São Paulo, segunda, 2 de março de 1998

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COTIDIANO IMAGINÁRIO
Causa perdida

MOACYR SCLIAR

"Guerrilheiro falso mente e consegue R$ 1.000"(Brasil, 22 de fevereiro)

No começo ele era um simples vigarista e tinha disso clara consciência: tudo o que pretendia era dar um golpe. Em realidade, modesto. Nada mais queria do que viver bem por algum tempo. Teve sorte: encontrou o pessoal de uma ONG que estava em busca de uma causa e o convidou para uma reunião. Lá foi ele, vestindo uma espécie de uniforme de combate. Num discurso repassado de emoção, descreveu a terrível situação de sua pátria, onde as massas passavam fome e os ricos contavam com o apoio de um governo alienado e complacente.
-Precisamos tomar o poder - disse, com seu acentuado sotaque hispânico - ,mas, para isso, faltam-nos armas, suprimentos.
Foi saudado com aplausos, até porque era uma figura impressionante, com sua cabeleira revolta, sua barba, seus olhos brilhantes. De imediato organizou-se uma coleta que rendeu R$ 1.000. Ele poderia ter ficado nisso, mas decidiu voltar à ONG. Na reunião seguinte, um mês depois, foi muito mais explícito: com o auxílio de mapas, descreveu o avanço das forças de libertação nacional:
-O povo está aderindo em massa ao nosso exército popular - concluiu, triunfante - A vitória será nossa - desde que vocês nos ajudem.
Nova coleta foi feita, mas desta vez rendeu menos: R$ 500. O guerrilheiro inquietou-se. Provavelmente não estava sendo tão convincente quanto deveria ser. Começou a ler livros sobre guerrilhas, estudou táticas e estratégias. Montou um plano que, seguindo etapa por etapa, levaria à conquista do poder - em qualquer lugar.
Todas as semanas voltava à ONG. Todas as semanas dava notícias detalhadas do avanço de suas forças. A cada semana, menos gente o ouvia. E a cada semana a suspeição aumentava. O que o deixava indignado: o heróico esforço que fazia não estava sendo compreendido, mas sentia também que sua luta era inútil, que a causa estava perdida. De modo que, quando o prenderam, não protestou. Disse apenas - e era mais um queixume do que qualquer outra coisa:
-Logo agora - disse, e o tom dessa vez era de queixume - que eu estava pronto para invadir o palácio presidencial.
Os policiais o levaram. Ninguém perdoa o líder de uma causa perdida.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.




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