São Paulo, sábado, 3 de outubro de 1998

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DATA VENIA

Prostituição infantil

SILVIA PIMENTEL

Ante o aumento da prostituição infantil em nosso país, apontada pela ONU como uma das maiores do mundo, nossa primeira reação é de perplexidade e lástima, ainda maiores quando constatamos que ela costuma estar associada à miséria e à fome. Dada a complexidade deste mundo globalizado, muitos vêem essa realidade (o que é absolutamente inaceitável) como fatalidade, alegando a impossibilidade de agir contra essa cruel distorção de sexualidade e poder.
Mas importa indagar o que se pode fazer; o que o Estado e a sociedade civil podem criar como estratégias para sua superação.
A imprensa tem feito sua parte, denunciando. Na pesquisa "Olhar sobre a Mídia", promovida pela Comissão de Cidadania e Reprodução, fica evidente a crescente atenção da mídia ao abuso sexual e à prostituição de crianças e adolescentes. Há todo um empenho do governo federal, pela Secretaria de Direitos Humanos e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, na sua erradicação.
Porém muito mais é necessário, já que participam dessa infâmia amplos setores da sociedade, inclusive pessoas instruídas. A Folha de 20/8, em texto intitulado "Goiânia denuncia rede de 700 meninas prostitutas", refere-se a leilões e bingos de virgens entre 9 e 14 anos. São garotas pobres da periferia de Goiânia e do interior de Goiás, que fazem "programas" com preços de R$ 2 a R$ 5.000 -nesse caso, "pacotes" de uma semana com virgens, obtidos em leilões e bingos de luxo.
Em face dessa verdadeira miséria da condição humana, vale a pena recordar alguns avanços da principiologia dos direitos humanos. São direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais; caracterizam-se por universalidade, indivisibilidade (não havendo hierarquia) e interdependência (se um direito é violado, todos são).
A violência contra a mulher é uma agressão aos direitos humanos -física, sexual e psicológica. A criança deve crescer num ambiente familiar, em clima de amor e paz, ser preparada plenamente para uma vida individual na sociedade e educada no espírito dos ideais proclamados na Carta das Nações Unidas -em particular, paz, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade.
A experiência do movimento de mulheres colocou às claras direitos articulados não só no espaço público, mas vivenciados nos diferentes planos da vida cotidiana, ressaltando o espaço privado. O problema da violência doméstica contra a mulher e a criança só passou a ter visibilidade nos anos 60. Até então, não havia nenhum serviço para atender as vítimas, e as punições eram raras, mesmo nos países industrializados.
Estamos apenas iniciando um processo de sensibilização e conscientização social dessa problemática. Políticas públicas e ações concretas em todas as instâncias governamentais (federal, estaduais e municipais) e nos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) são necessárias, mas não bastam: é imprescindível que segmentos organizados da sociedade encontrem sua forma de agir e interferir nesse processo. E que ninguém se conduza como agente perpetrador dessas iniquidades.
São utópicas estas linhas? Pois que sejam. Sem utopia, não há mudança; sem transformações rumo aos direitos humanos de todos e todas, ficaremos neste estágio desumano da humanidade, no qual a barbárie é a grande tônica.


Silvia Pimentel, 58, é professora de filosofia do direito na PUC-SP, coordenadora nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, membro do conselho diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e conselheira do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo



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