São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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Saquear mercearias é aberração, diz Stedile


Líder do MST nega partidarismo do movimento, afirma que, se fosse presidente, não admitiria protestos de latifundiários para não "manter privilégios" e revela acreditar em ETs


COSETTE ALVES
especial para a Folha

O que é o MST? O que pretende? Quais os seus métodos?
Essas questões e muitas outras reapareceram com o avanço dos saques e invasões no Nordeste e as manifestações em Brasília, que mudaram o ambiente político e colocaram novamente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em evidência.
O economista e dirigente do MST, João Pedro Stedile, 45, respondeu à Folha, na sede do movimento em São Paulo: "É um movimento social que luta pela reforma agrária, não é partidário, que só existe porque há pobreza. É um movimento no qual quem manda são milhares de pessoas".
É um movimento violento que não receia usar a força quando necessário ou que garante a ordem por meio da organização de protestos, saques e invasões?
"A violência no campo é maior onde não existe o movimento disciplinado porque cai na espontaneidade. Nos últimos 15 anos, de 1.657 pessoas ligadas à luta pela terra que foram assassinadas, só 39 eram vinculadas ao MST. A organização massiva inibe a violência", explica ele.
É um movimento que defende o saque ao pequeno empresário? "Não. Ficar entrando em pequena mercearia é uma aberração. Mas a fome é incontrolável."
E a invasão de terras produtivas?
"O MST é contra. O Brasil pode fazer reforma agrária sem mexer com quem está produzindo."
E qual seria a posição do líder Stedile em relação a invasões e protestos se chegasse a presidente da República? "Eu admitiria. Só não admitiria protestos de latifundiários. Porque aí seria manter privilégios."
Gaúcho da comunidade Chimarrão, em Lagoa Vermelha (RS), Stedile revela que acredita em Deus, em reencarnação e na vida em outros planetas.

Folha - Apesar do relatório da Polícia Federal, o MST está sendo responsabilizado pelo governo por saques e invasões.
Stedile
- O governo sabe que a seca, assim como a cerca do latifúndio, são problemas sociais. Sabe que, para resolvê-los, precisaria priorizar um programa de governo voltado para erradicá-los estruturalmente. O governo FHC escolheu o caminho mais fácil: colocar a culpa nos movimentos sociais que organizam os pobres. É uma prova da idiotice das nossas elites, da burrice da atual equipe de governo e da perseguição ao MST.
Folha - O MST é um movimento político?
Stedile
- O presidente Fernando Henrique deu essa declaração típica de época de campanha eleitoral. Ele sabe e já escreveu no seu livro que o MST é fundamentalmente um movimento social. É óbvio que, na luta pela terra e pela reforma agrária, adquire ao mesmo tempo características de movimento popular, sindical e político. Como sociólogo, ele sabe que o nosso caráter é político, mas não somos um movimento partidário. Na nossa base, os sem-terra estão nos mais diferentes partidos.
Folha - Se seu pedido de prisão preventiva tivesse sido acatado, o sr. tentaria fugir?
Stedile
- Eu me submeteria. Apesar de meus amigos que já estiveram presos dizerem que ficar sem liberdade é o pior sacrifício do mundo. Não teria problema nenhum em acatar decisão porque estou absolutamente seguro da minha inocência. Minha prisão serviria ainda mais como uma espécie de pressão social para que o governo tome medidas para resolver o problema da seca e do Nordeste. O juiz que rejeitou o pedido salvou o governo. Se eu tivesse sido preso, as consequências políticas teriam sido bem piores.
Folha - O MST é acusado de promover, explorar a miséria com alguns objetivos políticos...
Stedile
- O MST só existe porque existe uma situação social de pobreza e calamidade. O Lula foi muito feliz, quando disse: "Se não houvesse o MST, em algumas regiões do país nós teríamos uma guerra civil". A pior coisa que tem é o pobre desorganizado. Aí ele aplica as saídas individuais. E as saídas individuais para o pobre são o que ele vê na televisão todos os dias. Banditismo, assaltos, prostituição e narcotráfico. Quando o pobre não encontra uma organização social, no sentido de superar as dificuldades da vida, cai na marginalidade. O MST não tem interesse em utilizar a miséria para aparecer. Vivemos dizendo para os pobres que eles têm que se organizar. Nenhum governo entrega de mão beijada os direitos aos pobres.
Folha - O sr. influiu no sequestro dos caminhões no Nordeste, nos saques e nas invasões de bancos?
Stedile
- De maneira alguma. Mesmo que eu quisesse. Às vezes os companheiros estão em um Estado ocupando um Incra. Estou em São Paulo acompanhando a conjuntura política. Sou sabidão e digo: "Companheiro, na minha avaliação você estar dentro do Incra é uma cagada. Se eu estivesse aí não ocuparia". Eles me respondem: "Já fizemos uma assembléia nos acampamentos. O Incra já prometeu dezenas de vezes. Nossa base decidiu que vai ocupar o Incra". Mesmo que eu quisesse influir não tenho autoridade legal e moral para fazê-lo. Não existe na história da humanidade um movimento que tenha ganho perenidade se não preservar suas bases.
Folha - O sr. acha justo saquear um pequeno empresário que vê seu esforço destruído em minutos? Stedile - Somos contra e já nos manifestamos. Ficar entrando em pequena mercearia, em pequenos supermercados, é uma aberração. Agora, a fome é incontrolável. Essas mercearias e pequenos supermercados atingidos podem ter certeza de que não havia participação do MST. Era espontâneo.
Folha - O sr. não tem medo de que o movimento fique muito violento e fora do controle do MST?
Stedile
- Nenhum medo. A violência no campo é maior onde não existe o movimento disciplinado porque cai na espontaneidade e aí os dois lados são incontroláveis. Por exemplo, nestes 15 anos do MST foram assassinadas 1.657 lideranças, trabalhadores e advogados no campo, além de dois deputados estaduais ligados a luta pela terra. Desses, apenas 39 eram vinculados ao MST. A organização massiva inibe a violência.
Folha - O sr. já teve dúvidas sobre as táticas do MST?
Stedile
- Nossa causa é justa. Sobre isso nunca tivemos dúvidas. Pode falar com o Delfim Netto, Geisel, Celso Furtado, com quem você quiser, todo mundo concorda. As dúvidas afloram é nas táticas porque aí é uma questão da luta política do dia-a-dia. O governo vai mudando suas táticas, os fazendeiros do latifúndio improdutivo vão mudando suas táticas. É um contínuo exercício de o que fazer para errar menos.
Folha - Sinceramente, as invasões e saques não aumentaram por ser um ano eleitoral?
Stedile
- Cara a cara, sem nenhum proselitismo, isso é propaganda contra nós. Os anos eleitorais atrapalham o MST. Não temos com quem negociar, porque o superintendente do Incra lá é nomeado por um deputado federal que está no governo.
Folha - Dá para o sr. descrever o ambiente entre as pessoas na véspera de uma invasão?
Stedile
- As pessoas ficam alegres. É uma festa fazer uma ocupação como ir a um jogo de futebol. O clima de tensão aparece quando se tem notícia que a polícia vai vir. O fato de muita gente estar junta - crianças, velhos, famílias- gera unidade e solidariedade.
Folha - O MST é a favor da invasão de terras produtivas?
Stedile
- Não. O MST é contra. Nós, na Constituinte de 87/88, tomamos a iniciativa de apresentar uma proposta de reforma agrária popular com 1,6 milhão de assinaturas, na qual estabelecíamos inclusive o tamanho de terra mínimo. Abaixo de 500 hectares, no Sul, seria proibido desapropriar. O Brasil pode fazer reforma agrária sem mexer com quem produz.
Folha - Em qual esquerda está o MST? Na tradicional ou na nova?
Stedile
- Não quero fugir de respostas, mas nós não gostamos de rótulos. Somos um movimento social novo porque estamos procurando inovar os métodos. Queremos construir um movimento social que tenha força política e que consiga organizar as pessoas.
Folha - Qual o seu candidato à Presidência da República?
Stedile
- O Lula.
Folha - Se o Lula for eleito presidente, as invasões continuam?
Stedile
- O Lula ganhando, vão continuar as ocupações porque vão continuar havendo latifúndios, que não vão acabar do dia para a noite. Vai continuar a ter gente sem terra, porque é impossível resolver o problema da terra num ano. Então, obviamente as ocupações vão continuar porque são um problema social. É a mesma coisa se você dissesse assim: "Bem, agora vou colocar o Vicentinho como ministro do Trabalho do Lula e as greves vão terminar". Claro que não, enquanto tiver empresário que paga salário baixo e tiver operário insatisfeito, independentemente do governo. Em alguma fábrica vai estourar greve. É a mesma situação com as ocupações.
Folha - Se o sr. fosse presidente, como lidaria com invasões, saques e protestos?
Stedile
Se a situação fosse como hoje, eu admitiria. Só não admitiria protestos de latifundiários. Porque aí seria manter privilégios.
Folha - O que vocês conseguiram de fato com essas pressões?
Stedile
- Já conseguimos muito. Os assentamentos vão mais rápido do que nos governos anteriores, embora não na velocidade necessária. Houve avanços também em termos de recursos para a produção. Na época do Collor e do Itamar, era ridículo o volume de financiamento. Agora aumentou, mas ainda é insuficiente. Houve várias conquistas, mas o problema é tão grande que os recursos são aquém das necessidades.
Folha - O sr. é economista. O que achou do fim da inflação?
Stedile
- Não ter inflação é uma coisa boa. Mas, no Brasil, foi depositado o peso só sobre os pobres e a agricultura. Os mais beneficiados foram os banqueiros e as grandes multinacionais. A concentração de renda e de terra aumentou. Acho que seria possível adotar políticas econômicas que controlassem a inflação, mas descarregassem o peso sobre as elites.
Folha - Quais as idéias de um modelo de governo alternativo?
Stedile
- Primeiro, temos que romper a dependência externa e reconstruir o mercado interno brasileiro. É idiotice imaginar que o nosso desenvolvimento virá do mercado externo. Ele pesa no máximo 10% da nossa economia.
Segunda idéia chave: tem que distribuir renda. A desigualdade social do Brasil é a maior do mundo. É preciso distribuição de renda, que se faz aumentando os salários, impondo impostos sobre grandes fortunas, criando mecanismos de maior justiça social.
Terceira idéia forte: o Brasil precisa se livrar desse domínio do capital financeiro. Esse capital que vai e vem, que tomou conta da nossa economia só para especular.
Outro problema é o Nordeste. O Estado brasileiro sempre administrou os recursos públicos para os coronéis. Se o Estado olhar para os pobres, é simples resolver.
Quinto problema: o latifúndio tem que acabar. Ele é incompatível com o desenvolvimento do país e com a justiça social do campo.
Essas são idéias chaves para o novo projeto.
Folha - O sr. é contra o regime capitalista?
Stedile
- Sou contra a pobreza e sou contra a desigualdade social. Sou a favor de que todos tenham os mesmos direitos, pobres e ricos. Sou a favor de que todos tenham direito a educação. Temos que lutar por um regime que garanta conhecimento, educação para todas as pessoas e aí eu tenho certeza de que essas pessoas saberão construir um sistema econômico mais justo. O nome, se é capitalismo social-democrata, um socialismo humanizado, não importa. O que importa é o que acontece com a vida da pessoas.
Folha - Em Viena, o sr. desaconselhou os europeus a investirem no Brasil. Isso ajuda o país?
Stedile
- Um dos problemas que nós temos hoje no Brasil é o capital financeiro especulativo que vem aqui para pegar os 28% de juros, que é maior taxa de juros do mundo, e vai embora. Entre 93 e 97, o Brasil pagou em juros e amortização da dívida externa US$ 113 bilhões. Nesse mesmo período, o superávit da nossa balança comercial foi de US$ 7 bilhões. O Brasil é exportador de capital. Se um empresário austríaco quiser vir para o Brasil montar uma fábrica, trazer suas máquinas ou emprestar dinheiro para o empresário brasileiro, eu sou a favor.
Folha - Quem manda no MST?
Stedile
- É um dos nossos segredos, mas eu conto para todo mundo. Estudando outros movimentos camponeses aprendemos que um dos motivos de os movimentos camponeses serem derrotados é a centralização em alguma liderança. O MST, desde o início, criou uma forma de direção coletiva, que vem desde a base de um município, acampamento, assentamento, até direções estaduais e nacional. O fato de eu estar na direção nacional não significa que eu tenha autoridade sobre a direção de um acampamento. Eles tem total autonomia. Quem manda são milhares de pessoas envolvidas em mil e uma atividades.
Folha - Quantas pessoas fazem parte do MST?
Stedile
- Outro segredo. Fugimos dessa burocracia de ter uma instituição com processo de afiliação. Isso a torna mais burocrática.
Folha - Se eu quiser me juntar ao MST, como faço? Como conseguir um pedaço de terra?
Stedile
- Tu tens que lutar. Tu tens que entrar numa comissão lá no teu município, que começa a discutir as leis a que tu tens direito e aí começa. Vai numa ocupação ou num acampamento para exigir do governo a desapropriação de uma fazenda. Entra qualquer um que queira lutar e trabalhar.
Folha - Existem muitas brigas e violência nos acampamentos?
Stedile
- Existem regras que eles mesmo fazem porque aí as respeitam. Depois que começam a participar e percebem a oportunidade que têm na terra, fazem a reflexão: "Eu voltei a ser cidadão". Eles têm código de comportamento. Os que desrespeitam, eles decidem em assembléia e expulsam.
Folha - Qual o número de acampamentos, pessoas e famílias?
Stedile
- Temos 300 acampamentos, 55 mil famílias e 250 mil pessoas, aproximadamente.
Folha - Como ingressou no MST?
Stedile
- Quando eu estava no terceiro ano da faculdade de economia, fui trabalhar na Secretaria da Agricultura. Estudava e trabalhava. Aí aconteceu um fato que deu origem a minha entrada no MST. Os índios caigangue, depois de muitos anos de convivência pacífica com posseiros, resolveram, da noite para o dia, expulsar 1.200 famílias que tinham invadido a reserva. Os agricultores perderam tudo, acamparam na beira da estrada e começaram a querer reagir. Ia ser um massacre. Felizmente, veio a polícia e ficou no meio dos dois. O governo entrou e fui para lá. Alguns posseiros foram para outros lugares, muitos gaúchos ficaram e o MST foi surgindo. Eu saí da Secretaria da Agricultura. Depois de 3 ou 4 anos, o MST se nacionalizou, fui eleito diretor e vim para São Paulo. Isso faz 8 anos.
Folha - Uma pergunta a si mesmo.
Stedile
- Porque misturam tanto o futebol com a reforma agrária? E as pessoas, na base, misturam. Nós usamos muito, nos cursos de formação, as historinhas do futebol. De certa forma, a luta pela reforma agrária é um grande campeonato. De vez em vez, jogamos uma partida... com os latifundiários, com o governo. Temos que ganhar o jogo, mas o outro lado tem um time que quer nos derrotar. Isso é uma boa didática para evitar o espontaneísmo e não cair no idealismo: "Só porque eu quero, então vai acontecer". Não. Do outro lado tem um time que não quer que tu faças gol. Existe uma luta com regras.
Folha - O que predomina nas suas decisões? Lógica ou intuição?
Stedile
- As duas coisas, mas a intuição pesa mais. Aprendi, depois de levar tanto, que, no MST, as decisões são coletivas. Mas sempre vou pela intuição. Quando tenho dúvidas espero, não arrisco. Quando vem a sensação de certeza, vou em frente.
Folha - O sr. tem algum medo?
Stedile
- Tenho medo de perder o campeonato, de perder o jogo.
Folha - O sr. dorme bem?
Stedile
- Durmo. E cedo, às dez e meia.
Folha - Já perdeu o sono?
Stedile
- Às vezes, quando há muitos problemas, tensões...
Folha - O sr. acredita em Deus?
Stedile
- Acredito. Sou cristão.
Folha - Acredita em céu, inferno, vida após morte?
Stedile
- Acredito numa reencarnação e quero voltar rapidinho. Sou todo místico. A esquerda vai ficar dando risada de mim.
Folha - O sr. acredita em vida nos outros planetas?
Stedile
- Acredito.Tenho certeza que tem. Tanto pelas argumentações científicas que já ouvi, como por fatos que as pessoas relatam e que seria muita imaginação para inventar. No Rio Grande do Sul, houve um caso que não teve tanta notoriedade, pois as pessoas achavam que era coisa de louco. Um agricultor, em 1958, foi sequestrado por uma nave próximo à região onde nasceu o MST. Ficou 15 dias fora. O sujeito voltou e narrou para as pessoas o que viu na viagem. Pensaram que estivesse louco e queriam interná-lo. Só ganhou credibilidade porque era de origem alemã e parente dos Geisel. Aí não sei qual dos Geisel, o da Aeronáutica pegou os escritos, levou o rapaz para a Nasa e para a agência da Alemanha. Ele relatou tudo que viu e acreditaram nele.
Folha - De onde vem sua crença da vida em outros planetas?
Stedile
- Seria um absurdo só ter vida na Terra. O universo do tamanho que é...
Folha - Como seriam os ETs?
Stedile
- Imagino que sejam mais solidários que os homens e que entre eles não deve haver tanta desigualdade. Devem estar mais desenvolvidos do que a gente. A Terra deve ser o inferno do universo. Os que ainda estão mais atrasados, mandam para cá.
Folha - Alguma experiência pessoal com extraterrestres?
Stedile
- Não. Mas gostaria de mandar um recado aí para os ETs: se você lerem a Folha, saibam que eu vou, desde que me tragam de volta. E me ensinem mais umas técnicas de como acabar com o latifúndio improdutivo.



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