São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2001

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+ ciência

Livro reabilita imagem do capitão Robert Falcon Scott, líder de expedição à Antártida que terminou em tragédia em 1912, após enfrentar frio imprevisível

O degelo da história

Gabrielle Walker
da "New Scientist"

O capitão Robert Falcon Scott ficou mal na fita. Ele é denunciado por muitos como um incompetente cujo mau planejamento levou à sua própria morte e à dos membros de sua equipe na Antártida em março de 1912.
A americana Susan Solomon discorda. Ela acredita que ele foi surpreendido por um tempo maluco. Solomon sabe uma coisinha ou outra sobre a atmosfera antártica: ela a estudou durante 15 anos. Na década de 80, ajudou a desvendar a causa do buraco na camada de ozônio. Mas seu primeiro livro é sobre Scott.

O que a tornou tão interessada em Scott?
Eu não sabia nada sobre ele quando fui para a Antártida pela primeira vez, em 1986. Eu cheguei a McMurdo, a principal base americana, fui para o meu quarto, olhei através da baía dos Winter Quarters e lá estava a cabana de Scott. Ela parece bem moderna, quase como a casa nas montanhas do Colorado onde eu vivo. Tem a varanda, a madeira, o teto inclinado. Então descobri que ela tinha 80 anos e fiquei intrigada. Então, comecei a ler sobre Scott e descobri que ele e seus homens morreram na volta do pólo Sul.
Muita gente afirmou que as mortes foram culpa de Scott e que, longe de ser um herói, ele era um trapalhão completo. Você tinha essa visão no começo?
Eu só pensei que ele pudesse ter julgado mal quais seriam as condições na plataforma de gelo na volta, porque eu sabia o suficiente sobre a meteorologia da região para ver quão facilmente alguém poderia errar.
Como você chegou à conclusão de que os detratores de Scott estavam errados?
Isso levou cerca de 15 anos de pesquisa. Primeiro eu li os diários e tudo o mais que pudesse encontrar, então coletei os dados meteorológicos da expedição e os comparei com dados modernos. Aí tive um desses momentos maravilhosos de epifania científica, quando você diz: "Oh, meu Deus, agora eu entendi!" Ninguém poderia ter previsto o tempo persistentemente frio que Scott encarou. Em 17 anos de dados diretamente da área onde ele morreu, só houve um ano como aquele. George Simpson, o meteorologista de Scott, estava convencido de que aquele tempo era muito pouco usual, mas ele não teve como prová-lo, e eu tive. Foi por isso que eu sabia que tinha de escrever esse livro.
Por que o frio era tão problemático?
A temperatura mínima média deveria ter sido -30C em março. Quando você está aclimatado, isso é um forno. Mas -40C é outra história. Você se sente como se suas narinas estivessem sendo secas a frio, e o gelo se forma nos cantos dos seus olhos. Esse tipo de frio tem consequências sérias para uma expedição. Primeiro, há o perigo de gangrena, que foi o que aconteceu com o capitão Oates. Depois, quando está muito, muito frio na Antártida, o vento pára. Os homens de Scott tinham planejado amarrar uma vela aos trenós e usar os ventos que sopravam do sul para velejar de volta. Em vez, disso, tiveram de continuar arrastando os trenós. Mas a gota d'água é que, quando a neve fica realmente fria, ela começa a ficar áspera feito uma lixa, e é muito mais difícil puxar os trenós. Quando essas temperaturas extra-frias vieram, Scott falou que os trenós ficaram pesados como chumbo.
Qual foi sua sensação ao ler esses diários?
Quando você mergulha tanto na vida de uma pessoa, você aprende muito sobre ela. Veja os dois homens que morreram com Scott no acampamento final. Edward Wilson era muito meticuloso. Henry "Birdie" Bowers era uma das pessoas mais determinadamente otimistas que você poderia encontrar. Esse é outro motivo pelo qual escrevi o livro: o que quer que você pense de Scott -e eu pessoalmente acho que há muitas razões para respeitá-lo-, você não deve pintar os outros da mesma cor. Você deve isso a eles. Eram homens tão extraordinários que eu quis contar todas as suas histórias.
Os primeiros exploradores não tinham nenhum dos confortos que há hoje na Antártida. Você acha que isso facilita a essas pessoas criticar Scott?
Sim, acho que faz. Isso nos deixa seguros para ir para lá e dizer: "Somos espertos e bem preparados e nada pode acontecer conosco". Bom, pense duas vezes. Coisas ruins acontecem até com gente muito esperta. Aconteceu com Scott. E tem acontecido desde então. A estação do pólo Sul esteve a ponto de pegar fogo poucos anos atrás e, se isso tivesse acontecido, todo mundo lá estaria morto. Um dos laboratórios da Pesquisa Antártica Britânica na península Antártica incendiou em setembro. Mas nós não admitimos o quão perigosa é a Antártida.
Você acha que Scott se arriscou demais viajando em março, perto do fim do verão antártico? Amundsen, que chegou ao pólo primeiro e sobreviveu, já estava em casa àquela altura.
Acho que não. Amundsen só usou cães e pôde partir mais cedo. Scott teve de esperar por causa dos pôneis. Ele sabia que havia risco. Mas o tempo que ele estava prevendo era o que ocorre em 19 anos a cada 20. E, se eles tivessem tido condições normais, eu tenho muito poucas dúvidas de que teriam conseguido. Foi estupidez? Foi sem pensar? Absolutamente não. Tinha risco? Certamente. Tudo tem risco. Amundsen também correu riscos. Ele armou seu acampamento de inverno sobre a plataforma de gelo flutuante, que ele achou erroneamente que fosse terra firme. Se ele tivesse estado lá em 2000, quando aquela parte do gelo quebrou, ele teria ficado à deriva no mar. Esse tipo de quebra acontece em 1 ano a cada 20. Então, ele correu um risco de 1 em 20 -sem saber- de ficar à deriva. Scott correu um risco de 1 em 20 com o tempo. Um deles teve sorte, o outro não.
O que a atrai na Antártida?
Comecei como pesquisadora teórica e a minha primeira viagem de campo foi à Antártida, no inverno. Adorei, desde o primeiro minuto fora do avião. Adorei o que há de selvagem nela, seu caráter intocado, a ferocidade, a natureza implacável daquele ambiente. Gosto das coisas na natureza que nos lembram como ela é poderosa e como somos insignificantes, e a Antártida é tão feroz e bela quanto se pode ser.

The Coldest March
de Susan Solomon
Yale University Press, EUA
US$ 29,95
Onde encomendar: www.amazon.com


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