São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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Apesar de hoje terem dinheiro para alugar ou construir estúdios, músicos mantêm na memória o sufoco do começo

Fama produz harmonia com os vizinhos

FREE-LANCE PARA A FOLHA

Os tempos dos ensaios entre caixas de ovos viraram história. Hoje, famosos, alguns músicos usam seus instrumentos para produzir, além dos tradicionais ruídos, receita. Mas os tempos de sufoco não saem da memória.
Fernando Deluqui, guitarrista do RPM, lembra que, bem antes do estouro ao lado de Paulo Ricardo, Luiz Schiavon e Paulo P.A., nos anos 80, ensaiava com a sua banda cover dos Rolling Stones na cozinha da casa dos avós maternos, Tomás e Sofia.
"Minha avó tinha medo de que a gente quebrasse coisas na casa e só deixava que os ensaios acontecessem na cozinha. Os ladrilhos, em vez de abafar, amplificavam o som. Era uma loucura!"
Quando o tempo estava bom, a banda de Deluqui transferia os equipamentos para o jardim, mas o resultado não era dos melhores. "As pessoas do prédio ao lado jogavam coisas." Essa "guerra" durou cerca de um ano, mas hoje tudo é lembrado com carinho: "Era uma festa! Tudo era motivo para abrirmos mais uma cerveja".

Rock x forró
Andreas Kisser, 33, guitarrista do Sepultura, sempre teve o apoio da família, mas não foi poupado das reclamações de terceiros. "Sempre acontece, principalmente quando estamos começando."
Foi nessa fase, quando integrava a banda cover de heavy metal Esfinge, que Andreas enfrentou um público enfurecido.
"A gente estava ensaiando em cima de um bar, em São Bernardo do Campo [Grande São Paulo]. As pessoas queriam ouvir forró e, por causa do barulho, algumas subiram e queriam quebrar tudo." Solução? Segundo Kisser, parece não haver. "A gente quer fazer barulho mesmo."
Se o início é complicado, a fase posterior em geral é mais calma. "A primeira recomendação que eu dou é: fique famoso!", ensina o blueseiro André Christovam, 42. "Os vizinhos passam a achar o máximo e até pedem para você ensaiar de porta aberta", conta, recordando a época em que tocou com Kid Vinil e Rita Lee.
Apesar da vizinhança amigável -"a Pompéia é bairro de roqueiro"-, Christovam teve de adaptar uma sala de casa, pois os vizinhos não paravam de reclamar dos ensaios de sua mulher, Elaine, formada em piano erudito.
"Sou músico e entendo a necessidade de repetição, mas nem eu aguento", fala o guitarrista. A solução foi a construção de uma parede de 60 cm de concreto entre a parede da casa de Christovam e a do vizinho, com um custo total -incluindo porta e vidro no lugar da janela- de R$ 3.300.
"A sala é apenas vedada. Depois pretendo tratar acusticamente a parte interior."

Prevenido
Considerado o melhor guitarrista de blues do Brasil, o angolano Nuno Mindelis, 44, pode também ser chamado de cauteloso.
Depois de um estúdio com parede dupla e lã de vidro, Nuno agora tem em casa um estúdio revestido com espuma acústica, além de areia dentro dos blocos de concreto. "Posso ter um monte de defeito, mas essa falta de cuidado com os vizinhos eu não tenho", desabafa o blueseiro.
O guitarrista está prestes a realizar um "teste". Ele irá até a casa do vizinho, enquanto o filho fica em seu estúdio, tocando bateria a todo vapor. Tudo porque Nuno planeja gravar um CD em casa, com sessões de música durante a madrugada. "Quero saber se vai incomodar, porque eu nem conseguiria gravar direito se ficasse preocupado com isso", conta.
Por incrível que pareça, em vez de incomodar, é ele quem fica incomodado com uma obra ao lado da sua casa. "O peão ficou com bronca minha, porque eu reclamei duas vezes. Agora ele bate forte com a marreta até eu acordar. Quando eu acordo, ele pára." (FERNANDA CASTELLO BRANCO)


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