São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2000

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Livro de jornalista denuncia abusos praticados por antropólogos dos EUA e da França ao estudar tribos ianomâmis na Amazônia venezuelana e brasileira
Antropologia e ferocidade

John Horgan
do "The NYT Book Review"

Nos últimos 50 anos, os antropólogos que estudam povos afastados foram se tornando cada vez mais pessimistas em relação ao "efeito do observador" -a mera presença do pesquisador altera o comportamento do grupo.
Os antropólogos normalmente vêem essas alterações como efeitos psicológicos sutis na mente dos indivíduos. Mas considere o seguinte encontro: um helicóptero trazendo o antropólogo Napoleon Chagnon subitamente desce sobre uma aldeia amazônica, levantando pó e fazendo voar cestas e redes. Enquanto mulheres e crianças correm para a floresta, os homens da tribo atiram pedras e paus no helicóptero.
Incrivelmente, esse incidente de 1991 é um dos mais benignos dos revelados por Patrick Tierney em "Darkness in El Dorado" (Trevas no Eldorado). O livro, que foi exaustivamente comentado pela imprensa, expõe a horrenda exploração científica e jornalística dos índios ianomâmis. Por mais de 30 anos, esses habitantes da floresta equatorial -que vivem em aldeias na Venezuela e no Brasil- foram vistos como selvagens ignóbeis. Os ianomâmis dificilmente eram pacifistas, mas Tierney defende a idéia de que eles era muito menos selvagens do que os cientistas que os estudaram.
O vilão principal da história contada por Tierney é Chagnon, que fez sua primeira visita ao território ianomâmi em 1964. Seu livro de 1968, "Ianomâmi: O Povo Feroz", tornou-se o trabalho etnográfico mais vendido de todos os tempos. E por que não haveria de ser? Chagnon recheou sua narrativa com os ingredientes típicos de best sellers: sexo, violência e até drogas.
Tierney agora sugere que Chagnon criou sua própria história, induzindo o comportamento violento dos indígenas. O jornalista relata que o antropólogo se divertia entrando em aldeias pintado para a guerra e agitando uma arma de fogo. Os ianomâmis logo perceberam que o homem branco recompensava as suas manifestações agressivas, dando facões e outras valiosas ferramentas. Tierney diz que os ianomâmis competiam pela atenção e pelos presentes de Chagnon, e não pelas mulheres, como afirmava o antropólogo.
O mais perturbador incidente citado por Tierney envolve um programa de vacinação contra sarampo iniciado em 1968 por James Neel, proeminente geneticista e mentor de Chagnon. Neel, que morreu no começo do ano, escolheu uma vacina considerada perigosa para dar aos indígenas. Tierney sugere que a intenção oculta de Neel não era a de proteger os ianomâmis contra sarampo.
Ele acreditava que o estilo de vida dos ianomâmis havia dado a eles sistemas imunológicos mais robustos do que os de membros das sociedades modernas. Conforme a equipe de Neel, que incluía Chagnon, começou a inocular a vacina nos indígenas, uma epidemia de sarampo surgiu, matando centenas de pessoas.
Outro episódio estarrecedor é centrado no antropólogo francês Jacques Lizot, que viveu entre os ianomâmis de 1970 a 1994. Ele não encontrou um "povo feroz", mas praticante de diversas modalidades sexuais, como masturbação, bestialismo e homossexualismo. Mais uma vez, a imagem era uma projeção das predileções do antropólogo, diz Tierney. Ele acusa Lizot de dar facões, jóias, roupas ocidentais e outros presentes a homens que praticassem atos sexuais com ele e com outros membros da tribo.
Tierney acusa a mídia também. Ele critica especialmente os produtores do documentário da Nova/BBC de 1996, "Warriors of the Amazon" (Guerreiros da Amazônia). O destaque do filme era a doença e a morte de uma jovem mãe e seu bebê. Durante as filmagens, a equipe recebeu de avião uma nova câmera da Inglaterra, mas não usou o avião para levar a mãe febril e a criança a uma clínica.
"Darkness in El Dorado" já provocou reações extremadas. Teve um trecho publicado na revista "The New Yorker", foi selecionado para disputar o National Book Award e classificado como uma "fraude" por um colega de Chagnon na publicação de Internet "Slate". Alguns críticos desafiam várias das afirmações de Tierney, particularmente sua acusação de que Neel e Chagnon teriam causado a epidemia de sarampo de 1968.
O fato é que o jornalista deveria ter trabalhado mais para provar suas acusações. Mas os problemas de seu livro são superados pela massa de detalhes vívidos e desconcertantes. Meu palpite é que se tornará um clássico da literatura antropológica, despertando incontáveis debates sobre a ética e a epistemologia de estudos de campo.


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