São Paulo, segunda-feira, 02 de agosto de 2004

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MOACYR SCLIAR

O monstro de olhos verdes

Detetive segue marido por R$ 300. Casos conjugais representam 60% das investigações. Brasil, 25.jul.2004

Como muitas mulheres de meia-idade, ela estava convencida de que o marido a traía. Mas, diferente de muitas mulheres de meia-idade, não tinha qualquer prova dessa pretensa infidelidade, ao contrário. Casados há 27 anos, ele poderia ser considerado o esposo exemplar. Depois do trabalho voltava direto para casa, nunca saía às noites, não viajava, passava o fim de semana com a família: a mulher, os três filhos, um dos quais, já casado, lhe dera netos. E até procurava-a para fazer amor; ela, torturada pelo ciúme, é que se recusava a tal. Ele mostrava-se compreensivo: você deve estar passando por uma fase difícil, mas pode contar com meu apoio. Essa tolerância só fazia crescer as suspeitas dela: se o marido podia dar-se ao luxo de mostrar-se bonzinho, era porque estava aprontando e se sentia culpado. A amiga e confidente, Ligia, não tinha dúvida de que aquilo era coisa de cuca:
- Você está tendo fantasias, minha cara. É ruim para você, é uma injustiça para seu marido. Procure um terapeuta. É o melhor que você pode fazer.
Ela não procurou um terapeuta. Procurou um detetive, cujo discreto anúncio vira em uma revista, e cuja especialidade era exatamente essa, infidelidade conjugal. O detetive recebeu-a em seu escritório. Era um homem ainda jovem, simpático, sedutor mesmo. Convidou-a a sentar num amplo sofá, ouviu com atenção a história; quando ela lhe perguntou se aquilo tudo seria produto de uma imaginação perturbada, limitou-se a sorrir: até os paranóicos às vezes são perseguidos. Em seguida fez o que os detetives costumam fazer: indagou informações acerca do marido, pediu uma foto, que examinou com atenção. Combinaram o pagamento, que não era exagerado; ele disse que faria um relatório semanal de sua investigação.
Nas semanas seguintes, ela passou a viver em função desses relatórios, que aguardava com ansiedade e que resultaram em um misto de decepção e de alívio. Segundo o detetive, as suspeitas eram infundadas; o marido comportava-se de forma exemplar e era até conhecido entre os colegas de escritório como modelo de virtude. A senhora está me pagando para nada, garantiu. E advertiu-a contra o ciúme, o monstro de olhos verdes.
- Como os meus -acrescentou, rindo: de fato, ele tinha olhos verdes. Belos olhos verdes de um brilho fascinante. Ela hesitou um instante e depois se jogou nos braços dele.
Têm se encontrado uma vez por semana, no escritório dele, onde o sofá substitui perfeitamente uma cama. Ela, feliz, não nutre mais ressentimentos nem suspeitas. Já o detetive tem uma preocupação: o que fará se o marido da amante contratá-lo para uma investigação? Mas confia em sua habilidade: tem preparado um discurso imaginário, advertindo esse possível cliente contra aquele espectro que inferniza a vida dos casais, o famoso monstro de olhos verdes.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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