São Paulo, Domingo, 31 de Outubro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LANTERNA NA POPA
Perdeu-se o marxismo?

ROBERTO CAMPOS

Foi uma pena que, nestes últimos 80 anos, a complicada dinâmica da História, ao soterrar os regimes socialistas do bloco soviético, acabasse soterrando simultaneamente a florescência da extraordinária originalidade do pensamento crítico de Marx. Falo do pensamento crítico. No resto, Marx foi um péssimo profeta e um mau político. Predisse o empobrecimento do proletariado, e ele emburguesou-se. Predisse a explosão do capitalismo, e foi o socialismo que implodiu. Predisse o fenecimento do Estado e a floração da liberdade, e no "socialismo real" o contrário aconteceu: o Estado explodiu de elefantíase e as liberdades desapareceram.
Há mais de 40 anos, tenho sido implacavelmente patrulhado pelo que há de mais covarde e despreparado de uma suposta esquerda brasileira que, na verdade, não passa de um bando de subdesenvolvidos, que receberam suas idéias do lixo da boçalidade intelectual do sistema soviético. E, em torno da carniça do poder real ou virtual, sempre rondando, estavam os candidatos a "apparatchiks".
Nas vastas regiões do Terceiro Mundo, acelerando-se muito depois da Segunda Guerra, sempre apareceram espíritos combativos, com aspirações e reconhecimento, dignidade e bem-estar, e deles foram surgindo lideranças. Não necessariamente, mas, com frequência, provindas das elites, sobretudo das elites intelectuais, do que no jargão ficou sendo chamado de "intelligentsia". Natural que precisassem de modelos e, ainda mais, de referências distantes, que validassem as suas esperanças de mudar o mundo e permitissem transmutá-las em projetos de ação concretos.
Esse papel, nas três primeiras décadas do após-guerra, foi exercido (embora o próprio Marx pouco se houvesse interessado pelo assunto do desenvolvimento, que julgava pouco importante diante da briga dos cachorros grandes) pelas formulações marxistas, um tanto estilizadas nas polarizações radicalizantes da Guerra Fria. Muito da discussão teórica sobre o desenvolvimento, nesse período, consistiu em oferecer respostas a alternativas sugeridas pelo pensamento a jusante de Marx.
Hoje, é difícil achar algum intelectual que não se arrepie com a idéia de ser confundido com a velha-guarda do socialismo soviético, e alguns até se tornam dissidentes retrospectivos. Entretanto é justo reconhecer o que Marx trouxe de novo com a sua crítica da sociedade moderna. Veio num momento de inflexão dos paradigmas do pensamento, quando a cosmovisão clássica da física newtoniana começava a ver sua base erosada e a grande crise intelectual do final do século XIX e início do atual já estava em gestação. As grandes religiões estavam fazendo água enquanto explicações unificadas do universo, da sociedade e do destino humano. O capitalismo industrial avançava num terreno vazio, sem críticos radicais nem uma teologia própria. Aliás, a principal vantagem do capitalismo é não ter dogmas nem mitos. É uma cultura comportamental, que prefere fabricar produtos a gerar mitos.
Marx caiu na tentação de tentar e de usar a utopia como terreno concreto e de oferecê-la como receita de bolo. Além de escrever a sua bíblia (ou antibíblia), que teria a chave de tudo, desde a explicação do cosmos, passando pela História, até a economia, as normas de convívio e o comportamento social. Tentação grande que atraiu a muitos não pela análise crítica do mundo real, mas pelo raiar de uma nova fé. Vieram depois os acomodados, repetidores de palavras de ordem, que procuraram desviar as formidáveis perguntas do desenvolvimento em meras colocações pró-soviéticas na Guerra Fria. O receituário técnico reduziu-se a planejamento central de um esforço maciço de investimentos em infra-estrutura, indústrias de base e educação, o que, dadas as insolúveis dificuldades do esquema, agravadas pela lambança de praxe, deu no que deu: o colapso de 1989.
Nos anos 50 e 60, houve um enorme florescimento dos estudos sobre os problemas das economias então ditas "subdesenvolvidas", naturalmente, em parte colorido pelas polaridades mundiais. Mas, depois, o entusiasmo se abateu, e o interesse teórico deslocou-se das "grand theories" (como idéias de estágios, de "decolagem" etc) para o estudo de mecanismos específicos. Muitos estudiosos principiaram a sentir que, fossem quais fossem as suas convicções pessoais ou conveniências empíricas, o pensamento não podia contentar-se com o prêt-à-porter das categorias porventura em moda.
Nestes arrabaldes, pouca gente se tem dado conta de que o novo pensamento de raiz marxista está descobrindo, com evidente surpresa, uma série de temas novos sobre o desenvolvimento e a História. Sugestiva, por exemplo, é a ótica dos "sistemas mundiais", trabalhada, entre outros, por I. Wallerstein e E. Wolf, contestada por A. Gunder Frank, para quem o sistema político mundial pré-data de muito a ascensão do capitalismo na Europa e sua hegemonia no mundo. Ou seja, uma completa desarticulação da visão "mecânica" da "dialética da História", substituída por uma espécie de superdarwinismo, a luta de todas as forças e formações entre si.
Quando o velho Marx, em plena era do vapor e do aço, formulou a noção de que a existência determina a consciência, chamou a atenção geral para o fato de que as grandes transformações pelas quais estava passando o mundo tinham uma base nas condições concretas, nas relações de produção e na tecnologia. Depois disso, tivemos uma formidável aceleração (eletricidade, motor a explosão, eletrônica, síntese química, biologia, eletrônica) e, agora, com a globalização digital, estamos entrando em cheio na era da informação. Tudo está mudando muito mais depressa do que nossa capacidade de acompanhar. Assim como o capitalismo do século 14 acabou com o escravo e o servo da gleba e o capitalismo americano atual criou uma sociedade democrática de classe média e de consumo de massa, o novo modo de produção da informação vai criar -o quê? Não sei. Precisamos de pensar. Mesmo errando, ou parecendo errar.


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).


Texto Anterior: Painel
Próximo Texto: Esquerda: Petistas entregam cargos no Rio
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.