São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002

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Micro/Macro

O quantum e a realidade

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Crise é fundamental em ciência; sem crise não há progresso, apenas estagnação. Quando investigamos como a ciência progride na prática, vemos que é aos trancos e barrancos: os cientistas não têm sempre todas as respostas na ponta da língua. O processo criativo de um cientista pode ser bem dramático, muitas vezes envolvendo a agonia da dúvida e, em alguns casos, o êxtase da descoberta. Vista sob este prisma, a ciência não está assim tão distante da arte.
Na maioria das vezes, as crises nas ciências naturais são criadas por experiências realizadas em laboratórios ou por observações astronômicas que simplesmente não se encaixam nas descrições e teorias da época: novas idéias são necessárias, idéias essas que, às vezes, podem ser revolucionárias. Em geral, revolução em ciência implica novas e inesperadas concepções da realidade, chocantes a ponto de intimidar os próprios cientistas.
Um exemplo foi a transição de um cosmo geocêntrico (a Terra no centro) para um cosmo heliocêntrico (o Sol no centro), que ocorreu durante o século 16. Outro exemplo, o que quero discutir hoje, foi a revolução quântica ocorrida no início do século 20, cujas consequências podem ser medidas de dois modos: pela explosão de tecnologias dependentes de processos quânticos, incluindo transistores, semicondutores, lasers, energia nuclear, enfim, muitos dos aparelhos que hoje nos cercam e que, de certa forma, definem a vida moderna; e pela mudança em nossa concepção do que vem a ser realidade e a sua relação com o conceito de informação.
Antes, um pouco de contexto. A revolução quântica trata da física dos átomos e das partículas subatômicas, como os elétrons e os prótons. Uma das suas consequências mais importantes foi a descoberta de que, no mundo do muito pequeno, todos os processos são descontínuos. Por exemplo, em nossa realidade, uma bola cai continuamente no chão, a Lua gira continuamente em torno da Terra, uma onda viaja continuamente no mar até quebrar na praia. Já um elétron não gira continuamente em torno de um núcleo atômico; suas órbitas são "quantizadas", separadas umas das outras como as camadas de uma cebola. O elétron só pode estar em uma dessas camadas e não entre elas, do mesmo modo que nós não podemos estar entre dois degraus de uma escada.
Quando falo em elétron, próton ou partícula o leitor imagina imediatamente algo como uma bola de bilhar, localizada no espaço. Porém, a física quântica mostra que qualquer objeto pode ser visto também como uma onda, o exato oposto de uma partícula: uma onda se espalha pelo espaço. Claro, você não vê o seu chefe ou um ônibus ondulando. Esses efeitos só são relevantes no mundo quântico. Mas lá, um elétron pode ser visto como uma bola de bilhar ou uma onda. E quem decide? O observador.
A resposta depende de como observamos o elétron, do tipo de experiência que montamos. Se a experiência forçar a colisão do elétron com outra partícula, ele se comportará como uma bola de bilhar. Se ela for de interferência, por exemplo, o elétron passando por duas fendas em uma tela, com um detector ao fundo, ele se comportará como uma onda, gerando padrões de interferência. O observador define a realidade física do elétron. Aliás, não podemos nem dizer que o elétron existe antes de o observarmos.
Portanto, no mundo quântico não podemos separar o observador do observado. E nem do conceito de informação. Afinal, qualquer medida ou observação cria informação: em que órbita atômica o elétron está em um determinado momento, como ele está girando em torno do núcleo, em que sentido ele está girando em torno de si mesmo (no sentido horário ou anti-horário) etc. Como em física quântica todas as quantidades são descontínuas, o processo físico mais simples é aquele que envolve o mínimo possível de informação, um bit, uma resposta que só pode variar entre um ou zero, sim ou não.
Voltemos ao elétron passando por duas fendas. Se taparmos uma delas, ele passará com certeza pela outra. Quando as duas estão abertas, não podemos dizer por qual das duas o elétron passa: ele passa pelas duas, como uma onda. Imagine um observador com apenas um bit de informação; se ele o usar para medir por qual fenda o elétron passa, ele não terá como dizer em que posição o elétron irá se chocar com o detector ao fundo. Ou seja, existe um indeterminismo intrínseco no mundo quântico; as coisas acontecem sem uma razão óbvia, definindo uma realidade independente da existência de observadores. Nós só podemos contar parte da história.


Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (Estados Unidos), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"


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