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LANTERNA NA POPA
Perdeu-se o marxismo?
ROBERTO CAMPOS
Foi uma pena que, nestes últimos 80 anos, a complicada dinâmica da História, ao soterrar
os regimes socialistas do bloco
soviético, acabasse soterrando
simultaneamente a florescência
da extraordinária originalidade
do pensamento crítico de Marx.
Falo do pensamento crítico. No
resto, Marx foi um péssimo profeta e um mau político. Predisse
o empobrecimento do proletariado, e ele emburguesou-se.
Predisse a explosão do capitalismo, e foi o socialismo que implodiu. Predisse o fenecimento do
Estado e a floração da liberdade, e no "socialismo real" o contrário aconteceu: o Estado explodiu de elefantíase e as liberdades desapareceram.
Há mais de 40 anos, tenho sido implacavelmente patrulhado
pelo que há de mais covarde e
despreparado de uma suposta
esquerda brasileira que, na verdade, não passa de um bando de
subdesenvolvidos, que receberam suas idéias do lixo da boçalidade intelectual do sistema soviético. E, em torno da carniça
do poder real ou virtual, sempre
rondando, estavam os candidatos a "apparatchiks".
Nas vastas regiões do Terceiro
Mundo, acelerando-se muito
depois da Segunda Guerra, sempre apareceram espíritos combativos, com aspirações e reconhecimento, dignidade e bem-estar, e deles foram surgindo lideranças. Não necessariamente,
mas, com frequência, provindas
das elites, sobretudo das elites
intelectuais, do que no jargão ficou sendo chamado de "intelligentsia". Natural que precisassem de modelos e, ainda mais,
de referências distantes, que validassem as suas esperanças de
mudar o mundo e permitissem
transmutá-las em projetos de
ação concretos.
Esse papel, nas três primeiras
décadas do após-guerra, foi
exercido (embora o próprio
Marx pouco se houvesse interessado pelo assunto do desenvolvimento, que julgava pouco importante diante da briga dos cachorros grandes) pelas formulações marxistas, um tanto estilizadas nas polarizações radicalizantes da Guerra Fria. Muito da
discussão teórica sobre o desenvolvimento, nesse período, consistiu em oferecer respostas a alternativas sugeridas pelo pensamento a jusante de Marx.
Hoje, é difícil achar algum intelectual que não se arrepie com
a idéia de ser confundido com a
velha-guarda do socialismo soviético, e alguns até se tornam
dissidentes retrospectivos. Entretanto é justo reconhecer o que
Marx trouxe de novo com a sua
crítica da sociedade moderna.
Veio num momento de inflexão
dos paradigmas do pensamento,
quando a cosmovisão clássica
da física newtoniana começava
a ver sua base erosada e a grande crise intelectual do final do
século XIX e início do atual já
estava em gestação. As grandes
religiões estavam fazendo água
enquanto explicações unificadas do universo, da sociedade e
do destino humano. O capitalismo industrial avançava num
terreno vazio, sem críticos radicais nem uma teologia própria.
Aliás, a principal vantagem do
capitalismo é não ter dogmas
nem mitos. É uma cultura comportamental, que prefere fabricar produtos a gerar mitos.
Marx caiu na tentação de tentar e de usar a utopia como terreno concreto e de oferecê-la como receita de bolo. Além de escrever a sua bíblia (ou antibíblia), que teria a chave de tudo,
desde a explicação do cosmos,
passando pela História, até a
economia, as normas de convívio e o comportamento social.
Tentação grande que atraiu a
muitos não pela análise crítica
do mundo real, mas pelo raiar
de uma nova fé. Vieram depois
os acomodados, repetidores de
palavras de ordem, que procuraram desviar as formidáveis
perguntas do desenvolvimento
em meras colocações pró-soviéticas na Guerra Fria. O receituário técnico reduziu-se a planejamento central de um esforço
maciço de investimentos em infra-estrutura, indústrias de base
e educação, o que, dadas as insolúveis dificuldades do esquema, agravadas pela lambança
de praxe, deu no que deu: o colapso de 1989.
Nos anos 50 e 60, houve um
enorme florescimento dos estudos sobre os problemas das economias então ditas "subdesenvolvidas", naturalmente, em
parte colorido pelas polaridades
mundiais. Mas, depois, o entusiasmo se abateu, e o interesse
teórico deslocou-se das "grand
theories" (como idéias de estágios, de "decolagem" etc) para o
estudo de mecanismos específicos. Muitos estudiosos principiaram a sentir que, fossem
quais fossem as suas convicções
pessoais ou conveniências empíricas, o pensamento não podia
contentar-se com o prêt-à-porter das categorias porventura
em moda.
Nestes arrabaldes, pouca gente se tem dado conta de que o
novo pensamento de raiz marxista está descobrindo, com evidente surpresa, uma série de temas novos sobre o desenvolvimento e a História. Sugestiva,
por exemplo, é a ótica dos "sistemas mundiais", trabalhada, entre outros, por I. Wallerstein e E.
Wolf, contestada por A. Gunder
Frank, para quem o sistema político mundial pré-data de muito a ascensão do capitalismo na
Europa e sua hegemonia no
mundo. Ou seja, uma completa
desarticulação da visão "mecânica" da "dialética da História",
substituída por uma espécie de
superdarwinismo, a luta de todas as forças e formações entre
si.
Quando o velho Marx, em plena era do vapor e do aço, formulou a noção de que a existência
determina a consciência, chamou a atenção geral para o fato
de que as grandes transformações pelas quais estava passando o mundo tinham uma base
nas condições concretas, nas relações de produção e na tecnologia. Depois disso, tivemos uma
formidável aceleração (eletricidade, motor a explosão, eletrônica, síntese química, biologia,
eletrônica) e, agora, com a globalização digital, estamos entrando em cheio na era da informação. Tudo está mudando
muito mais depressa do que
nossa capacidade de acompanhar. Assim como o capitalismo
do século 14 acabou com o escravo e o servo da gleba e o capitalismo americano atual criou
uma sociedade democrática de
classe média e de consumo de
massa, o novo modo de produção da informação vai criar -o
quê? Não sei. Precisamos de
pensar. Mesmo errando, ou parecendo errar.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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