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ARTIGO
"Foram os 30 minutos mais assustadores da minha vida"
Joe Sharkey, repórter do "The New York Times" que estava no jatinho
que se chocou com o Boeing da Gol, conta em artigo como foi o acidente
JOE SHARKEY
DO "NEW YORK TIMES"
ERA UM VÔO confortável, sem sobressaltos.
Com as cortinas fechadas, eu estava relaxando em
minha poltrona de couro, a bordo de um jato executivo de US$
25 milhões que voava 11 quilômetros acima da vasta floresta
tropical amazônica.
As sete pessoas que ocupavam o jato com capacidade para
13 passageiros estavam repousando, sem conversas.
De repente, senti um terrível
abalo e ouvi um estrondo alto,
seguido por um silêncio perturbador. Apenas o zumbido das
turbinas era audível.
E então as duas palavras que
nunca vou esquecer: "Fomos
atingidos", disse Henry Yandle,
um passageiro que estava sentado na poltrona do corredor
perto da cabine de pilotagem
do Embraer Legacy 600.
"Atingidos? O que nos atingiu?", eu imaginei. Ergui a cortina. O céu estava claro, o sol
começava a cair. A floresta se
estendia interminável. Mas lá,
na ponta da asa, vi os destroços,
mais ou menos um metro de
metal retorcido, na posição em
que o winglet, de um metro e
meio, costumava estar.
E assim começaram os 30
minutos mais assustadores da
minha vida. Nos dias que se seguiram, ouvi de muita gente
que ninguém sobrevive a uma
colisão aérea.
Eu tive muita sorte por ter
sobrevivido e só descobriria
mais tarde que os 155 passageiros a bordo de um Boeing 737,
que fazia uma rota doméstica e
nos havia atingido, não tiveram
a mesma sorte.
Os investigadores de acidentes ainda estão tentando descobrir o que aconteceu exatamente. Nosso jato, bem menor,
se manteve no ar enquanto o
Boeing 737, mais longo, largo e
mais de três vezes mais pesado,
despencou do céu em mergulho vertical.
Mas às 15h59 da última sexta-feira, tudo que eu conseguia
ver, tudo que eu sabia era que
parte da asa havia desaparecido. E estava claro que a situação piorava rapidamente. A
parte frontal da asa estava perdendo rebites, e o revestimento
metálico estava sendo arrancado da estrutura.
Para meu espanto, ninguém
entrou em pânico. Os pilotos
começaram calmamente a examinar os controles e os mapas,
à procura de um aeroporto nas
imediações, ou a olhar pela janela em busca de um local para
um pouso de emergência.
Mas os minutos se passavam,
e o avião continuava a perder
velocidade. Àquela altura, todos sabíamos o quanto a situação era ruim. Eu imaginava o
quanto uma aterrissagem forçada, eufemismo otimista para
queda, poderia doer.
Pensei na minha família. Não
fazia sentido pegar o celular e
tentar ligar, não havia sinal. E
enquanto nossas esperanças se
apagavam, como o sol, alguns
dos passageiros começaram a
escrever bilhetes para os cônjuges e familiares e a guardá-los
nas carteiras, na esperança de
que viessem a ser localizados
mais tarde.
Quando o vôo começou, as
anotações que me ocupavam
eram outras. Escrevo a coluna
semanal "On the Road", para a
seção de viagens de negócios do
"The New York Times", há sete
anos. Mas minha presença a
bordo do Embraer 600 era um
trabalho freelancer, para a revista "Business Jet Traveler".
Meus colegas a bordo incluíam executivos da Embraer
e de uma empresa de táxi aéreo
chamada ExcelAire, a nova proprietária do jato. David Rimmer, vice-presidente sênior da
ExcelAire, havia me oferecido
carona de volta aos Estados
Unidos no jatinho que sua empresa acabara de receber da
Embraer.
E o vôo começou muito bem.
Minutos antes do acidente, eu
fui à cabine conversar com os
pilotos, que disseram que o
aparelho estava apresentando
excelente desempenho. Eu verifiquei nossa altitude no altímetro: 11 mil metros.
Voltei ao meu assento. Minutos depois veio a colisão (que,
descobrimos mais tarde, também havia arrancado parte da
cauda da aeronave).
Não tivemos muito tempo
para conversar nos minutos
que se seguiram ao acidente.
Rimmer, um homem corpulento, estava encolhido no assento diante do meu, observando a asa danificada.
"É muito grave?", eu perguntei. Ele me olhou fixamente e
respondeu: "Não sei".
Percebi a linguagem corporal
dos dois pilotos. Eram como
soldados trabalhando em completa sintonia em uma situação
de perigo, exatamente como foram treinados para agir.
Pelos 25 minutos que se seguiram, os pilotos Joe Lepore e
Jan Paladino dividiram sua
atenção entre os instrumentos
e a busca por um aeroporto.
Não tiveram sorte.
Enviaram pedidos de socorro
pelo rádio, e um avião de carga
que voava em algum lugar da
região os recebeu. Não houve
contato com qualquer outro
avião, especialmente com um
Boeing 737, no mesmo espaço
aéreo.
Então, por entre as copas escuras das árvores, Lepore avistou uma pista de pouso. "Estou
vendo um aeroporto", disse.
Os pilotos tentaram contatar
a torre de controle do que, mais
tarde, descobrimos ser uma base militar escondida nas profundezas da Amazônia. Eles
manobraram o avião de maneira suave para evitar qualquer
desgaste adicional na asa danificada. Quando se aproximaram mais da pista, conseguiram
seu primeiro contato com o
controle de tráfego aéreo.
"Não sabíamos qual era a extensão da pista de pouso, ou o
que havia nela", diria Paladino,
naquela noite, na base de Cachimbo, em meio à selva.
A aterrissagem foi rápida e
árdua. Vi o esforço dos pilotos
para manter o avião sob controle devido à perda de muitos
dos comandos automatizados.
Eles conseguiram completar o
pouso com boa margem de segurança. Cambaleamos em direção à saída.
"Belo trabalho", eu disse aos
pilotos quando passei por eles.
Na verdade, inseri uma palavra
que não se pode publicar entre
"belo" e "trabalho".
"Estamos aqui para isso",
disse Paladino com um sorriso
de ansiedade.
Mais tarde, naquela noite,
jantamos e tomamos cerveja
bem gelada, na base militar. Especulamos sem parar sobre o
que poderia ter causado o impacto. Um balão meteorológico
descontrolado? Um jato de
combate abandonado pelo piloto depois de problemas em alguma manobra arrojada? Um
jato de passageiros que houvesse explodido nas proximidades,
varrendo nosso avião com destroços?
Qualquer que tivesse sido a
causa, ficou claro que passáramos por uma verdadeira colisão aérea, aquelas das quais
ninguém sobrevive.
Em um momento de humor
negro, no alojamento coletivo
onde dormimos, eu disse "talvez estejamos todos mortos, e
isso seja o inferno, reviver a experiência de virar a noite conversando e tomando cerveja, no
dormitório da faculdade".
Por volta das 19h30, Dan
Bachmann, executivo da Embraer e o único de nós que falava português, veio à mesa em
que estávamos instalados no
refeitório e nos contou o que
lhe havia sido informado no escritório do comandante. Um
Boeing 737 com 155 pessoas a
bordo estava desaparecido,
exatamente na região em que
fôramos atingidos.
Antes daquele momento, nós
estávamos brincando, rindo sobre a nossa experiência quase
fatal. Éramos os "Sete do Amazonas", sobreviventes improváveis aos quais o tempo que vivíamos não mais pertenciam.
Realizaríamos uma reunião
anual e contaríamos uns aos
outros a que dedicamos nossas
vidas. Mas em lugar disso, nós
inclinamos nossas cabeças em
um longo momento de silêncio,
interrompido pelo som de choro contido.
Ambos os pilotos, experientes na condução de jatos executivos, ficaram muito abalados.
"Se alguém deveria ter caído,
seríamos nós", repetia sem cessar Lepore, 42, de Bay Shore,
Nova York.
Paladino, 34, de Westhampton, Nova York, mal conseguia
falar. "Estou tentando me conformar com a perda de todas
essas pessoas. E dói", disse.
Yandle disse aos pilotos "vocês são heróis, vocês salvaram
nossas vidas". Eles sorriram,
desanimados. Era evidente que
o peso do que aconteceu ficaria
com eles para sempre.
No dia seguinte, a base estava
repleta de autoridades brasileiras investigando o acidente e
dirigindo operações de busca
pelo Boeing 737 perdido, o qual
um oficial me disse estar em
uma área menos de 160 quilômetros ao sul de nós, acessível
apenas para desbravadores que
abrissem uma picada na selva.
Também pudemos ver o nosso avião, que estava sendo estudado por inspetores. Ralph Michielli, vice-presidente de manutenção da ExcelAire e um
dos passageiros do vôo, subiu
comigo em um monta-cargas
para me mostrar os danos sofridos pela asa, perto do winglet
decepado.
Um painel próximo à parte
frontal da asa exibia um rombo
de mais de 30 centímetros.
Manchas escuras perto da fuselagem mostravam um vazamento de combustível. Partes
do estabilizador horizontal, na
cauda, haviam sido esmagadas,
e faltava um pedaço do elevon
esquerdo.
Um inspetor militar brasileiro que observava o avião me
surpreendeu por sua disposição de conversar, ainda que ele
não soubesse muito inglês, e eu,
português nenhum.
Ele estava especulando sobre
o que poderia ter acontecido e,
em resumo, disse o seguinte:
ambos os aviões, inexplicavelmente, ocupavam a mesma posição e altitude ao mesmo tempo. Os pilotos do Boeing 737,
que voava rumo ao sudeste,
avistaram nosso Legacy 600
que voava rumo a noroeste, para Manaus, e conduziram uma
frenética manobra de evasão. A
asa do 737, varrendo o espaço
entre nossa asa e a cauda elevada, nos atingiu duas vezes, e o
avião maior então prosseguiu
em sua espiral destrutiva.
A situação parecia impossível, reconheceu o inspetor.
"Mas acredito que seja isso que
aconteceu", disse. Ainda que
ninguém ainda saiba ao certo a
causa do acidente, três outros
oficiais brasileiros me disseram
ter sido informados de que ambos os aviões estavam na mesma altitude.
Por que eu, o passageiro mais
próximo do impacto, não ouvi o
som, o rugido de um grande
737?
Perguntei a Jeirgem Prust,
piloto de testes da Embraer. Isso foi no dia seguinte, quando
fomos transferidos da base, em
um avião de transporte militar,
para o comando da polícia de
Cuiabá, cidade cujas autoridades têm jurisdição sobre a área
de impacto e na qual pilotos e
passageiros do Legacy 600, entre os quais eu, seriam interrogados até o nascer do dia por
um comandante de polícia e
seus tradutores.
Prust pegou a calculadora e
saiu fazendo contas, computando o tempo disponível para
que eu ouvisse o rugido de outro jato se aproximando, com
os dois aparelhos voando a cerca de 800 km/h em direções
opostas. Ele me mostrou o resultado: "Uma fração de segundo". Nós dois olhamos para os
pilotos, esparramados, em pose
deprimida, em um sofá do outro lado da sala.
"Esses caras e aquele avião
salvaram nossas vidas", eu disse. "De acordo com os meus cálculos, sim", ele concordou.
Mais tarde imaginei que talvez o piloto do jato de passageiros brasileiro talvez também
tenha salvo nossas vidas, devido à rapidez de sua reação. Pena que o mesmo não se aplique
às vidas de seus passageiros.
No comando da polícia, fomos solicitados a escrever nossos nomes, endereços, datas de
nascimento, ocupações e nível
de educação, bem como os nomes de nossos pais. Também
fomos submetidos a exame por
um médico de cabelos compridos, usando um jaleco branco
que lhe chegava quase aos pés.
Tivemos de nos despir da cintura para cima, para sermos fotografados de frente e de perfil.
Isso, explicou o doutor cujo
nome eu não descobri mas se
descreveu como "médico forense", serviria para provar que
não fomos torturados "de maneira alguma".
O humor negro voltou, apesar de nossas tentativas para
desencorajá-lo.
"Aquele cara é o legista", explicou Yandle mais tarde,
acrescentando: "Acho que isso
quer dizer que estamos mesmo
mortos".
Mas as risadas, não muito
animadas, duraram pouco enquanto voltávamos a pensar incessantemente nos corpos ainda perdidos na selva e em como
aquelas vidas e as nossas se haviam cruzado, literal e metaforicamente, por uma horrível
fração de segundo.
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