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ESPAÇO URBANO
Obra de geógrafo mostra uso do maior cemitério da cidade como área de lazer de população de baixa renda
Livro revela o Vila Formosa como parque
DA REPORTAGEM LOCAL
A "vida social" dos cemitérios
públicos, noturna ou diurna, não
é novidade para o geógrafo
Eduardo Coelho Morgado Rezende, 29. Vizinho do cemitério da
Vila Formosa desde criança, ele e
seus amigos faziam do espaço a
área de lazer que falta ao bairro.
Com base na experiência, Rezende escreveu o livro "Metrópole da Morte Necrópole da Vida"
(Carthago Editorial, 108 págs.),
resultante do trabalho de conclusão do curso de geografia da USP
(Universidade de São Paulo).
O livro será lançado na próxima
sexta-feira, na casa noturna Madame Satã, em São Paulo. Agora,
Rezende prepara a tese de mestrado com tema idêntico.
"O cemitério é um dos poucos
espaços da cidade em que não há
o consumo dirigido, que rege o lazer capitalista. Há uma cultura
própria, paralela ao dia-a-dia dos
sepultamentos", diz.
O trabalho do geógrafo trouxe à
tona um universo pouco conhecido da população, cercado de histórias curiosas.
Longe da fiação pública, as
crianças do bairro procuram o cemitério da Vila Formosa para empinar pipas. O local é também o
predileto dos baloeiros da cidade.
Os umbandistas, os catadores
de resina e os moradores de rua
fecham um ciclo próprio.
Enquanto os religiosos buscam
o local, às segundas e sextas-feiras, para fazer oferendas aos seus
ídolos, os catadores e mendigos
alimentam-se das comidas e bebidas dos despachos.
A Folha percorreu o cemitério
durante duas horas, acompanhada de Rezende. Na ocasião, Antônio Brito de Lima, 34, recolhia
uma galinha preta, ainda viva, e
mais farofa e champanhe. "É só de
vez em quando que eu como comida de macumba", disse.
Regina Maria da Silva, 43, mulher de Brito, preparava a água para cozinhar a galinha. "Tenho cinco filhos e sempre comi essa comida. É uma judiação, mas nunca
me fez mal. Às vezes pego pente e
perfume bom", afirmou.
Joel Luiz, 49, esticava os braços
em uma cova para pegar a aguardente de um despacho.
Segundo a administração do cemitério, Brito receberá a visita de
um pesquisador do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Isso porque o Vila Formosa é sua casa há dois anos.
Havia outros 20 catadores no local, que, como Brito, recolhem a
resina derretida das velas. Vendem por R$ 0,40 o quilo, em pequenas fábricas da região. "Às vezes dá dinheiro, mas, em outras,
você tem de ir a vários cemitérios
para conseguir um bom peso",
declarou Valdir Rodrigues, 58.
Privilégio
Todos narraram histórias de
brigas de gangues e traficantes,
que vêm ao cemitério à noite.
Segundo Brito, os umbandistas
são os únicos privilegiados. Podem entrar no local após o fechamento, com a conivência de vigias. "Essa é uma questão cultural,
às vezes difícil de controlar. Punimos quando sabemos", afirma
José Blota Neto, superintendente
do Serviço Funerário Municipal.
Vander dos Santos, "filho de fé"
e coordenador do site "Umbanda
Brasil", afirma que o cemitério é
sagrado para os umbandistas.
"Para os encarnados (sic), o que
fazemos pode parecer falta de respeito, mas devemos aprender que
este horário é apenas uma referência para nós, encarnados, só
para informar que os portões do
cemitério têm um horário para
abrir e outro para fechar", disse.
Outros grupos frequentam o
Vila Formosa além desses. São
crianças atraídas pelas amoreiras,
que, nesta época, ficam carregadas de frutos, ou ainda ciclistas e
praticantes de cooper.
Há os que procuram os "milagreiros", pessoas mortas a quem
se atribui curas e solução de problemas. Segundo Rezende, são
cerca de 50 em São Paulo, pessoas
como o compositor Adoniran
Barbosa, no cemitério do Brás, e a
menina Débora, no Vila Formosa.
Morta esquartejada pela madrasta em 83, aos 4 anos, Débora
ocupa hoje a sepultura de nš 666
do Vila Formosa, que vive cercada de flores, balas, pedidos escritos em papel e fotos. "São milagreiros espontâneos, surgem sem
nenhum controle. Às vezes um,
dois anos depois da morte", diz.
Do túmulo de Débora, os moradores de rua não pegam nada.
"Tadinha dela, né?", diz Brito.
"Há um controle maior nos cemitérios mais refinados, mas,
aqui, como disciplinar alguma
coisa?", questiona Rezende, para
quem os cemitérios "sempre
atrairão o fascínio ou a repulsa"
das pessoas. "Nós somos descontínuos, e a morte, expressa nesses
túmulos todos, é a continuidade
que buscamos", afirma.
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