São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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Em épocas distintas, mãe e filha fizeram denúncia

DA REPORTAGEM LOCAL

Lado a lado, mãe e filha falam ao mesmo tempo. Juntam detalhes de duas histórias. E falam com a mesma revolta: filhos de ambas foram vítimas de violência policial. Um morreu e o outro, oito anos depois, foi torturado, recebeu choques elétricos e perdeu um dos dedos da mão.
Em épocas diferentes, elas superaram o medo e saíram à rua para denunciar. O tempo passou, o resultado da denúncia agrada mais a uma do que a outra, mas as lembranças provocam as mesmas reações de revolta em mãe e filha.
Geralda Conceição Costa, 72, é mãe de um dos 111 presos mortos no episódio conhecido como massacre do Carandiru. Seu filho já deveria estar solto quando a Polícia Militar invadiu a Casa de Detenção, em 1992, para conter uma rebelião dos presos.
Apesar da idade, ela participou de mobilizações para pedir a punição dos culpados -só o coronel Ubiratan Guimarães, que comandou a operação e hoje é deputado estadual pelo PTB, foi condenado, mas recorre da decisão em liberdade.
Maria do Carmo Pereira, 49, saiu à rua para denunciar a tortura sofrida por seu filho Marcelo Costa Pereira, então com 19 anos, em um posto comunitário da Polícia Militar no Jardim Ranieri (zona sul de São Paulo). Em plena tarde do dia 10 de janeiro de 2000, seu filho levou socos e pontapés, teve um saco plástico enfiado na cabeça para provocar asfixia e sofreu choques elétricos.
Os PMs queriam que ele confessasse a morte de um colega, ocorrida dias antes. Ele era inocente.
Na sessão de tortura, os fios elétricos foram ligados aos seus anéis. Preso e sem socorro adequado, o filho de Maria do Carmo teve um dedo amputado.
"Sei que muitas pessoas dão razão [à tortura]. Mas é porque isso não ocorre na família deles. Eles não sabem o que estão falando", afirmou Maria do Carmo, ao ser informada sobre o resultado da pesquisa Datafolha.
Sentadas lado a lado no sofá, em uma casa simples localizada em um das regiões mais violentas da capital paulista, Geralda e Maria do Carmo discordam apenas do resultado das suas denúncias.
Geralda é mais pessimista. "O que adiantou? Ninguém está preso", questionou, referindo-se ao massacre do Carandiru. A revolta aumenta ainda mais quando ela fala da ação de indenização contra o Estado, que ainda não teve decisão 11 anos depois das mortes.
Questionada se já conseguiu superar o episódio, Geralda diz que guarda até hoje o telegrama que trouxe a notícia da morte do filho.
Maria do Carmo também guarda todos os documentos sobre a situação judicial do filho. Depois de 41 dias preso, apesar de inocente, ele voltou para a cadeia meses depois, agora pelo roubo de um carro. "Como se reabilitar com a revolta que ele sentia cada vez que olhava para a mão? Espero que um dia ele consiga controlar essa revolta", disse a mãe.
Com a nova prisão, ela disse que ficou sabendo como os PMs da região passaram a apelidar seu filho. "Eles falaram: prendemos o "19 dedos", prendemos o "19 dedos."
Maria do Carmo denunciou o caso à imprensa, depôs na polícia. "Quando a tortura aconteceu, veio à minha cabeça o que aconteceu com meu irmão. Não podia ficar calada", afirma. Hoje, diz ter orgulho do que fez. Dois PMs foram condenados em primeira instância e o tratamento dado pelos policiais militares aos moradores de seu bairro, segundo ela, melhorou.
"Se hoje os policiais parecem mais educados, é porque alguém denunciou. Se a gente se calar, vai ser muito pior", disse Maria do Carmo. (GP)


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