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Micro/Macro
Toda singularidade nua será castigada
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Quando Einstein terminou a formulação de sua teoria da relatividade
geral, em 1916, ele mal podia imaginar
que os buracos negros levariam as suas
idéias a ter consequências que ele mesmo não iria gostar. Segundo Einstein, a
presença de uma massa (ou de energia, já
que matéria e energia podem ser entendidas conjuntamente) curva o espaço à
sua volta e afeta também a passagem do
tempo. Ou seja, o que seria uma linha reta a uma grande distância da massa vira
uma linha curva perto dela. Já um relógio
bate mais devagar na vizinhança de uma
massa, quando visto por um observador
longe dela.
Esses efeitos espaço-temporais são extremamente pequenos para massas comuns, como uma pessoa ou mesmo uma
montanha. Mas quando lidamos com
objetos astronômicos, como o Sol, eles se
tornam mais importantes. De fato, os
efeitos previstos por Einstein dependem
da "densidade" do objeto, da quantidade
de matéria que existe em seu volume.
Por exemplo, uma pessoa com 70 quilos
não tem uma densidade muito grande,
mas se encolhermos essa pessoa mantendo a sua massa fixa até o tamanho de
uma bola de gude, sua densidade fica
muito maior. O que controla a importância dos efeitos previstos por Einstein
é, em um corpo esférico, a razão da massa do corpo (M) pelo seu raio (R), M/R.
Como a gravidade é atrativa, se ela
atuasse sozinha, todos os objetos tenderiam a encolher até um ponto com densidade infinita. Como nós não somos pontos com densidade infinita, sabemos que
existem outras forças na natureza contrabalançando a atração gravitacional,
dando estabilidade aos objetos do mundo. Por exemplo, uma estrela existe por
causa do equilíbrio entre a atração gravitacional, que tende a fazer com que a estrela encolha, e a produção de radiação
em seu interior através da fusão nuclear
de hidrogênio em hélio. Essa fusão do
elemento químico mais leve (hidrogênio) no segundo elemento mais leve é
que produz a energia capaz de balancear
a estrela. No caso do Sol, a fusão continua sem problemas durante 10 bilhões
de anos (estamos na metade do ciclo).
Depois disso, a gravidade fará com que o
Sol encolha até ele encontrar um novo
estado de equilíbrio em forma de "anã
branca", uma estrela tão densa que uma
bola de gude feita de seu material teria o
mesmo peso que a Torre Eiffel.
Mas o Sol é uma estrela pequena. Estrelas bem maiores não têm a mesma sorte
e continuam a encolher devido à sua
própria gravidade, sem encontrar um
novo estado de equilíbrio. Nesse caso,
como a sua massa permanece aproximadamente constante e o seu raio diminui
cada vez mais, como um balão sendo
comprimido, os efeitos gravitacionais
(M/R) crescem cada vez e as correções
previstas por Einstein eventualmente
passam a ser importantes. O trágico é
que, como nada pode deter esse colapso,
a gravidade da estrela vai encurvando o
espaço cada vez mais até que ele efetivamente se fecha sobre si mesmo: não podemos ver o que está ocorrendo dentro
dele, já que nenhuma informação pode
escapar de dentro para fora, nem mesmo
a luz. Assim nasce um buraco negro,
uma espécie de véu separando o nosso
mundo do mundo encurvado sobre si
mesmo circundando os restos da estrela.
Das inúmeras questões que surgem
com relação aos buracos negros, uma
das mais interessantes é o que acontece
no seu centro. Segundo as leis da relatividade geral, no centro existe uma "singularidade" espaço-temporal, um ponto
onde a gravidade é infinita. Em física, essas singularidades apontam para os limites de uma teoria; a relatividade de Einstein não pode descrever o que ocorre no
centro de um buraco negro. A distâncias
muito pequenas precisamos também
usar a mecânica quântica, que estuda a
física atômica e subatômica. O problema
é que não sabemos como casar as duas
teorias, a gravidade e a mecânica quântica. E o mais chocante é que a mecânica
quântica prevê que o buraco negro evapora aos poucos, ficando cada vez menor, até que apenas o seu centro absurdo
nos seja revelado! Essa possibilidade
causa pesadelos aos físicos, que conjecturam que essa "singularidade nua" não
pode ser revelada. O termo "censura cósmica" foi criado, supondo que algo ocorrerá antes de vermos a singularidade
nua, mantendo a moralidade cósmica.
As leis da física não se quebram, apenas o
nosso conhecimento. É possível que a
singularidade não exista e que os buracos negros tenham um fim bem mais
discreto do que nos revelar a sua nudez.
Talvez tudo se resolva quando casarmos
as duas teorias. Mas esse casamento está
muito difícil de ser arranjado.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (Estados Unidos),
e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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