São Paulo, sábado, 4 de julho de 1998

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LETRAS JURÍDICAS
Direitos humanos no século 21

WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

As oposições americanas criticaram vigorosamente a visita do presidente Bill Clinton à China porque representaria uma forma de apoio a um governo que tem desrespeitado, na visão estadunidense, os direitos humanos. Verifico que, na espécie, o santo nome do direito foi tomado em vão, com grande hipocrisia, porque é evidente que, para qualquer governo, republicano ou democrata, dos Estados Unidos ou de outra nação, a possibilidade de atrair clientela com 1,3 bilhão de candidatos potenciais à compra de produtos exportáveis é mais importante que os direitos humanos.
Os direitos humanos estão entre as preocupações novas, surgidas nesta metade do século, às quais, antes, não se dava muito realce. São difusos, coletivos, interessando pessoas nem sempre (ou até raramente) identificáveis, cuja proteção transcende os sistemas de governo. Contudo, a avaliação serena dos direitos humanos, praticados nas democracias e nas ditaduras, destaca graus diferentes. Naquelas, críticas podem ser feitas; os meios de comunicação fazem denúncias. Os responsáveis são estimulados a preservar, no mínimo, sua boa aparência ante os votantes. Mas, mesmo nas democracias, há interesses econômicos predominantes. A visita de Clinton dá o exemplo mais atual disso. A intensa relação comercial com a China é compatível com os interesses comerciais americanos (tanto no pólo exportador quanto no importador), ainda que o regime comunista chinês insista em anexar Taiwan, persista em restringir a ação do Dalai Lama, ainda que provoque episódios como os da praça da Paz Celestial. Evidente que a hipocrisia não pode ir a ponto de esquecer, aqui e ali, a forte referência a que essas coisas devem mudar, mas, mudem ou não mudem, o comércio continuará a ser incentivado, de modo que a imensa clientela não caia em outras mãos.
O ocasional exemplo da visita de Clinton pode ser desdobrado quanto a outros fatos e países. Tem suficiência para permitir duas dúvidas, pelo menos, no espírito do leitor. A primeira: Qual o papel dos operadores do direito em face da hipocrisia (ou, se quiserem, do utilitarismo) dos pronunciamentos lamentosos, ante a realidade das grandes transações comerciais? A segunda: Continuaremos, no século 21, no mesmo nível, ou acontecerá o predomínio dos direitos humanos sobre outros interesses?
Minha resposta para a primeira pergunta é que o operador do direito não é extraterreno, alheio aos fenômenos bons e maus da vida na sociedade mundial. O conflito entre certos valores materiais, os direitos humanos e a ética correspondente deve priorizar soluções legais preservadoras destes, ainda que passando por transições e transformações até a satisfação dos objetivos jurídicos ou sua melhora substancial.
A resposta da segunda pergunta consiste na convocação do maior número de pessoas, com compreensão e visão de futuro bem marcada, mostrando, por exemplo, ser melhor não pagar tão barato pelos produtos chineses (que fazem enorme sucesso comercial nos Estados Unidos, onde ajudam a baixar a inflação), mas preservar mão-de-obra contra remuneração vil, ainda que o custo aumente. Comprar produtos importados sem considerar a relação entre baixo preço e a mão-de-obra muito mais barata do que a do próprio país corresponde a mergulhar na mesma hipocrisia geral, tirando valor da sustentação ruidosa, mas sem substância, dos direitos humanos agora e no futuro.



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