São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2000

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ESPAÇO URBANO
Obra de geógrafo mostra uso do maior cemitério da cidade como área de lazer de população de baixa renda
Livro revela o Vila Formosa como parque

DA REPORTAGEM LOCAL

A "vida social" dos cemitérios públicos, noturna ou diurna, não é novidade para o geógrafo Eduardo Coelho Morgado Rezende, 29. Vizinho do cemitério da Vila Formosa desde criança, ele e seus amigos faziam do espaço a área de lazer que falta ao bairro.
Com base na experiência, Rezende escreveu o livro "Metrópole da Morte Necrópole da Vida" (Carthago Editorial, 108 págs.), resultante do trabalho de conclusão do curso de geografia da USP (Universidade de São Paulo).
O livro será lançado na próxima sexta-feira, na casa noturna Madame Satã, em São Paulo. Agora, Rezende prepara a tese de mestrado com tema idêntico.
"O cemitério é um dos poucos espaços da cidade em que não há o consumo dirigido, que rege o lazer capitalista. Há uma cultura própria, paralela ao dia-a-dia dos sepultamentos", diz.
O trabalho do geógrafo trouxe à tona um universo pouco conhecido da população, cercado de histórias curiosas.
Longe da fiação pública, as crianças do bairro procuram o cemitério da Vila Formosa para empinar pipas. O local é também o predileto dos baloeiros da cidade.
Os umbandistas, os catadores de resina e os moradores de rua fecham um ciclo próprio.
Enquanto os religiosos buscam o local, às segundas e sextas-feiras, para fazer oferendas aos seus ídolos, os catadores e mendigos alimentam-se das comidas e bebidas dos despachos.
A Folha percorreu o cemitério durante duas horas, acompanhada de Rezende. Na ocasião, Antônio Brito de Lima, 34, recolhia uma galinha preta, ainda viva, e mais farofa e champanhe. "É só de vez em quando que eu como comida de macumba", disse.
Regina Maria da Silva, 43, mulher de Brito, preparava a água para cozinhar a galinha. "Tenho cinco filhos e sempre comi essa comida. É uma judiação, mas nunca me fez mal. Às vezes pego pente e perfume bom", afirmou.
Joel Luiz, 49, esticava os braços em uma cova para pegar a aguardente de um despacho.
Segundo a administração do cemitério, Brito receberá a visita de um pesquisador do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Isso porque o Vila Formosa é sua casa há dois anos.
Havia outros 20 catadores no local, que, como Brito, recolhem a resina derretida das velas. Vendem por R$ 0,40 o quilo, em pequenas fábricas da região. "Às vezes dá dinheiro, mas, em outras, você tem de ir a vários cemitérios para conseguir um bom peso", declarou Valdir Rodrigues, 58.

Privilégio
Todos narraram histórias de brigas de gangues e traficantes, que vêm ao cemitério à noite.
Segundo Brito, os umbandistas são os únicos privilegiados. Podem entrar no local após o fechamento, com a conivência de vigias. "Essa é uma questão cultural, às vezes difícil de controlar. Punimos quando sabemos", afirma José Blota Neto, superintendente do Serviço Funerário Municipal.
Vander dos Santos, "filho de fé" e coordenador do site "Umbanda Brasil", afirma que o cemitério é sagrado para os umbandistas.
"Para os encarnados (sic), o que fazemos pode parecer falta de respeito, mas devemos aprender que este horário é apenas uma referência para nós, encarnados, só para informar que os portões do cemitério têm um horário para abrir e outro para fechar", disse.
Outros grupos frequentam o Vila Formosa além desses. São crianças atraídas pelas amoreiras, que, nesta época, ficam carregadas de frutos, ou ainda ciclistas e praticantes de cooper.
Há os que procuram os "milagreiros", pessoas mortas a quem se atribui curas e solução de problemas. Segundo Rezende, são cerca de 50 em São Paulo, pessoas como o compositor Adoniran Barbosa, no cemitério do Brás, e a menina Débora, no Vila Formosa.
Morta esquartejada pela madrasta em 83, aos 4 anos, Débora ocupa hoje a sepultura de nš 666 do Vila Formosa, que vive cercada de flores, balas, pedidos escritos em papel e fotos. "São milagreiros espontâneos, surgem sem nenhum controle. Às vezes um, dois anos depois da morte", diz.
Do túmulo de Débora, os moradores de rua não pegam nada. "Tadinha dela, né?", diz Brito.
"Há um controle maior nos cemitérios mais refinados, mas, aqui, como disciplinar alguma coisa?", questiona Rezende, para quem os cemitérios "sempre atrairão o fascínio ou a repulsa" das pessoas. "Nós somos descontínuos, e a morte, expressa nesses túmulos todos, é a continuidade que buscamos", afirma.


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