|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Micro/Macro
Elogio da razão pura
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
A
ciência, como a religião, tem seus
profetas, aqueles que enxergam
mais longe do que outros, muito antes
do que todos. Claro, as "revelações" vislumbradas pelos profetas da ciência não
têm nada de sobrenatural, visto que elas
se baseiam em uma combinação de lógica e de intuição, muitas vezes alimentadas por observações ou resultados experimentais. Mas, em casos raros, esses
profetas descrevem o que posteriormente se constatará ser verdade de forma tão
inesperada que só posso chamá-los de
visionários da ciência, os que enxergam
sem precisar olhar. O filósofo alemão
Immanuel Kant (1724-1804) é um desses
raros visionários da ciência.
Kant é bem mais conhecido por sua filosofia do que por sua ciência, mesmo
tendo sido igualmente fascinado por
ambas. Durante a juventude, eram o cosmos e a ciência newtoniana, com sua
simplicidade e abrangência, que alimentavam sua imaginação. Para ele, como
para muitos outros racionalistas do século 18, Deus era visto como o criador do
Universo e de suas leis naturais, enquanto o homem era seu decodificador.
Em 1755, com apenas 31 anos, Kant escreveu o tratado "História Universal Natural e Teoria dos Céus", dedicado a Frederico, o Grande, rei da Prússia. Kant esperava impressionar o rei o bastante para ganhar uma posição acadêmica em alguma universidade. Infelizmente, seu
editor foi à falência pouco antes de publicar o tratado, e Frederico jamais recebeu
sua cópia. Nesse tratado encontramos
verdadeiras jóias do pensamento kantiano e de sua belíssima visão cósmica.
A visão kantiana do Universo baseava-se numa hierarquia de estruturas que se
repetia dos planetas às galáxias. Manifestação material do infinito poder criativo
de Deus, o Universo replicava-se em todas as dimensões, das menores escalas às
maiores. Foi Kant quem sugeriu, antes
de qualquer outro, que o Universo é
composto por inúmeras galáxias como a
Via Láctea, todas elas repletas de estrelas
que, como o Sol, seriam rodeadas de planetas. Esses, por sua vez, rodeados por
satélites. As mesmas estruturas, grosso
modo, repetindo-se pelo Universo afora.
Kant imaginou um processo de formação para o Sistema Solar que, em muitos
aspectos, sobrevive até hoje. Para ele, o
sistema nasceu de uma nuvem de gás
que se contraiu sob a própria gravidade.
No início era o caos, com átomos dispersos pelo cosmos. Instabilidades nessa
matéria primordial atraíram mais matéria, criando uma combinação de movimentos de contração gravitacional e rotação. Na medida em que a recém-formada nebulosa encolhia e rodava, ela
também se achatava nos pólos.
Instabilidades locais, semelhantes às
que geraram a grande nebulosa, criaram
os planetas e seus satélites. Kant sabia
que as órbitas planetárias se encontram
todas praticamente num mesmo plano
que atravessa o Sol, como um disco atravessando uma bola de tênis (não em escala). Seu modelo reproduzia essas observações, ao menos qualitativamente.
Aliás, essa é uma das críticas ao Kant
cientista: que ele argumentou o Universo, ao invés de calculá-lo, como fez Laplace. Sua intuição era absolutamente
cristalina, movida por uma visão teopoética do cosmos -razão inspirada pela
emoção.
A visão de Kant foi além da formação
do Sistema Solar e da repetição das hierarquias cósmicas. Também especulou,
corretamente, que ciclos de criação e
destruição pontuam a história do Universo. Imaginou que a mesma matéria
que cria planetas e cometas vai também
destruí-los, já que "nos confins do tempo" tais objetos cairão no centro de suas
órbitas. Kant imaginou que isso eventualmente criará uma "conflagração",
explosão que reespalhará a matéria pelo
cosmos, recriando o caos primordial.
Mais uma vez, pequenas instabilidades
nessa matéria irão crescer, criando novos sóis e planetas, reiniciando a dança
cósmica que Kant chamou de "Fênix da
Natureza". Portanto, para Kant, o Universo repetia os ciclos de vida e morte
das pessoas e de tudo na Natureza, com
exceção da alma, fez questão de dizer,
que é eterna. Sua obra, sem dúvida, é.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "Retalhos Cósmicos"
Texto Anterior: As ervas daninhas da pesquisa Próximo Texto: Nova hipótese para a ação do HIV Índice
|