São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2000

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Livro aponta fraudes e enganos espetaculares da ciência, entre os quais a dúvida sobre a relação HIV/Aids, como produtos inevitáveis da atividade

As ervas daninhas da pesquisa

Edward McSweegan
da "Salon"



0 S urpreendentemente para várias pessoas, muito da ciência é um processo do tipo "macaco vê, macaco faz", no qual um cientista executa um experimento e apresenta o resultado a outros cientistas na forma de uma publicação. Eles, por sua vez, repetem o experimento -em geral para auxiliar seu próprio trabalho e, às vezes, só para ver se o experimento original funciona tal como anunciado. Só que às vezes não funciona. "The Undergrowth of Science" (algo como "A Vegetação Rasteira da Ciência"), livro de Walter Gratzer (Oxford University Press, 272 págs., US$ 27,50), trata desses momentos em que as afirmações da ciência simplesmente não se sustentam. Cientistas não perdem tempo em apontar que isso é incomum, que a ciência é um processo que se autocorrige, no qual veracidade e realidade são determinadas pela possibilidade de reproduzir experimentos e pelo poder de previsão de teorias abstratas. O que eles não dizem é que a ciência precisa ser autocorretora por conta dos próprios cientistas. Assim como pessoas em outras profissões, cientistas podem ser suscetíveis a auto-engano, vaidade, excesso de pensamento positivo, coerção ideológica e fraude. A fraude científica é, por si só, um fenômeno interessante. Livros têm sido escritos sobre vários casos famosos, e muitos provavelmente seguirão. Em outubro, por exemplo, um arqueólogo japonês admitiu ter "plantado" artefatos em um sítio de escavação, para poder declarar ter encontrado as ferramentas mais antigas do Japão. Não sendo nenhum Indiana Jones, ele foi pego em videoteipe. Gratzer está mais interessado nas fraudes não-intencionais, que sorrateiramente invadem a ciência, e nas necessidades políticas e psicológicas que compelem alguns cientistas a se agarrarem a falsas crenças, mesmo diante do que sugere o bom senso e de evidência científica contrária. Cientistas têm primeiro de se iludir, para poder iludir os outros. Nacionalismo, ou "ilusão tribal", frequentemente ajuda nos dois tipos de engano, como mostra Gratzer no famoso caso dos raios alemães contra os raios franceses. No final do século 19, cientistas estavam começando a dissecar os misteriosos mundos da radioatividade, da luz e do átomo. Em 1895, um físico alemão chamado Wilhelm Roentgen descobriu uma nova e poderosa radiação, que ele chamou de raios X. René Blondlot, físico francês de alto conceito, ao estudar os raios X de Roentgen, se convenceu que havia encontrado uma outra forma de radiação. Ele a denominou "raios N", para homenagear sua universidade em Nancy. Depois, usou seus experimentos para convencer cientistas franceses. Guerra de raios Cientistas estrangeiros, inclusive os alemães, se mostraram céticos. Em parte por causa das críticas alemãs, os franceses rapidamente cerraram fileiras em torno de Blondlot. Os alemães haviam invadido a França 30 anos antes, anexando terras francesas, e ambos os lados ainda travavam batalhas acadêmicas, na linha de "nossa ciência é melhor do que a de vocês". A guerra fronteiriça de raios terminou em 1904, quando um físico americano, incapaz de repetir as observações de Blondlot, apontou os erros experimentais e as interpretações subjetivas do resultado. Mas Blondlot continuou a discretamente trabalhar nos imaginários raios N até sua morte, em 1930. Outra entidade fictícia que ocupou muitos cientistas competentes foi a poliágua. Um químico russo descobriu essa forma viscosa de água natural nos anos 60. Suas propriedades pouco usuais preocuparam algumas pessoas (ao menos aquelas que haviam lido o conto de Kurt Vonnegut sobre uma estranha forma de gelo, o gelo IX, que cristalizou os oceanos do globo terrestre). A poliágua poderia transformar os oceanos numa gelatina viscosa? Conseguiria impedir navios de guerra de flutuar, acabaria com o surfe? Centenas de cientistas começaram a estudar a poliágua e a publicar artigos sobre ela. A pesquisa sofreu uma parada súbita quando Dennis Rousseau, dos Laboratórios Bell, torceu sua malha de ginástica cheia de suor em um tubo de vidro e descobriu que seu suor salgado e cheio de proteína tinha as mesmas propriedades da poliágua. Irving Langmuir, um denunciante pioneiro da má pesquisa, chamou de "ciência patológica" a negligência fantasiosa dos raios N, da poliágua e de outros mitos. Os estudos de caso em "The Undergrowth of Science" certamente sustentam essa avaliação: o apoio desastrado da Universidade de Utah à fusão fria numa garrafa térmica, os remédios evanescentes da homeopatia, a radiação à moda de "Jornada nas Estrelas" emitida por embriões, esforços pré-Viagra para restabelecer a juventude e a vitalidade com transplantes de testículos de macaco e outros atos de ciência estranha. Vírus intelectual Gratzer refaz os passos pelos quais os pesquisadores se iludem: "O germe do episódio patológico é em geral um erro inocente ou uma miragem experimental. O autor se persuade de que realizou uma grande descoberta, que lhe trará fama e progresso na carreira. Uma vez comprometido, é difícil voltar atrás e admitir os princípios de cautela e ceticismo que o treino e a experiência normalmente inculcam para sobrepujar a excitação e a euforia de um brilhante sucesso".
Gratzer, um resenhista frequente na revista "Nature" e autor de "The Literary Companion to Science", reuniu com habilidade uma coleção fascinante de más idéias em física, medicina, química, genética e biologia. Muitas delas provêm de indivíduos cujas crenças falsas conseguem espalhar-se pela comunidade científica como um "vírus intelectual".
O vírus ainda está à solta, pronto para infectar os suscetíveis. Hoje, por exemplo, um punhado de pesquisadores e de políticos nega que o HIV cause Aids. Uns poucos "cientistas ermitões" ainda pelejam com a fusão fria. Percival Lowell viu canais em Marte, e seus herdeiros hoje lá encontram rostos gigantes e pirâmides.
Vários pesquisadores médicos anunciaram recentemente ter encontrado bactérias extremamente pequenas -nanobactérias- que pareciam causar pedras nos rins das pessoas. No mês passado, outros reproduziram seu trabalho e concluíram que "a evidência bacteriológica crível ... está penosamente ausente". Atribuíram a formação de cálculos renais a processos comuns de cristalização.
Será que as nanobactérias vão desaparecer, agora, ou continuarão a existir nos laboratórios de uns poucos cientistas devotados?


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