São Paulo, quinta, 2 de julho de 1998

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INCULTA & BELA
"Nossa língua é os pés'

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha


Terminada a partida do Brasil contra a Noruega, começaram as inevitáveis conversas sobre os motivos do fracasso brasileiro.
Jogadores e comissão técnica resolveram fazer uma reunião para que todos pudessem pôr tudo em pratos limpos, lavar a roupa suja.
Depois da reunião, o capitão Dunga concedeu entrevista. Começou dizendo: "Nossa língua é os pés". E acrescentou: "Não adianta ficar falando. Nosso negócio é jogar."
Como meu negócio não é jogar -é discutir casos da língua-, vamos analisar o que disse Dunga -sobretudo a concordância do verbo ser.
Lembro-me de uma propaganda de uma fábrica de peças para automóveis que dizia: "No meio da chuva, o coração do seu carro são as palhetas e limpadores..."
Se você parar na palavra "carro" e pedir a alguém que complete a frase com uma forma qualquer do presente do indicativo do verbo ser, certamente a resposta será "é": "No meio da chuva, o coração do seu carro é..."
E essa concordância seria correta se o que viesse depois também estivesse no singular. "O coração do seu carro é o motor", por exemplo.
As gramáticas dizem que, quando o verbo ser une nome de coisa no singular (coração) e nome de coisa no plural (palhetas e limpadores), prevalece o plural, independentemente da ordem.
No caso da propaganda, o plural é expresso por palhetas e limpadores ("são as palhetas..."). Mas -convenhamos- essa concordância causa um certo desconforto, justamente porque o que se espera é a concordância com o que veio antes.
Sob essa ótica, Dunga errou. Deveria ter dito "Nossa língua são os pés."
Uma vasculhada em boas gramáticas nos põe em alerta. Apesar de recomendarem o plural, vários autores dizem que, em casos semelhantes, não faltam exemplos em que o verbo ser aparece no singular.
Muitos escritores optam pelo singular, quando querem enfatizar o que é expresso pelo singular. Isso daria crédito à concordância de Dunga.
E é aí que a roda pega. Se Dunga queria dizer que o negócio de boleiro são (ou "é"?) os pés, era mais do que necessário enfatizá-los.
Ao conjugar o verbo no singular, Dunga -ato falho?- mostrou que não acredita muito nos pés da moçada escalada por Zagallo.
Por todos os motivos -e para a felicidade geral da nação-, corrijamos a concordância do capitão: "Nossa língua são os pés." É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

E-mail:inculta@uol.com.br


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