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ENTREVISTA
Presidente diz que, "em dado momento", será bom adotar troca do câmbio irrestrita, mas rejeita dolarizar
FHC defende livre conversão da moeda
Alan Marques/Folha Imagem
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O presidente FHC, durante entrevista à Folha, no Palácio da Alvorada |
Temos uma dificuldade de passar para os temas da 3ª Via, até porque ainda temos uma agenda com atraso secular
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O Estado vai continuar tendo um papel importante para criar condições para existir um atendimento social básico
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Ninguém está mais capacitado (do que o Brasil) para participar do sistema
produtivo no século que vem
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Não quero fazer aposta sobre a história. Mas, além da estabilidade, o que estamos fazendo de mais importante é na área social
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CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
da Sucursal de Brasília
O presidente Fernando Henrique Cardoso acha que "é bom,
num dado momento", adotar a livre conversibilidade como política de câmbio, mas que o Brasil
"ainda não chegou a este dado
momento". Quanto à dolarização, FHC afirma que ela é "impensável".
Conversibilidade é a política
que permite a troca imediata da
moeda nacional por qualquer outra moeda. Alguns tipos de conversibilidade, como a da Argentina, também adotam a paridade
entre a moeda nacional e o dólar
norte-americano. Dolarização é
adotar o dólar norte-americano
no lugar da moeda nacional.
FHC falou à Folha por duas horas na manhã de sexta-feira, no
mezanino do Palácio da Alvorada, casa oficial da Presidência.
Para o país crescer sem inflação
no ano que vem, Fernando Henrique Cardoso disse que terá de ser
"duro", ainda que à custa de impopularidade.
"O crescimento depende de eu
ter coragem e apertar como estou
apertando o setor público", disse.
Embora tenha se recusado a fazer previsões sobre que aspectos
de seu governo serão associados à
sua biografia histórica ("seria pretensioso"), deu a entender que a
política social que adota é "tão
significativa" quanto a estabilidade da economia. Leia os principais trechos da entrevista.
Folha - O senhor está indo no
próximo mês a esse encontro
sobre a Terceira Via em Florença. Qual é a proposta da Terceira Via? Ela quer ser a social-democracia do século 21?
Fernando Henrique Cardoso
-Isso tudo é muito embrionário
ainda. Realmente, quem inspirou
até a expressão foi o (sociólogo
inglês Anthony) Giddens no livro
"Third Way" . Qual é o enfoque
fundamental dele? É a globalização. Mas de uma maneira diferente da que se pensa aqui. Ele
diz que a globalização é a modificação do conceito de tempo e espaço. Portanto, é uma coisa muito mais abrangente que a transformação das relações de produção. Mudou o conceito de tempo
e espaço. E isso afeta tudo. Não é
que isso mudou o mercado. Mudou a vida. O debate sobre essa
matéria aqui é muito pobre. Ele
se resume ao mercado e ao mercado financeiro. Alguns reconhecem até que houve uma mudança nas formas de produção. Mas
só isso.
Folha - Talvez porque aqui
ainda não tenha afetado mesmo
a vida das pessoas?
FHC - Mas tem afetado. Porque
está tudo "on line", porque o que
acontece no Timor ou na Ásia
tem tido consequências diretas
aqui, como em Londres. É verdade que essa nova cultura, civilização quase, vem junto com modificações que lá já há muito tempo
vêm ocorrendo, como tipo de família, tipo de convivência. Então,
é claro que lá eles têm mais possibilidades de discutir o assunto
dessa forma ampla. Por exemplo,
na Inglaterra, o Labour Party
(Partido Trabalhista) tem se organizado para discutir qual é a proposta política que se impõe hoje.
Folha - Quer dizer que a social-democracia não dá mais conta
dos problemas atuais?
FHC - Não é que ela não dá mais
conta. O que foi a social-democracia basicamente? Ela foi o Estado e o partido. Não da forma comunista, porque mantinha a liberdade e não desapropriava tudo. Mas desapropriava grande
parte da produção (aço, carvão,
bancos etc. etc). E detinha no Estado todos os mecanismos de previdência social.
Folha - E no que é que a Terceira Via difere disso?
FHC - Aliás, eu não gosto do nome. E em Florença eles não vão falar em Terceira Via. Vai se chamar "Progressive Governance".
Folha - O sr. prefere isso?
FHC - Prefiro.
Folha - Mas traduzir isso para
o português vai ser difícil.
FHC - Quase impossível. Mas o
que eles procuram sublinhar é
que a sociedade civil ganhou outro peso hoje. Ela é mais dinâmica, ela se mobiliza. E como você
tem essa nova situação de tempo e
espaço, se você vai tomar uma decisão sobre os índios guarani ou
caiuá que aqui no Brasil estão se
matando, você recebe e-mails do
mundo todo no mesmo momento. Mesmo que as pessoas lá fora
não saibam muito bem o que está
acontecendo aqui, elas estão ligadas nos problemas daqui. E vice-versa. Então, você tem mecanismos muito mais dinâmicos que a
estrutura estatal. A social-democracia não foi feita com esse espírito. Foi feita com o espírito do
partido e do Estado. O que se discute com a Terceira Via são outras formas de fazer política, que
não aquelas tradicionais da social-democracia.
Folha - O sr. se refere à social-democracia sempre no passado.
Ela já está acabada?
FHC - A social-democracia sofreu um forte abalo com o fim do
comunismo. Porque ela era uma
alternativa ao comunismo. Quando caiu o Muro de Berlim, caiu
mais do que o Muro de Berlim. Isso não quer dizer que você tenha
o predomínio da visão neoliberal.
Não. A Terceira Via é uma tentativa de dizer: não é nem uma coisa
nem outra. Nem o mercado nem
o Estado controlando tudo.
Folha - O presidente da Internacional Socialista , Pierre Mauroy, disse que não vai aceitar o
PSDB na organização porque o
senhor está governando o país
à direita.
FHC - É. Ele diz isso. Ele está se
esquecendo de que, mal comparando, as forças que ele citou
-PT e PDT- funcionam para o
PSDB como os partidos comunistas funcionavam para a social-democracia na Europa: achavam
que era reformista, não queriam
aliança. Não sou eu, não é o
PSDB, quem não quer aliança
com a esquerda daqui. A esquerda daqui, a assim chamada esquerda, é que não quer. A nossa
esquerda continua no passado.
Ela nem sequer tem uma visão organizada dessa nova temática.
Nós aqui temos uma dificuldade
de passar para os temas da Terceira Via, até porque ainda temos
uma agenda com atraso secular.
Folha - E esse atraso secular,
presidente? Como é que se sai
dele? Quanto tempo será necessário para superar os problemas
tão básicos do país?
FHC - Nós estamos saindo!
Folha - Mas muito devagar.
FHC - Não é tão devagar assim,
não. Você viu os dados? Um dos
problemas importantes dos intelectuais no Brasil é que não se olha
a realidade. Não se pode ficar numa discussão de vocábulos, como
se faz. Mas é preciso ver o que está
acontecendo. Pegue a educação:
as mudanças são fortes. Nós já temos 97,5% das crianças na escola.
Pegue esses dados há 20 anos, 40
anos. A mudança é muito rápida.
Veja de uma perspectiva histórica. A mudança é grande. Ela não é
percebida no dia-a-dia por causa
da luta política e porque são processos. Os dados estão aí. Não vê
quem não quer. E muitos não
querem ver. Mesmo assim, você
não pode comparar o Brasil com
as sociedades européias. Então,
você vai sempre ter esse paradoxo: aqui, a linguagem antiga tem
um certo peso porque ela está respaldada pelo atraso. E ela sempre
vai usar o argumento demagógico
de responsabilizar pelo atraso
quem está no governo hoje.
Folha - Na véspera dos 500
anos, não seria o caso de redefinir os objetivos nacionais?
FHC - Os objetivos nacionais estão postos. Qual é o projeto nacional do Brasil hoje? Não é só desenvolvimento. É uma sociedade
mais democrática e mais igualitária. Por isso é que é preciso diferenciar novamente o Brasil e a Europa. Aqui, você precisa construir, via Estado, mas de um modo diferente, o acesso a serviços
sociais básicos. De que modo diferente? Sem as práticas clientelísticas, em parceria com as organizações não-governamentais. É isso que estamos fazendo. Estamos
desmontando a estrutura antiga
do Estado. Mas eu estou construindo um novo Estado, com as
agências reguladoras, por exemplo. O Estado vai continuar tendo
um papel importante para criar
condições para existir um atendimento social básico. Você não pode pensar num Estado mínimo
no Brasil. Precisa pensar num Estado eficiente e forte. Mas não forte politicamente como no passado; forte por ser poroso, capaz de
atender à sociedade. Foi o que fizemos com a educação e a saúde:
descentralizamos, municipalizamos.
Folha - A autonomia sempre
foi um objetivo nacional. No
mundo da globalização, é possível manter autonomia e se desenvolver ao mesmo tempo? Na
Argentina, é impressionante como há um consenso sobre a
possibilidade de dolarizar e
abrir mão da moeda nacional,
que sempre foi um símbolo de
soberania. Não há uma contradição entre esses dois objetivos,
desenvolvimento e autonomia?
FHC - Não. Só se você entender
autonomia como ela era vista no
passado, quando você tinha condições materiais para autonomia:
barreiras alfandegárias, ausência
deste processo de comunicações
instantâneas. Tudo isso sumiu.
Não é uma questão ideológica. É
uma questão de fato. Mas isso não
quer dizer que não exista mais interesse nacional, que varia de país
para país. No Brasil, por exemplo,
é impensável você dolarizar a economia. A riqueza fiduciária do
Brasil nunca foi em dólar; sempre
foi em moeda nacional. Na Argentina, não. Mas isso quer dizer
que a Argentina não tem identidade própria? Não. Quer dizer
que com o euro desaparece o interesse próprio da França? Não. Esse processo todo de, até certo
ponto, homogeneização provocado pela globalização não vai extinguir novas formas de identidade. Até ao contrário: a reivindicação de identidade hoje é mais forte do que foi no passado.
Folha - Por que o Brasil não
tem um papel mais ativo nos
debates sobre a nova arquitetura financeira do mundo, já que o
país se considerou tão prejudicado pela volatilidade dos mercados financeiros em 1998?
FHC - Vamos lá. No primeiro
discurso que eu fiz fora do Brasil,
no Chile, em 1995, eu falei sobre
isso. Mas as coisas têm que ser
pensadas no mundo de hoje, com
os condicionantes do mundo de
hoje. Desses condicionantes, o
que mais perturba é o financeiro.
A globalização no seu aspecto
produtivo não perturba, ela dá
emprego, dá desenvolvimento
tecnológico. O Brasil se preparou
para entrar no próximo século como partícipe ativo da nova ordem
econômica. Com o desenvolvimento tecnológico que existe
aqui, com o espaço que nós articulamos com o Mercosul e com a
América do Sul, com a nossa capacidade instalada, com o mercado do tamanho que temos, com
as estruturas públicas que existem para dar apoio a tudo isso e
com as instituições que temos,
não há nada que se compare ao
Brasil em termos de países chamados emergentes. Ninguém está
mais capacitado para participar
do sistema produtivo no século
que vem. A China está se preparando, a Índia também. Além
desses dois, que têm condicionantes específicos, é só o Brasil.
Folha - Mas, então, esse é um
motivo a mais para o Brasil ser
mais ativo, sair à frente.
FHC - O mundo de hoje não é o
mundo do slogan. O pessoal quer
mais slogan. Por exemplo, que eu
faça uma reunião dos países do
Terceiro Mundo, não sei para
quê. Isso só levaria ao isolamento
do Brasil nesse novo processo. Essa é a velha política. A maneira de
se inserir na nova arquitetura é ter
condições efetivas de poder para
influenciar as decisões. E já estamos influenciando. Muitas de
nossas propostas já vêm sendo
absorvidas. Agora mesmo, foi
criado o G-20 e o Brasil está lá. O
Brasil quer entrar no Conselho de
Segurança da ONU. Mas eu sempre disse: para quê? Qual vai ser o
papel do conselho? O Brasil quer
ter voz onde ela seja importante,
onde ela pese.
Folha - Não seria mais importante o Brasil tentar ingressar
no G-7 ?
FHC - Não. Porque nós não somos ricos. Quando eu faço essa
crítica ao terceiro-mundismo como uma coisa anacrônica, não
quero dizer que nós somos ricos.
Seria um erro o Brasil imaginar
que é um país rico. Eu disse há algum tempo que o Brasil não é um
país subdesenvolvido, mas sim
injusto. Mas essa injustiça traz
uma carga de pobreza muito
grande, que nos limita demais. O
G-20 é importante porque vai
permitir a discussão dos efeitos
da globalização também entre
aqueles países, como o Brasil, que
não recebem apenas os seus benefícios, mas que também sofrem
com ela. Nós perdemos dois anos
com a crise da Rússia e da Ásia. O
Brasil tem sempre reclamado da
falta de controle do fluxo de capitais. Nunca aceitou a abertura total. Nunca aceitou a livre conversibilidade. É claro que num dado
momento é bom que haja a livre
conversibilidade. Mas nós não
chegamos nesse dado momento.
Folha - Quais são as idéias que
o Brasil tem defendido no debate sobre a nova arquitetura financeira?
FHC - Eu já defendi várias vezes
que haja um banco central dos
bancos centrais e recorri a Keynes
(1883-1946, economista britânico) para me sustentar. O Brasil e
outros países são responsáveis
pelo aumento dos recursos para o
Fundo Monetário Internacional
atender a crises. E o FMI atende
agora de forma menos condicionada. Veja que nossa experiência
de estabilização deste ano é inovadora: baixa de taxas de juros, retomada de crescimento e austeridade monetária. Nós não estamos
fazendo um programa que o Fundo impôs. Só tem um condicionante real: gerar superávits primários. Mas este é um imperativo
nacional, não do Fundo. Isso não
era assim no passado. Eu também
sou favorável à "taxa Tobin" ,
uma espécie de CPMF do mundo.
Defendi até que parte do arrecadado com essa taxa fosse para o
FMI para servir como colchão de
liquidez.
Folha - Quais as chances de isso ser aprovado?
FHC - São muito pequenas. Porque, na verdade, o G-7 não tem
interesse nisso. Isso é uma coisa
vital para o Brasil, para a Coréia, a
Rússia. O problema central da
questão da arquitetura financeira
não é a arquitetura financeira. É a
arquitetura política.
Folha - Como o Mercosul vai
sobreviver com Brasil e Argentina com políticas de câmbio tão
díspares como agora?
FHC - Os países da Europa passaram 50 anos com políticas cambiais diferentes. O caminho vai
ser primeiro harmonizar políticas
macroeconômicas e deixar a
questão do câmbio para depois. É
preciso dar tempo ao tempo. Um
país não pode impor ao outro
uma política de câmbio.
Folha - Este ano não houve
muitos problemas porque os
dois países entraram em recessão. Mas com a retomada do
crescimento, como vai ser?
FHC - Eu acho que vai haver
uma especialização da produção,
maior fusão de capitais entre empresas brasileiras e argentinas.
Folha - O nome Getúlio Vargas
traz por livre associação Volta
Redonda e direitos trabalhistas;
o de JK, Brasília e indústria automobilística. Qual será a livre
associação com FHC?
FHC - Não quero fazer aposta
sobre a história. Seria pretensioso.
Sei lá. Vou fazer o que eu puder.
Mas, além da estabilidade, o que
estamos fazendo de mais importante é na área social, ao contrário
do que se imagina. O Brasil tem
um dos maiores programas de
renda mínima do mundo e não
sabe: tiramos 130 mil crianças do
trabalho penoso, de carvoaria, do
sisal, da cana, e colocamos na escola; a Lei Orgânica de Assistência
Social, que nós ativamos, beneficia 1 milhão de idosos e deficientes físicos; temos a aposentadoria
rural, para 5 a 6 milhões de pessoas. Foram R$ 17 bilhões em renda mínima este ano, sem contar
as cestas básicas. Agora, quando
se começa a fazer trabalho no social, cria-se mais demanda e a
avaliação é sempre feita pelo que
falta ser feito, não pelo que se fez.
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