São Paulo, Quarta-feira, 03 de Novembro de 1999
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Morar sem infra-estrutura aumenta chance de ser morto

OTÁVIO CABRAL
da Reportagem Local

Ricardo Francisco de Almeida foi assassinado aos 16 anos na favela da Vila Prudente (zona leste de São Paulo). Teve o mesmo destino de seu pai e de seu irmão mais velho, que também passaram a vida em barracos e morreram baleados na mesma favela.
A história da família Almeida é um exemplo de que morar mal, em favelas e cortiços insalubres e sem infra-estrutura, muitas vezes determina a causa da morte que aparecerá no atestado de óbito do cidadão: homicídio. É o que revelam três pesquisas feitas por urbanistas e conseguidas com exclusividade pela Folha. Não se pode levar a conclusão como regra geral. Mas quem vive mal tem muito mais chance de ser assassinado do que quem mora em locais com boas condições urbanas.
"A violência está diretamente ligada ao problema de moradia", afirma a arquiteta Raquel Rolnik, professora da PUC-Campinas e diretora-técnica do Instituto Polis, uma organização não-governamental voltada ao estudo de problemas urbanos. "A exclusão territorial faz indivíduos, famílias e comunidades particularmente vulneráveis, abrindo espaço para a violência e o conflito", explica.
Raquel é autora da pesquisa "Exclusão Territorial e Violência no Estado de São Paulo", que relaciona numericamente os índices de violência urbana com condições de moradia precária.
A pesquisa abordou 118 municípios com mais de 20 mil moradores no Estado e as porcentagens das casas com infra-estrutura básica completa. Como condições básicas, ela considerou fornecimento de água, luz, esgoto, iluminação, pavimentação, coleta de lixo, o material de que é feito a casa, se ela conta com banheiro e o número de habitantes por cômodo.
Com os dados, Raquel montou um índice de exclusão social, expresso pela porcentagem de domicílios em situação adequada. Em seguida, ela cruzou esse índice com o número de homicídios a cada 100 mil habitantes. "O resultado é claro: quanto mais exclusão social, mais violência", conclui Raquel Rolnik.
Entre os 28 municípios com pior situação de moradia, 25 possuem os piores indicadores de violência. O oposto também é verdadeiro. Entre as 21 cidades em melhor situação de habitação, 14 são as menos violentas.
Exemplos não faltam. Embu-Guaçu, na Grande SP, é a cidade com pior situação de moradia do Estado, com apenas 1,3% das casas em situação adequada. É também a sétima cidade mais violenta, com 63,69 homicídios por 100 mil habitantes. No extremo oposto, pode ser destacado Catanduva, município com 105 mil habitantes, que tem 66% dos domicílios em boas condições e registrou apenas dois homicídios no ano passado, a menor taxa do Estado.
A cidade de São Paulo está em um ponto intermediário na tabela. Tem pouco mais da metade das casas em situação adequada. E está em nono lugar no ranking de homicídios. Mas, devido ao tamanho da cidade, há duas situações distintas. É o que mostram outros dois estudos.
Um deles, coordenado pela professora Sueli Schiffer, do Departamento de Tecnologia da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), relaciona o mapa de homicídios da capital com a distribuição de renda média e o número de pessoas por cômodo em cada domicílio. "As áreas de maior renda têm menos homicídios. E quanto maior o número de pessoas por cômodo no bairro, mais violento ele é", relata Sueli.
O outro levantamento sobre a capital é chamado "Crescimento Urbano e Violência", de autoria da arquiteta Maria Ruth Amaral de Sampaio, diretora da FAU.
Ela relaciona o crescimento urbano com violência. Apesar de a população da cidade ficar estável nos últimos anos, regiões como Brasilândia, Guaianases e Jardim Ângela registram crescimento de até 4% ao ano. É justamente nessas regiões que ocorre o maior crescimento da violência.

Abandono
Especialistas em violência concordam que condições precárias de habitação estão relacionadas com a criminalidade, mas culpam a ausência de políticas públicas para essas regiões para a proliferação da violência.
"Nesses centros urbanos recém-ocupados não há oferta de emprego nem opções de lazer. As pessoas desempregadas passam o dia vagando pelas ruas e acabam bebendo ou sendo cooptadas pelo tráfico de drogas, o que fomenta o crime", afirma o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência.
O sociólogo mexicano Rafael Ruiz Aharrel, que fez um estudo relacionando moradia e violência na Cidade do México, considera que um grande agrupamento humano em um pequeno espaço, como em favelas e cortiços, é um fator que favorece a proliferação da criminalidade, principalmente dos crimes contra a pessoa.
"Quando se multiplica o número de pessoas que vive em uma área, os conflitos e os crimes aumentam na mesma proporção. Isso é uma consequência direta da aglomeração e da falta de privacidade", argumenta Aharrel, baseado na conclusão de seu estudo.
A falta de privacidade também é o argumento usado pela socióloga Nanci Cardia, do Núcleo de Estudos da Violência. "A vida na favela é insalubre, as famílias vivem sem privacidade, o esgoto de um invade o barraco do outro. Tudo isso gera violência. As pessoas vivem às próprias custas, sem auxílio do poder público, tudo é decidido no livre-arbítrio", teoriza.

Mulheres

Já Maria Ruth, da FAU, destaca outro aspecto que fomenta a violência nas favelas. Segundo ela, nesses locais, cerca de 25% das famílias são chefiadas por mulheres viúvas ou separadas, que cuidam sozinhas dos filhos e da casa e ainda trabalham fora. "As crianças passam os dias sozinhas em casa, tornando-se vítimas potenciais dos traficantes de drogas e quadrilhas de assaltantes", analisa Maria Ruth.
Para mudar esse quadro, o principal meio é o investimento público em infra-estrutura e reurbanização de favelas e cortiços.
Um bom exemplo é o caso de Diadema (Grande SP), o local mais violento do Estado e do país, com 140 homicídios a cada 100 mil habitantes.
Mas, em 1983, a prefeitura, administrada pelo PT, passou a investir até 8% do Orçamento municipal anual em reurbanização de favelas. Até 1996, 121 das 197 favelas existentes na cidade foram recuperadas, com asfalto, iluminação pública e rede de esgoto.
A cidade chegou a ter mais de 90% das casas inadequadas. Hoje, o índice está em 31,8%. Com o investimento em infra-estrutura, a criminalidade caiu. Em 95 e 96, a cidade perdeu o título de mais violenta do Estado para Embu.
"A principal preocupação da prefeitura era investir em urbanização para dar condições melhores de vida, de educação e saúde para a população favelada", afirma o deputado estadual José de Filippi Júnior (PT), prefeito de Diadema entre 93 e 96. "Mas, diretamente, houve uma redução dos níveis de criminalidade, mostrando que os dois problemas estão relacionados."
Desde 97, com a mudança de comando no governo municipal, o investimento em reurbanização caiu para 2% do Orçamento. Diadema voltou a ser a mais violenta de São Paulo. O atual prefeito, Gilson Menezes (PSB), não quis dar entrevistas sobre o assunto.

Heliópolis
Outro exemplo dos efeitos da urbanização é a favela de Heliópolis, a maior de São Paulo, com 80 mil habitantes. Uma parte da favela está urbanizada e tem um crescimento menor. Outra, composta de barracos à beira de córregos, não pára de crescer. Consequência: a violência se concentra onde não há urbanização, onde a condição de vida é pior.
A empregada doméstica Maria José Oliveira conta uma história que exemplifica a teoria. Seu filho mais velho, Valdeci, morou até 1996 com a família, em uma casa de alvenaria na parte urbanizada de Heliópolis, com asfalto, coleta de lixo, iluminação pública, água e esgoto. Trabalhava e nunca havia sido preso.
No final de 96, após o casamento, mudou-se para um barraco às margens de um córrego, também em Heliópolis. Envolveu-se com o tráfico de drogas, deixou o trabalho, foi preso duas vezes. Acabou assassinado com dois tiros quando saía de casa. "Briguei para ele não ir morar no barraco. Sabia que não iria dar certo. Na favela, não tem lei", desabafa Maria José.


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