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Micro/Macro
Os perigos de uma história malcontada
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Ciência pode causar pânico. Às vezes
com razão, como no caso do desenvolvimento de armas nucleares, químicas ou biológicas. Imagine o que aconteceria se um grupo terrorista, com uma
bactéria geneticamente alterada, contaminasse o abastecimento de água de Brasília. A bactéria, "construída" em laboratórios clandestinos com tecnologia roubada de indústrias de ponta, mataria em
apenas dois dias. A mídia espalharia a
notícia com a velocidade da luz, alertando a população para o perigo. Nesse caso, a velocidade de propagação da informação e o choque da notícia salvariam
inúmeras vidas. Vamos analisar o outro
lado -a mídia propagando o pânico erroneamente, também devido a uma
"ameaça" científica, agora nas mãos de
cientistas: os cientistas como assassinos!
Eis um exemplo recente e, na minha
opinião, bastante ilustrativo. Em julho
de 1999, a prestigiosa revista "Scientific
American" publicou reportagem sobre
uma experiência do laboratório de Brookhaven (EUA), conhecida como "Colisor de Íons Relativísticos Pesados" (a sigla, em inglês, é RHIC). Na experiência,
núcleos de átomos de ouro são bombardeados por prótons acelerados a velocidades próximas à velocidade da luz. A
idéia é recriar, por frações de segundo, as
condições existentes durante o primeiro
centésimo de milésimo de segundo após
o Big Bang, evento que marcou a origem
do Universo. Segundo as teorias modernas da física nuclear, os prótons e os nêutrons (integrantes do núcleo atômico)
são compostos por partículas chamadas
quarks, que interagem entre si trocando
outras partículas, os glúons. Os glúons
agem como uma cola nuclear: mantêm o
núcleo coeso, apesar da repulsão elétrica
de seus componentes. A densidades e
temperaturas muito altas, como no Universo primordial ou no centro das colisões no RHIC, o núcleo e seus componentes são transformados em um novo
estado da matéria, um plasma de quarks
e glúons. Essa é a previsão da teoria que o
experimento irá testar.
O artigo da "Scientific American", intitulado "Mini Big Bang", provocou o interesse de alguns leitores. Um deles perguntou se o experimento poderia criar
um miniburaco negro que engoliria a
Terra; afinal, argumentou, Stephen
Hawking escreveu que miniburacos negros teriam existido momentos após o
Big Bang. A resposta foi dada por Frank
Wilczek, físico renomado, então no Instituto de Estudos Avançados em Princeton: "A idéia é muito implausível", disse
ele. "Mas outra forma de matéria poderia
aparecer no experimento, chamada
"strangelet", com resultados catastróficos. Mas isso também é implausível", finalizou. Implausibilidade representa algo muito diferente para um cientista treinado ou uma pessoa fora da área. Afinal,
vencer na loteria também é implausível,
mas acontece. O público quer ouvir a palavra "impossível", que raramente é usada em física, a menos que exista uma violação óbvia de suas leis.
Uma enxurrada de artigos sensacionalistas apareceu em seguida. O jornal inglês "The Times" publicou a manchete:
"Máquina do Big Bang pode destruir a
Terra". Um repórter da rede norte-americana ABC chamou o RHIC de "máquina do juízo final", acusando os cientistas
de "brincar de Deus". Um processo foi
aberto para parar o experimento; um jovem escreveu ao diretor de Brookhaven
dizendo estar desesperado com a possibilidade de um buraco negro em Nova
York; surgiu um rumor de que um buraco negro criado pelo RHIC teria engolido
o avião de John Kennedy Jr. Incrível a irresponsabilidade dos jornais e TVs que
propagaram esses absurdos. Incrível
também a falta de sensibilidade dos cientistas com relação à repercussão social de
seu trabalho. Ciência pode causar pânico, especialmente se a sua divulgação depender de profissionais despreparados e
do silêncio arrogante dos cientistas. Nesse meio tempo, no mês passado, o RHIC
entrou em funcionamento -e nós ainda
estamos aqui, sãos e salvos.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "Retalhos Cósmicos".
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