São Paulo, Domingo, 31 de Outubro de 1999
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ENTREVISTA
Presidente diz que, "em dado momento", será bom adotar troca do câmbio irrestrita, mas rejeita dolarizar
FHC defende livre conversão da moeda

Alan Marques/Folha Imagem
O presidente FHC, durante entrevista à Folha, no Palácio da Alvorada



Temos uma dificuldade de passar para os temas da 3ª Via, até porque ainda temos uma agenda com atraso secular



O Estado vai continuar tendo um papel importante para criar condições para existir um atendimento social básico



Ninguém está mais capacitado (do que o Brasil) para participar do sistema produtivo no século que vem



Não quero fazer aposta sobre a história. Mas, além da estabilidade, o que estamos fazendo de mais importante é na área social


CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
da Sucursal de Brasília

O presidente Fernando Henrique Cardoso acha que "é bom, num dado momento", adotar a livre conversibilidade como política de câmbio, mas que o Brasil "ainda não chegou a este dado momento". Quanto à dolarização, FHC afirma que ela é "impensável".
Conversibilidade é a política que permite a troca imediata da moeda nacional por qualquer outra moeda. Alguns tipos de conversibilidade, como a da Argentina, também adotam a paridade entre a moeda nacional e o dólar norte-americano. Dolarização é adotar o dólar norte-americano no lugar da moeda nacional.
FHC falou à Folha por duas horas na manhã de sexta-feira, no mezanino do Palácio da Alvorada, casa oficial da Presidência.
Para o país crescer sem inflação no ano que vem, Fernando Henrique Cardoso disse que terá de ser "duro", ainda que à custa de impopularidade.
"O crescimento depende de eu ter coragem e apertar como estou apertando o setor público", disse.
Embora tenha se recusado a fazer previsões sobre que aspectos de seu governo serão associados à sua biografia histórica ("seria pretensioso"), deu a entender que a política social que adota é "tão significativa" quanto a estabilidade da economia. Leia os principais trechos da entrevista.

Folha - O senhor está indo no próximo mês a esse encontro sobre a Terceira Via em Florença. Qual é a proposta da Terceira Via? Ela quer ser a social-democracia do século 21?
Fernando Henrique Cardoso -
Isso tudo é muito embrionário ainda. Realmente, quem inspirou até a expressão foi o (sociólogo inglês Anthony) Giddens no livro "Third Way" . Qual é o enfoque fundamental dele? É a globalização. Mas de uma maneira diferente da que se pensa aqui. Ele diz que a globalização é a modificação do conceito de tempo e espaço. Portanto, é uma coisa muito mais abrangente que a transformação das relações de produção. Mudou o conceito de tempo e espaço. E isso afeta tudo. Não é que isso mudou o mercado. Mudou a vida. O debate sobre essa matéria aqui é muito pobre. Ele se resume ao mercado e ao mercado financeiro. Alguns reconhecem até que houve uma mudança nas formas de produção. Mas só isso.

Folha - Talvez porque aqui ainda não tenha afetado mesmo a vida das pessoas?
FHC -
Mas tem afetado. Porque está tudo "on line", porque o que acontece no Timor ou na Ásia tem tido consequências diretas aqui, como em Londres. É verdade que essa nova cultura, civilização quase, vem junto com modificações que lá já há muito tempo vêm ocorrendo, como tipo de família, tipo de convivência. Então, é claro que lá eles têm mais possibilidades de discutir o assunto dessa forma ampla. Por exemplo, na Inglaterra, o Labour Party (Partido Trabalhista) tem se organizado para discutir qual é a proposta política que se impõe hoje.

Folha - Quer dizer que a social-democracia não dá mais conta dos problemas atuais?
FHC - Não é que ela não dá mais conta. O que foi a social-democracia basicamente? Ela foi o Estado e o partido. Não da forma comunista, porque mantinha a liberdade e não desapropriava tudo. Mas desapropriava grande parte da produção (aço, carvão, bancos etc. etc). E detinha no Estado todos os mecanismos de previdência social.

Folha - E no que é que a Terceira Via difere disso?
FHC -
Aliás, eu não gosto do nome. E em Florença eles não vão falar em Terceira Via. Vai se chamar "Progressive Governance".

Folha - O sr. prefere isso?
FHC -
Prefiro.

Folha - Mas traduzir isso para o português vai ser difícil.
FHC -
Quase impossível. Mas o que eles procuram sublinhar é que a sociedade civil ganhou outro peso hoje. Ela é mais dinâmica, ela se mobiliza. E como você tem essa nova situação de tempo e espaço, se você vai tomar uma decisão sobre os índios guarani ou caiuá que aqui no Brasil estão se matando, você recebe e-mails do mundo todo no mesmo momento. Mesmo que as pessoas lá fora não saibam muito bem o que está acontecendo aqui, elas estão ligadas nos problemas daqui. E vice-versa. Então, você tem mecanismos muito mais dinâmicos que a estrutura estatal. A social-democracia não foi feita com esse espírito. Foi feita com o espírito do partido e do Estado. O que se discute com a Terceira Via são outras formas de fazer política, que não aquelas tradicionais da social-democracia.

Folha - O sr. se refere à social-democracia sempre no passado. Ela já está acabada?
FHC -
A social-democracia sofreu um forte abalo com o fim do comunismo. Porque ela era uma alternativa ao comunismo. Quando caiu o Muro de Berlim, caiu mais do que o Muro de Berlim. Isso não quer dizer que você tenha o predomínio da visão neoliberal. Não. A Terceira Via é uma tentativa de dizer: não é nem uma coisa nem outra. Nem o mercado nem o Estado controlando tudo.

Folha - O presidente da Internacional Socialista , Pierre Mauroy, disse que não vai aceitar o PSDB na organização porque o senhor está governando o país à direita.
FHC -
É. Ele diz isso. Ele está se esquecendo de que, mal comparando, as forças que ele citou -PT e PDT- funcionam para o PSDB como os partidos comunistas funcionavam para a social-democracia na Europa: achavam que era reformista, não queriam aliança. Não sou eu, não é o PSDB, quem não quer aliança com a esquerda daqui. A esquerda daqui, a assim chamada esquerda, é que não quer. A nossa esquerda continua no passado. Ela nem sequer tem uma visão organizada dessa nova temática. Nós aqui temos uma dificuldade de passar para os temas da Terceira Via, até porque ainda temos uma agenda com atraso secular.

Folha - E esse atraso secular, presidente? Como é que se sai dele? Quanto tempo será necessário para superar os problemas tão básicos do país?
FHC -
Nós estamos saindo!

Folha - Mas muito devagar.
FHC -
Não é tão devagar assim, não. Você viu os dados? Um dos problemas importantes dos intelectuais no Brasil é que não se olha a realidade. Não se pode ficar numa discussão de vocábulos, como se faz. Mas é preciso ver o que está acontecendo. Pegue a educação: as mudanças são fortes. Nós já temos 97,5% das crianças na escola. Pegue esses dados há 20 anos, 40 anos. A mudança é muito rápida. Veja de uma perspectiva histórica. A mudança é grande. Ela não é percebida no dia-a-dia por causa da luta política e porque são processos. Os dados estão aí. Não vê quem não quer. E muitos não querem ver. Mesmo assim, você não pode comparar o Brasil com as sociedades européias. Então, você vai sempre ter esse paradoxo: aqui, a linguagem antiga tem um certo peso porque ela está respaldada pelo atraso. E ela sempre vai usar o argumento demagógico de responsabilizar pelo atraso quem está no governo hoje.

Folha - Na véspera dos 500 anos, não seria o caso de redefinir os objetivos nacionais?
FHC -
Os objetivos nacionais estão postos. Qual é o projeto nacional do Brasil hoje? Não é só desenvolvimento. É uma sociedade mais democrática e mais igualitária. Por isso é que é preciso diferenciar novamente o Brasil e a Europa. Aqui, você precisa construir, via Estado, mas de um modo diferente, o acesso a serviços sociais básicos. De que modo diferente? Sem as práticas clientelísticas, em parceria com as organizações não-governamentais. É isso que estamos fazendo. Estamos desmontando a estrutura antiga do Estado. Mas eu estou construindo um novo Estado, com as agências reguladoras, por exemplo. O Estado vai continuar tendo um papel importante para criar condições para existir um atendimento social básico. Você não pode pensar num Estado mínimo no Brasil. Precisa pensar num Estado eficiente e forte. Mas não forte politicamente como no passado; forte por ser poroso, capaz de atender à sociedade. Foi o que fizemos com a educação e a saúde: descentralizamos, municipalizamos.

Folha - A autonomia sempre foi um objetivo nacional. No mundo da globalização, é possível manter autonomia e se desenvolver ao mesmo tempo? Na Argentina, é impressionante como há um consenso sobre a possibilidade de dolarizar e abrir mão da moeda nacional, que sempre foi um símbolo de soberania. Não há uma contradição entre esses dois objetivos, desenvolvimento e autonomia?
FHC -
Não. Só se você entender autonomia como ela era vista no passado, quando você tinha condições materiais para autonomia: barreiras alfandegárias, ausência deste processo de comunicações instantâneas. Tudo isso sumiu. Não é uma questão ideológica. É uma questão de fato. Mas isso não quer dizer que não exista mais interesse nacional, que varia de país para país. No Brasil, por exemplo, é impensável você dolarizar a economia. A riqueza fiduciária do Brasil nunca foi em dólar; sempre foi em moeda nacional. Na Argentina, não. Mas isso quer dizer que a Argentina não tem identidade própria? Não. Quer dizer que com o euro desaparece o interesse próprio da França? Não. Esse processo todo de, até certo ponto, homogeneização provocado pela globalização não vai extinguir novas formas de identidade. Até ao contrário: a reivindicação de identidade hoje é mais forte do que foi no passado.

Folha - Por que o Brasil não tem um papel mais ativo nos debates sobre a nova arquitetura financeira do mundo, já que o país se considerou tão prejudicado pela volatilidade dos mercados financeiros em 1998?
FHC -
Vamos lá. No primeiro discurso que eu fiz fora do Brasil, no Chile, em 1995, eu falei sobre isso. Mas as coisas têm que ser pensadas no mundo de hoje, com os condicionantes do mundo de hoje. Desses condicionantes, o que mais perturba é o financeiro. A globalização no seu aspecto produtivo não perturba, ela dá emprego, dá desenvolvimento tecnológico. O Brasil se preparou para entrar no próximo século como partícipe ativo da nova ordem econômica. Com o desenvolvimento tecnológico que existe aqui, com o espaço que nós articulamos com o Mercosul e com a América do Sul, com a nossa capacidade instalada, com o mercado do tamanho que temos, com as estruturas públicas que existem para dar apoio a tudo isso e com as instituições que temos, não há nada que se compare ao Brasil em termos de países chamados emergentes. Ninguém está mais capacitado para participar do sistema produtivo no século que vem. A China está se preparando, a Índia também. Além desses dois, que têm condicionantes específicos, é só o Brasil.

Folha - Mas, então, esse é um motivo a mais para o Brasil ser mais ativo, sair à frente.
FHC -
O mundo de hoje não é o mundo do slogan. O pessoal quer mais slogan. Por exemplo, que eu faça uma reunião dos países do Terceiro Mundo, não sei para quê. Isso só levaria ao isolamento do Brasil nesse novo processo. Essa é a velha política. A maneira de se inserir na nova arquitetura é ter condições efetivas de poder para influenciar as decisões. E já estamos influenciando. Muitas de nossas propostas já vêm sendo absorvidas. Agora mesmo, foi criado o G-20 e o Brasil está lá. O Brasil quer entrar no Conselho de Segurança da ONU. Mas eu sempre disse: para quê? Qual vai ser o papel do conselho? O Brasil quer ter voz onde ela seja importante, onde ela pese.

Folha - Não seria mais importante o Brasil tentar ingressar no G-7 ?
FHC -
Não. Porque nós não somos ricos. Quando eu faço essa crítica ao terceiro-mundismo como uma coisa anacrônica, não quero dizer que nós somos ricos. Seria um erro o Brasil imaginar que é um país rico. Eu disse há algum tempo que o Brasil não é um país subdesenvolvido, mas sim injusto. Mas essa injustiça traz uma carga de pobreza muito grande, que nos limita demais. O G-20 é importante porque vai permitir a discussão dos efeitos da globalização também entre aqueles países, como o Brasil, que não recebem apenas os seus benefícios, mas que também sofrem com ela. Nós perdemos dois anos com a crise da Rússia e da Ásia. O Brasil tem sempre reclamado da falta de controle do fluxo de capitais. Nunca aceitou a abertura total. Nunca aceitou a livre conversibilidade. É claro que num dado momento é bom que haja a livre conversibilidade. Mas nós não chegamos nesse dado momento.

Folha - Quais são as idéias que o Brasil tem defendido no debate sobre a nova arquitetura financeira?
FHC -
Eu já defendi várias vezes que haja um banco central dos bancos centrais e recorri a Keynes (1883-1946, economista britânico) para me sustentar. O Brasil e outros países são responsáveis pelo aumento dos recursos para o Fundo Monetário Internacional atender a crises. E o FMI atende agora de forma menos condicionada. Veja que nossa experiência de estabilização deste ano é inovadora: baixa de taxas de juros, retomada de crescimento e austeridade monetária. Nós não estamos fazendo um programa que o Fundo impôs. Só tem um condicionante real: gerar superávits primários. Mas este é um imperativo nacional, não do Fundo. Isso não era assim no passado. Eu também sou favorável à "taxa Tobin" , uma espécie de CPMF do mundo. Defendi até que parte do arrecadado com essa taxa fosse para o FMI para servir como colchão de liquidez.

Folha - Quais as chances de isso ser aprovado?
FHC -
São muito pequenas. Porque, na verdade, o G-7 não tem interesse nisso. Isso é uma coisa vital para o Brasil, para a Coréia, a Rússia. O problema central da questão da arquitetura financeira não é a arquitetura financeira. É a arquitetura política.

Folha - Como o Mercosul vai sobreviver com Brasil e Argentina com políticas de câmbio tão díspares como agora?
FHC -
Os países da Europa passaram 50 anos com políticas cambiais diferentes. O caminho vai ser primeiro harmonizar políticas macroeconômicas e deixar a questão do câmbio para depois. É preciso dar tempo ao tempo. Um país não pode impor ao outro uma política de câmbio.

Folha - Este ano não houve muitos problemas porque os dois países entraram em recessão. Mas com a retomada do crescimento, como vai ser?
FHC -
Eu acho que vai haver uma especialização da produção, maior fusão de capitais entre empresas brasileiras e argentinas.

Folha - O nome Getúlio Vargas traz por livre associação Volta Redonda e direitos trabalhistas; o de JK, Brasília e indústria automobilística. Qual será a livre associação com FHC?
FHC -
Não quero fazer aposta sobre a história. Seria pretensioso. Sei lá. Vou fazer o que eu puder. Mas, além da estabilidade, o que estamos fazendo de mais importante é na área social, ao contrário do que se imagina. O Brasil tem um dos maiores programas de renda mínima do mundo e não sabe: tiramos 130 mil crianças do trabalho penoso, de carvoaria, do sisal, da cana, e colocamos na escola; a Lei Orgânica de Assistência Social, que nós ativamos, beneficia 1 milhão de idosos e deficientes físicos; temos a aposentadoria rural, para 5 a 6 milhões de pessoas. Foram R$ 17 bilhões em renda mínima este ano, sem contar as cestas básicas. Agora, quando se começa a fazer trabalho no social, cria-se mais demanda e a avaliação é sempre feita pelo que falta ser feito, não pelo que se fez.


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