresa d'Ávila (1515-1582) e Quevedo (1580-1645) integram o seu Olimpo particular, com Cervantes no papel de Zeus. Seu romance mais importante, "A Pedra do Reino" (1971), não deixa de ser um diálogo com "Dom Quixote".
Por causa de sua defesa da chamada cultura nacional e popular, Suassuna foi tachado de nacionalista, arcaico e conservador. Nacionalista ele é, mas de uma forma muito peculiar. "Eu não tenho aversão a cultura de nenhum país do mundo. Tenho aversão à cultura de massa, que tenta se impor às outras culturas como modelo, chamando isso de modernidade e o avesso disso de arcaico", define.
Se fosse xenófobo, diz, não cultuaria Tolstói, Gogol, Shakespeare, Molière ou Proust.
Elege a cultura de massa como besta-fera porque não gosta de idéias feitas. "A média pensa muito mal. O gosto médio é pior do que o mau gosto. Sou exigente em arte. Não me interessa a obra média. Não perco tempo", diz.
Seu apego à tradição decorre dessa crítica. O cordel, o maracatu, o frevo, o fandango, os autos de guerreiros, segundo Suassuna, ainda não estão totalmente enquadrados pela vulgarização da cultura de massa.
Tentativas de fundir esse mundo com a cultura de massa não funcionam, segundo ele. Bossa nova? "Tom Jobim fez uma facilitação de classe média do samba. Fez uma amenização, não uma recriação. Ele não tem a força de Pixinguinha, de Cartola", ilustra. Chico Science e sua mistura de maracatu, rock, funk e rap é também uma domesticação do maracatu para Suassuna.
"Quando falo em tradição, as pessoas imaginam que é uma visão imobilizada do passado. Está errado. Temos de pegar o popular como ponto de partida para a criação de uma arte de vanguarda brasileira. É o que tento fazer."
Nascido em 1927 em Nossa Senhora das Neves, atual João Pessoa (PB), Suassuna teve o pai assassinado pelas costas em 1930. O pendor ibérico, o gosto pelos rituais, levou-o a definir-se como "monarquista de esquerda". Quando descobriu que a TFP (Tradição, Família e Propriedade), organização ultracatólica de direita também se declarava monarquista, tornou-se só esquerdista. Hoje, é filiado ao PSB (Partido Socialista Brasileiro). "Nasci numa família que pertencia ao patriarcado rural, mas sei distinguir a grande injustiça em que a história incorreu em relação aos excluídos", diz.
Nos últimos quatro anos, deslocou-se para o front político para defender o "Brasil real". Foi secretário da Cultura do governador Miguel Arraes, em Pernambuco.
De volta ao cargo de escritor, como brinca, impôs-se uma tarefa aparentemente insana. Diz que vai reescrever 20 volumes de sua obra. Vai começar com a primeira peça, "Uma Mulher Vestida de Sol", escrita em 1947, reescrita dez anos depois e refeita em 1994, numa adaptação para a Globo.
"Considerem tudo que escrevi como esboços e tentativas", diz. A quarta versão da peça está prometida para o diretor Antunes Filho.



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