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São Paulo, sábado, 04 de outubro de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

Quinze anos e uma colcha de retalhos

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Nos meses que precederam 5 de outubro de 1988, a principal crítica feita nesta coluna aos constituintes voltou-se contra a adoção de uma Constituição cheia de pormenores não-constitucionais. Compreendia-se, naquele momento histórico, a preocupação de criar obstáculos a todos os maus efeitos da ditadura militar sobre os direitos dos cidadãos em face do Estado. O nobre objetivo era assegurar que as restrições à liberdade não retornassem. A boa intenção, como é frequente, não bastou para que o resultado ideal fosse alcançado. Mais de 200 artigos, logo aumentados, no corpo principal, seguidos por várias dezenas de outros no ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (igualmente acrescidos de novos textos), mostraram que o "pormenorismo" não era bom. Sem falar no número de parágrafos e incisos esparsos, criados para impedir que a Carta ultrapassasse o esdrúxulo número de mil artigos.
Também aqui se criticou a existência de regras simplesmente programáticas, ideais e impraticáveis, ruins porque, não sendo obedecidas ou obedecíveis, prejudicavam a respeitabilidade da Lei Maior, como os juristas a chamam. Para dar um só exemplo, basta ler o artigo 3º, que considera objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza e da marginalidade, além da promoção do bem de todos. O artigo 192, que limitava os juros a 12% ao ano, dormiu quase 15 anos antes de ser revogado, antecipando o destino do artigo 171 (privilegiava a indústria nacional). Não se compatibilizavam com a dura realidade política e econômica, embora fossem voltados para boas finalidades.
Curiosamente, porém, a revisão autorizada pelo ADCT após cinco anos de vigência frustrou-se há dez anos. Temia-se que as forças políticas que haviam dado suporte aos governos militares aproveitassem as emendas revisionais para a tentativa de um retorno ao passado. Depois se passou ao exagero oposto: chegou-se a emendar duas vezes o mesmo dispositivo no espaço de um ano.
Qual a lição a tirar destes três lustros? A primeira é positiva apesar dos defeitos apontados: a democracia se instalou no Brasil durante um período histórico muito importante. Um presidente sofreu impeachment, outro conseguiu reeleger-se, e um torneiro mecânico, feito líder político dos mais respeitáveis, foi eleito presidente da República. Tudo sem crises institucionais.
Já se tem falado na conveniência de uma revisão efetiva destinada a eliminar a falta de organicidade gerada pelas muitas emendas. A necessidade reconhecida esbarra, ainda uma vez, no temor de ver sacrificadas as qualidades democráticas da Carta sob a desculpa de se corrigirem defeitos existentes. Entre eles, nenhum foi mais expressivo que o de permitir o abuso na edição de medidas provisórias, cuja utilidade indiscutível terminou transformada em descalabro constante, muito criticado pelos líderes do atual governo enquanto seus partidários não ocuparam o poder.
O grande efeito histórico da Constituição foi ser documento respeitável ao qual os cidadãos começaram a se referir apesar de suas falhas como instrumento básico de toda a estrutura jurídica que garante seus direitos. A qualidade suficiente e os 15 anos me levarão a dedicar a coluna, durante outubro, à Constituição e às situações criadas por suas aplicações corretas ou defeituosas.


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