São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000


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Periscópio

Doença genética mitocondrial

José Reis
especial para a Folha

Douglas Wallace e colaboradores, da Emory University, em Atlanta (EUA), revelaram na revista "Cell" (61, 931) a causa genética de uma doença mitocondrial. Ela reside em defeito no mecanismo de tradução da mensagem genética, isto é, no processo pelo qual o DNA produz a proteína do corpo.
Na última década, identificaram-se várias doenças causadas por deficiências de enzimas mitocondriais. Nelas têm sido notadas mutações e deleções no DNA nuclear e no mitocondrial. Os quadros clínicos são heterogêneos (epilepsia, paralisia do globo ocular, cegueira, distúrbios hormonais, surdez, deficiência na contração do músculo cardíaco). Dois sinais típicos permitem identificar a doença mitocondrial: acidose lática e proliferação mitocondrial, com mitocôndrias gigantescas e cristais de proteína.
As mitocôndrias são organelas do citoplasma celular, onde têm a função de central energética. Cada mitocôndria possui seu próprio material genético sob forma de DNA, que forma molécula circular. Diferentemente do nuclear, só se transmite às células descendentes pela linha materna: na fertilização do óvulo, as mitocôndrias do espermatozóide são barradas e não atravessam a membrana ovular. A produção de energia pela mitocôndria é típica, fazendo-se pelo sistema chamado de fosforilação oxidativa.
A equipe de Wallace há vários anos estuda o complexo patológico conhecido em inglês por MERRF, que se manifesta em espasmos musculares breves (epilepsia mioclônica) associados a progressiva degeneração em tecidos nervosos e musculares, assim como hepáticos e renais, sintomas resultantes da incapacidade mitocondrial de fornecer suficiente energia. Pelas peculiaridades da doença, como a transmissão em linha materna e as deficiências bioquímicas do sistema energético de fosforilação oxidativa, suspeitou-se que o processo fosse de origem mitocondrial, o que foi encarado com ceticismo por vários investigadores.
Examinando o DNA mitocondrial de pacientes com MERRF, a equipe de Wallace confirmou a suspeita e descobriu que o defeito básico consistia em mutação num gene que comanda a produção do ácido ribonucléico de transferência (tRNA) que, no processo de transcrição do DNA em proteína, transporta o ácido aminado lisina para sua posição correta na proteína que se está formando.
Na MERRF, pela ligação das mitocôndrias com a geração de energia, a maioria dos sintomas atinge sistemas relacionados com esta, em graus variáveis conforme as demandas energéticas de cada estrutura. As manifestações são mais intensas no tecido nervoso, a seguir no muscular e em outros órgãos. Sua intensidade depende da quantidade de mitocôndrias com gene defeituoso. O quadro clínico varia muito, segundo a proporção de mitocôndrias normais e afetadas. Para Wallace, muitas síndromes clínicas que parecem misteriosas podem ser causadas por defeito no aparelho mitocondrial, inclusive processos degenerativos como as doenças de Huntington e Parkinson, além do envelhecimento.
É difícil saber quem descobriu o papel das mitocôndrias. Altman percebeu em 1890 que elas são elementos vivos, capazes, como as bactérias, de viver independentemente no citoplasma celular. Otto Warburg, em 1913, viu relação entre esses grânulos e a respiração celular. Mais tarde (1930), Bensley abriu os modernos caminhos de estudo das mitocôndrias, tentando isolá-las por centrifugação diferencial, o que foi conseguido em 1948 por Hageboom, Schneider e Palade no Instituto Rockefeller de Nova York. No mesmo instituto, as pesquisas de Kennedy e Lehninger demonstrariam que as mitocôndrias isoladas do fígado de rato são capazes de realizar oxidações fosforiladas em cujo decurso se fabrica o ATP (trifosfato de adenosina), o grande transportador celular de energia.



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